SAÍMOS de casa no frescor da fina matinal chuva transpirada pelo Verão. A ansiedade barbeou a face de véspera e há uma espécie de sensação de regresso ao local onde estarei quando chegar, apesar de já lá estar. Com a viagem realizada em caminhos alternativos, a atenção vira-se para novos deltas, plantações esverdeadas do que não conhecemos, toponímias distintas que nos fazem gargalhar, na simplicidade jocosa da linguística e do equilíbrio entre o calão e a imaginação.
O local de encontro, para os acompanhantes, ladeia-se de árvores e piso esverdeado, mas os mancebos septuagenários, que se reúnem novamente, estão numa ensolarada parada ou à entrada da camarata do batalhão, sem toque de recolher.
A vida foi macerando de forma distinta aqueles que comigo se cruzam. A passagem do tempo esculpiu-me, geneticamente, em similar busto do meu pai, talvez por isso alguns o afirmem perguntando-me se sou seu filho. Outros reencontram-me na trincheira das redes sociais, reconhecendo-me com um “Oh rapaz!”, reservado aos irmãos de armas. Os olhares emocionados, os risos adolescentes, fazem esquecer a alguns a sua situação de doentes. A guerra não é de forma alguma de Deus, mas pecando e pensando que se algo há positivo no conflito armado, foi os filhos Dele por lá terem andado.
Prestando atenção ao que desabafam é a homenagem que lhes faço. “Enquanto a mulher cá andar, também eu vou andando…” ou o receio do que fazer quando, no final do ano, deixar de trabalhar, o mesmo pavor de se ver parado num domingo de descanso, sem o deslocar para o trabalho, habituados a correr. Ou ainda as maleitas próprias do invólucro biológico, a cirurgia ao coração, à coluna, as dores nos joelhos. Novo petisco, outro reconhecimento, nova conversa, por detrás dos óculos graduados e o olhar saibrento de uma vida a ressecar, confessando que ficou “sem a patroa”, o contrair da doença pandémica, a paralisia e o carinho do genro, que o ajudava no banho e o barbeava, como se tivesse estado com ele na frente da batalha. Um outro camarada alheio passa por mim e, em sussurro, sem comigo cruzar o olhar, felicita-me pelos meus artigos. O ego apascenta-se na responsabilidade do que podemos fazer por nós mesmos ao tratarmos bem os outros.
Ao almoço, volvida meia dúzia de anos, repetimos as posições à mesa. Escuto sobre os problemas oncológicos reincidentes no marido, que na dor e receio do futuro, desloca-se à horta e por ali fica, sentado quando cansado, descalço, com um ancinho a acariciar a terra, “dói mais ver as crianças nos tratamentos… é outra guerra”.
Pausa-se um minuto em silêncio pelos colegas já tombados. Passaram vários minutos, e silêncios, ninguém parecia estar a contá-los e, varrendo o salão em discrição, no olhar dos que vêem os minutos passarem vi escrito “se calhar sou o próximo”.
Saídos do parque de estacionamento, no sorriso satisfeito da camaradagem blindada no peito, início a condução de regresso, com o pôr-do-Sol a estender-se no horizonte. Por entre nuvens de lilases firmamentos saídos da imaginação de um poente, a estrada de negro asfaltado pela frente contrasta com a visão, emudecida, de quem olha pelo espelho retrovisor e vê, ainda, nas memórias nubladas a poeira das picadas.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.