Movendo-se na modorrenta passada do mais pequenito anjo, o longo préstito atrasava-se ao toque alternado de caixa da banda de música, cujos integrantes saíam protegidos na sombra das tiliáceas. Uma guarda de honra de arcanjos e santidades pendurava-se nos candeeiros da rua, devidamente suportados nos patrocinadores da festividade, enquanto as instalações sonoras anunciavam uma panóplia de empresas dos mais variados serviços e produtos.

O atraso obriga-me a mirar o chão, exploro as sombras que, em fadiga, se deixam pisar por quem pouca luz vê, protegendo-me, ligeiramente, do tórrido calor. Descansando sob as calosidades de pés femininos escanhoados e dedos disformes, envergonhados, empoeiradas sandálias líricas, no contraste com as encardidas unhas humanas, competiam com úngulas equídeas de humildade, por entre rebentos de glória de quem não se sabe feliz, porque não lhe sabem o valor, mesmo não tendo ela preço.

Içando numa catadupa de vestes coloridas, a feira de vaidades ostenta-se sem nada para vender. Cruzam-se olhares e procuram-se atenções. Sem a procissão por perto, o profano encontra lugar encostado aos postes de iluminação e muros das casas alvas, ilhas num oceano apeado de cardumes sem sermões auscultados. Pensam-se peixes, coitados.

Numa das casas, decorada com cartazes da agência imobiliária, uma garagem, com postigos gradeados ambicionando serem janelas, tem a porta ligeiramente aberta refrescando-se numa falta de comodidade que outros palácios ostentam. Cá fora, na plana rampa de acesso transformada em jardim cimentado com musgo acastanhado, as tangerineiras ressequidas assemelham-se a uma árvore de Natal de folhas secas vestidas. Virada para a rua, por trás do portão enferrujado, uma cadeira de praia vê avançar a maré da idade. Estacionado nela, um octogenário ergue um braço e baixa o volume do rádio que, pendurado num dos ramos da rutácea, trinava como um rouxinol-comum nidificado.

Abrindo o cortejo religioso, a animalesca divindade equina empinava a tarde, enquanto o asfalto venerava o casco firme do garanhão. As promessas sustinham os andores, que por sua vez, transportavam floridas figuras, suadas de devoção. De quando em vez, um pequenito de anjo vestido e de passo curto pede uma garrafa de água, alheio à sede que o séquito parado na beira da estrada traga do que vê.

Fixo-me ao som dos passos. As candeias iluminam a claridade do final de tarde. A meu lado, um soluço emocionado quando a sombra do divino salvador encontra espaço entre os prédios e ilumina um pouco do pé lavrado.

Terminada a comitiva, içando-se na velhice, o volume da telefonia é reposto no obscurecimento verde da planta, fazendo voltar olhares jocosos num silencioso escárnio. E eu, calado, desço a avenida na lateralidade do percurso professo e acompanho a fé dos que de joelhos se erguem acima dos sobreviventes, de pé.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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