PERCORRO atalhos com a visão enquanto permaneço no caminho usual. Não há plano, apenas uma curva a seguir à outra. Tenho tempo e distração suficiente para ver um pequeno triângulo de terra tratado, lavrado, plantado e florido, tudo num só retalho. Uma miragem real num solitário canto entre eucaliptos, pedras e matagal abandonado. Dou por mim em pé, descalço porque a situação assim o exige e também porque assim é que em nós entra aquilo que pariu. Olho para uma pequena planta. Tenho gosto a mais e conhecimento a menos. Não lhe sei o nome, não interessa, serviria apenas para a catalogar, assim liberto-me de identificar e dedico-me a desfrutar. Vejo-a crescer lentamente, mas ainda mais rápido do que poderia supor, enquanto passam por mim ascendentemente flores, folhas e suas nervuras, caule.

Quase ouço a seiva bruta sugada à terra em forma de água e sais minerais, só quando vejo o chão percebo que não era a planta que crescia, mas sim eu que diminuía. Descalço, minúsculo, começo a entrar pela terra até não ser mais eu, mas sim um pequeno torrão de terra, húmus, mineral e seiva. Vou diminuindo estranhamente, mas consciente, mais consciente agora que me sinto toda a terra, água e lava. Ascendo enquanto impludo, como se de mim crescesse algo que só se pode manifestar quando de tão pequeno se faz mais ínfimo. Rapidamente sou partícula, qualquer uma, esqueçamos nomes, que ancorou neste aglomerado, irmão e irmã de todas as outras partículas e não partículas e quando me vejo ser e não ser, com todos os infinitos como sendo meus, pergunto-me: será assim que se sente Deus?

Estaciono o carro, olho pelo retrovisor e aguardo ao som de Ragcpickers Dream, passam poucos segundos quando me vejo correr saído da curva, sorridente, até chegar ao carro, entrar como se não existissem barreiras físicas, olhar-me extasiado e dizer-me, com o brilho de um puto que descobre algo inteiramente novo: sabes que descobri? E antes que eu argumentasse com o tempo que perco comigo e o preço do combustível, já eu me dizia: rezam sem o toque do chão nos pés descalços, encomendam milagres e resguardo de problemas seus, sem conhecerem que dentro delas também ele mora, quem? Deus.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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