NA base da estrada, junto ao desnivelado passeio, vejo a escadaria alva piramidalmente subindo e lamento o meu despreparo físico. Suspiro e inspiro a ideia de que percorrerei aqueles degraus várias vezes até, por fim, cansado, sobrar tempo para rematar o trabalho, ou ajudar a rematá-lo, pois sou tão amador nesta arte, como a deitar uma mão cheia de palavras à terra e ver nascer uma frase.

A simpatia usual acolhe-nos abrindo a porta do coração, pedindo-nos desculpa pela casa estar desarrumada. Há pessoas que vivem e quase pedem desculpa por viver (é deles o reino dos céus). Olhando-me do fundo de uma altura que a vida não deixou crescer, sorri. Diz-me irmão de meu pai, o que desperta na fisiológica versão mais velha de mim um sorriso. E volvido o engano, desculpa-se novamente. No meu proverbial silêncio respondo com um encolher de ombros sorridente. Ao fundo do corredor, do canto da sala, uma Nossa Senhora de cerâmica com quase um metro e noventa observa-me os passos.

Na cama, jazente, o marido sorri por detrás de uns óculos grossos e uma cara diferente, muito diferente dos retratos de mocidade que ornamentam a parede. Prostrado, aprisionado num invólucro que a pouco responde, como se o corpo não encontrasse forma de se ligar à vontade, vê-nos começar e brinca ao dizer estar a ver como se faz, para depois fazê-lo. “Foi um aneurisma” diz-nos a senhora e para mais não deu, pois pede-nos para começarmos pelo outro quarto, estavam a chegar as Senhoras do Serviço de Apoio Domiciliário. Batas brancas, mãos de látex, rostos que transportam candura e amor na religiosa tarefa de assear, higienizar, sanar, enobrecer o vigor que deixou de responder e, no final, encher o peito para que o orgulho não encontro deglutição e soltar um “Parece um rei levado ao colo por duas mulheres!”.

Voltamos ao quarto, há meia dúzia de dezenas de minutos para que tudo se encaixe, enrosque, aparafuse, afine e limpe. E por entre estes, já sem as angélicas figuras de avental cujas máscaras não escondem a face de quem faz o que ama. E ama o que faz.

Ouço a história, o desabafo repetido de quem me diz que agora que podia estar bem, aconteceu-lhe isto. “Mas Deus é muito meu amigo”. Diz-me que vendia peixe numa carrinha com o marido, as histórias dos calotes das freguesas, as façanhas para reaver o valor (ou os bens) que por lá ficariam à sombra do desavergonho, o marido que “ele é bom demais” se enfiava no volante para não pedir o que era dele. Escuto, rangendo-me, as histórias do marido, abandonado numa instituição para onde os serviços sociais do hospital tinham persuadido a enviar, a alimentação pela sonda porque dava trabalho a dar de comer, a voz calada e os quilos que ia perdendo, talvez para ser mais fácil a morte ir chegando, a completa paralisia de quem já viver não sabia. “Há-de vir busca-lo para levá-lo num caixão. É coisa que se diga? Tive que ir a uma psicóloga!” E o filho “é muito meu amigo, está na Bélgica”, vendo a mãe soçobrar o vai buscar à instituição (poderei chamar-lhe prisão?) com a ajuda do Presidente da Câmara e o coloca, agora, aos cuidados de quem a este mundo vem ajudar. E amar.

Sorrio-me com os progressos conseguidos “já come sozinho. Já viu, como Deus é bom?” Mais cego é o que não quer ver. “E agora que fala é que consegue contar o que passou lá em cima, na instituição”, a fome, o que ouviu sem poder responder ou contar, o quarto sem janelas, o quanto queria ter morrido, “mas agora, ó, já sorri, vê as notícias, come sozinho. Tenho fé” e vira o olhar para as restantes imagens de santos e santas alinhados nas paredes.

Despedimo-nos do marido, o pacífico sorriso não mostra que já esteve no inferno, aprisionado dentro de si mesmo e usufruindo agora da liberdade constrita de conseguir segurar um garfo ou uma colher.

Já à porta, a senhora chega-me o casaco que ia ficando esquecido sobre a colcha.  Sobre o soluço reprimido e sem ceder ao mais do que legítimo lamento, olha para o marido e sem se queixar uma única vez, ao longo de toda a manhã e narrativa, remata “já viu que grande milagre Deus fez?”

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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