O OUTONO chega orientado pelo rumo da nortada. As nuvens cinzentas cinzelam o verde escuro, ainda imaculado, pintado nas encostas das serras ao fundo, placidamente a observarem o azul do mar.

A viagem, iluminada pelo Sol a reflectir-se orgulhoso nas águas do Atlântico, ziguezagueando a estrada e, também, os pensamentos, fez-me mais temperado que o barulho das ondas celestes supunha. Ao sair, a frescura de final de Agosto, quando a há, como hoje houve, chamou o zéfiro para, certamente, se rirem ambos de mim, incauto turista na baía e, confesso, na vida. O vento, agradável, puxa-me as mãos para o fundo dos bolsos e sorrio ao ver-me arrepiado em pleno Estio. Tinha razão, o frio. Ainda que não em demasia, tirita-me até que o corpo se habitue ao térmico desnível e, depois, recomposto, me indique que posso iniciar o passeio.

Seios exibem-se, sem pudor, libertos da indumentária quotidiana e sorriem ao verem os seixos redondos na desembocadura da maré que se afasta, vazando-se, expondo pequenos e marinhos petiscos que outros, de balde na mão, apanham.

Na praia, uma cabeça alva imita os corvos-marinhos, surgindo e desaparecendo uma braçada depois, para, novamente, repetir o mergulho ritmado em largas centenas de metros. Ao sair para o areal, envergonho-me da minha fraca forma física, em contraste com o sexagenário nadador, que, sorrindo, agarra a toalha da cor da areia e afaga-se, ofegante, até secar o corpo oceânico que Neptuno lhe deu. Atrás, a caravela Pinta relembra os olhares salgados dos marujos que perdeu.

Ao longo da calçada curvilínea, as lojas exibem um cansaço veraneado nas suas portas fechadas e grades corridas, poucos transeuntes além de nós. Na zona dedicada a refeições, à porta dum restaurante, um homem limpo com indumentária suja sacode a roupa, tira o casaco roto no cotovelo e de golas desbotadas, passa uma toalhita na face que um funcionário lhe deu e sorri. Seria ritual necessário, noutros ausente, para trocar as esmolas por uma refeição quente?

A pobreza não tira férias. Nem a tristeza. Entro numa pequena capela erigida por entre ruas pirateadas por lordes ingleses. O luto de duas irmãs contempla de olhos lacrimejados as brincadeiras de uma criança, que perguntando o nome dos santos dos altares ostentando embarcações pesqueiras, brinca, de banco em banco, e assoma um sorriso às faces de pranto.

Saídos das ameias, há faces conhecidas em terras alheias, que respondem em abraço ao encontro inusitado e fortuito. Vai-te contigo e em todo o lado tens um amigo. Não é assim o ditado milenar, mas poderia ser. Sermos casa quando a idade esmaecer.

Os ensinamentos e sentimentos de uma observação, sem as conseguir evitar, não cabem no interior de um texto. Tal como a protecção dos marinheiros, encomendada aos santos erigidos nas rochas, não cabe dentro dos muros das muralhas. Tantos deles no mar, regressando a casa salgados, em mortalhas.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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