A NOITE de Dezembro surge à esquina do edifício da Câmara Municipal. Já a tinha visto na cara divertida da criança que sujou o nariz na espuma do chocolate quente e no vistoso e dançante bafo de menino, que segue ao colo do pai. Um presépio andante, moderno, um menino Jesus pelo colo, Nossa Senhora de tacão alto e cachecol a embrulhar o decote luxurioso, um José altivo desgrenhado com um sobretudo aberto ao vento, o mesmo que surgiu ali atrás, na esquina, e uma menina Jesus, a verdadeira inclusão religiosa, a soprar o wengé líquido.

Descemos a estrada que leva ao antigo Hospital, o restaurante, segundo o GPS, é no próximo cruzamento e lá esperam já por nós. O reencontro com os amigos, principalmente volvidos anos, décadas como no caso, é apenas um abrir da porta da sala de aula e ver, em pé ou sentados, debruçados nas cadeiras, trejeitos de adolescentes breves em corpos que a vida fará por curtir.

Aos poucos, como que se tivesse tocado a campainha da escola, chegam os restantes. Uns surgem das ruas que desaguam perto do restaurante. Outros surgem por detrás dos blocos de salas, depois de uma aula, para deambular pelo recreio, dar voltas à escola, passar propositadamente pelas janelas e trocar um olhar ruborizado com uma paixoneta infantil.

Desembrulhamos olhares e sorrisos, beijos e abraços. Quase se forma uma nova turma, alunos ensinados pela escola, outros pela vida, todos pelo tempo. Sentados no conforto inusitado de uma velha casa, despidos casacos e trajando a alegria do reencontro, mais eu que de tão ausente nunca me tinha feito presente, vamos debicando entradas e conversas, beberricando vinho e anedotas, piadas antigas cujo volver dos anos apurou o sentido.

De relance, miro-me sem querer ao espelho do canto da sala, junto do cabide. Assusto-me ao ver-me velho, gasto. Sorriem-me as memórias de miúdo, o desejo de saber o que ser quando for grande, soltam um, “tens 46, não 16”. E olhando para os bueiros que escorriam as águas da chuva que, entretanto, tinha caído, fico sem perceber para onde escorreram trinta anos.

Atrás de nós as mesas de jantares de Natal são tristemente iluminadas pelos ecrãs dos telemóveis de pessoas, novas e menos novas nas andanças da vida, que não sabem conversar. Ou amar. Vai dar ao mesmo.

Volto à suposta realidade e desvalorizo as minhas indagações quando, com a mão no meu ombro, falando para os restantes, já conhecidos, o dono do restaurante, pai adoptivo de um amor ausente, nesta altura natalícia onde tudo se sente, narra a tristeza em não ter sido convidado para o casamento do filho e que soube do mesmo, apenas, pela rede social onde muitos são pescados. Haverá perdão para certas dores. Certos pecados?

Chegados à hora de sair despedimo-nos com a jovialidade típica de final de aula antes dum intervalo grande e sem testes pela frente. Pelas costas o Inverno lembra-se de chover e, sem acelerar, caminho pela noite, feliz, sorridente.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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