O GRANITO cinzento e azul escuro traça a perpendicular com o sorver do porto que escorre pachorrento, alcoolizado, pelas bermas interiores do copo e se evapora ascendendo ao céu da boca. Quando está cheio, cotovelos e antebraços sobre o frio aglomerado de minerais, a estante de vidro que serve de montra à pastelaria variada, bolos, rebuçados e sumos, ganha honras de balcão, onde a chávena pousada com diligência faz tilintar o café. Não, não é café, é outro porto.

O ruído do moinho contrasta com a conversa aleatória que se mantém com quem não se conhece ou, neste caso, um monólogo de alguém que nunca conheci, mas que me dirige a palavra. Não há fio condutor e o teor ébrio do homem, simpático, não é o suficiente para me fazer embrenhar nas típicas históricas que me cativam e, normal geral, se encostam ao meu palato e, depois de as saborear à minha própria maneira, me escrevem em aglomerados de palavras a quem chamam crónicas.

– Parece impossível, mas não é. É como eu, sabe? – Não, não sei, mas ele continua – Aos 56 anos sou pai outra vez, veja lá, parece impossível, mas não é. – Parece impossível de facto – O médico bem disse à minha mulher que por esta não esperava ele, nem nós pra dizer verdade – coça o cachaço enquanto vira o pescoço para ver o que eu tanto olhava na televisão – nasceu perfeitinha, grande! Só pode sair a mim, a patroa é bem pequena, mas casticinha – ri-se – veja lá – mais um gole de porto – 56 anos, eu já não estava à espera, tenho filhos e netos grandes também. Saiu esta cachopa agora, tem seis meses, está muito bem. É bonita. – de sorriso inocente e olhar carinhoso que a vida nas obras ainda não cimentou à agrura.

Alguém entra e cumprimenta-nos, não reparei, estou a fingir que vejo televisão, mas só queria viver neste presépio tardio de um menino jesus grande e borracho, de chapéu vermelho e de boca desdentada onde uma língua vermelha de carrascão limpava os lábios secos, ávidos de conversa. Pousou o copo. Baixou a cabeça e de sorriso natural, no receio paterno de quem para os seus quer mais do que o que teve, solta um – Ela há-de criar-se, não acha? – E levantou o olhar para mim, que já o mirava atento e sem sorrir, talvez mergulhado em marés de dúzias de ondas. Anuí com a conversa e devolvi um sorriso.

– Eles agora criam-se sozinhos, já come mais do que eu! O leite é que é caro, fodasse, na farmácia fica lá um bom bocado do trabalho, mas a mulher já não tem idade para ter leite – mais um golo no bolbo de vidro onde o porto foi vertido – olhe, tem que ser, há-de criar-se certamente. E o cabelo? Tem mais do que eu – levantando o chapéu vermelho – e que o senhor – sorrindo, voltou a atenção para o copo e, baixinho, para si mesmo, como se se convencesse afastando os receios de uma paternidade tardia – Há-de criar-se se Deus quiser.

Fitou o fundo do cálice, restava um pouco ainda, guardou o troco com as mãos grossas argamassadas, ajeitou o chapéu vermelho na cabeça, virou costas exibindo a t-shirt suja de trabalho limpo cujo feriado não lhe trouxe liberdade de ser livre e dirigindo-se para a porta, o desconhecido a caminho do que já se esqueceu – Há-de criar-se se Deus quiser.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.

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