QUANDO me aterram as memórias, pauso-me no hiato entre as vidas que sei ter conquistado à morte. Afinal, a passagem de um mundo para o outro está ao alcance do destapar, paulatinamente, o postigo onde o musgo calafetou os espaços entre as tábuas de madeira toscamente pregadas. A liberdade oscila no espaço a percorrer desde que nos soltamos das amarras do nosso próprios cais, até ao sereno embalar de um homem só, na maré, de frente para o destino, em pé.

Embora me consiga envolver e desenvolver de encontro ao portão de ferro, o arame farpado retorcido e as inscrições germânicas em terras polacas, ostentam tudo o que poderá ter de enganador na palma das mãos de Hades.

Concentrados num campo estéril onde apenas o sofrimento irrompe, perdidos no caminhar árduo da imemorável história dos pisados, vejo-os oscilar na existência como pequenas marionetas cujos cordéis urdidos foram pelos que, calados, compraram o horror.

Percorro o irregular caminho em terra batida, tento não vê-los encostados às paredes, fantasmas presentes porque além de esquecidos, votados ao lacrimejar turístico cuja próxima boutique fará obliviar a indignação, velam pelas barrentas paredes cujos tijolos alicerçados sonham pela desconstrução do mundo.

Mudo, por entre edifícios, ergo-me pé ante pé, de memória em memória, como se cada mirar me fosse atirar ao chão e, mesmo este, indignamente sentindo-me, jamais poderia caber-me porque quem se deseja viver, não se cabe neste mundo.

O barrote permanece estruturalmente virado para a parede onde prisioneiros de corpo peneirado tombaram, libertos, fuzilados por guerreiros recrutados nas quintas latifundiárias onde, assim esperam, pequenas crianças de cabelo louro e olhos azuis correm, inocentemente, de mãos abertos por entre milho, cevada, trigo, longe de imaginar que os pais, tão amados, escondem os olhos fechados por detrás do fumo do fuzil, aspirando que não lhe vejam o rosto com o trilho húmido de uma lágrima.

Emudecido, com o coração abatido e encostado ao peito, trago os ouvidos arranhados pelos gritos que as paredes gazeadas viram exulcerar. O sofrimento é algo que não se raspa ou caia, permanece cinzento, ermo, ainda que o cobramos de matizes, como nas décadas volvidas no capítulo da história, sem termos abraçado órfãos da misericórdia.

SOBRE O AUTOR: Miguel Gomes, nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. Apaixonado por Trás-os-Montes e Açores em geral e pela vida em particular, é co-autor das exposições de fotografia e poesia “Alma Tua“, subordinada ao vale do Tua, e “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordina à Rota do Românico, publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“. Publicou regularmente crónicas na revista online “Bird Magazine” e começou a colaborar com o Correio do Porto em 2016.

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