COM o tempo chuvoso não me parece que isto se possa chamar andar a pé ou caminhar, vou simplesmente a navegar pela rua abaixo, vendo entretido pequenos regatos que se formam nas bermas limpas de folhas de sobreiros, caruma e restos de tonas de eucaliptos.

O aumento do caudal faz a água soltar-se do leito rugoso do cimento, desfrutando da liberdade líquida, correndo livre pela estrada e arrefecendo o negro alcatroado caminho, molhando-me os calcanhares. A continuar assim transbordo-me.

Na entrada de uma garagem, sob um oleado esverdeado, dois jovens aninhados e protegidos da chuva, mas não do duro labor, martelam graniticamente os cubos que se encolhem e aconchegam na areia fina, criando solo sobre o chão.

O saco de pano, bege, com um motivo floral bordado, vai encostado ao peito enquanto a mão que lateja o calor interno de me sentir água na chuva tenta manter o guarda-chuva com a inclinação perfeita. Quando o plano se desinclina e entro no pequeno largo de paralelos, já me sinto molhado, com frio, as lentes embaciadas e o sorriso meio afogado. Ao fundo o cruzeiro esconde-se atrás da fé, a pedra molhada não cabe em si de contente e tudo o mais no horizonte é um retrato difuso de água que parece brotar de todos os cantos da atmosfera. Chove ou sou eu que chovo?

Abrando o passo, olho mais lentamente para o largo, imagino os dias de feira grande e eu pequeno, a imaginar quais as caixas de sapato com paralelos escondidos na tentativa de provocar umas gargalhadas a putos escondidos atrás de algum plátano.

Entro na padaria, o cheiro quente a farinha ascendida e crosta amarelada, no pão gretado, dá-me um consolo antevisto de sentir derreter-se na boca os nacos de vida construídos pelo maior poeta do mundo.

Atiro com cuidado alguns bons dias a quem sentado se espreguiça da vida nesta manhã molhada e fria, aquecendo o mundo na forma de uma meia de leite, um café, um olhar atrevido para um queque de chocolate ou um navio de coco. Tenho dificuldade em perceber que já se passaram uns 30 ou mais anos, que o meu corpo é um adulto a envelhecer a olhar ainda por olhos de criança para quem me habituei a ver já velho.

Dão-me o pão e pago, meia regueifa e uma vida inteira. Deveria ter pagado mais apenas pelas recordações. Parece-me agora mais simples viver com o pouco que tenho, qualquer moeda dá-me acesso a uma volta na feira das recordações, a reviver montras, adultos que andavam de bicicleta ao contrário, velhas senhoras que me davam o troco em caramelos.

Recolho o troco e os até mais logo e saio porta fora, cheio da coragem que não tenho, ganha-me a dificuldade em perceber o tempo e o momento, seremos um ou outro, e se não ambos pelo menos nada do que sermos o que seremos.

Sim, chove. Paro os momentos necessários para comer um bocado da regueifa, ainda quente, sob o guarda-chuva, entretido a ver as pessoas que já cá não estão por entre as gotas de água que chovem nos meus olhos.

SOBRE O AUTOR:Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publica regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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