À saída da VCI e longe dos holofotes habituados a iluminar noites de futebol azul e branco, as rotundas rotundadas convidam a enganar-me, falheiro que sou de trajectos urbanos, agora que me quero cada vez mais rural, plantado talvez àquilo que de mim me espero, um punhado de sementes de nada e um plantio fútil daninhando os jardins efémeros que são os milhões de anos à sombra de um Sol cansado, ainda que adolescente.

Estaciono ao largo do Cerco, por entre pequenos paralelos perdidos por qualquer enxurrada ou calceteiro menos pródigo a arrumações graníticas. O céu cinzento assusta tanto quando o aviso de quem, mais à frente, convida a não deixar nada à vista dentro da viatura. A vantagem de nada ter, é mesmo o facto de nada me poderem roubar. Não termino o raciocínio e já uma saraivada localizada abre alas a uma matiz brilhante da manhã que espreita por entre os gradientes cinzentas do firmamento.

A manhã traz-me a casa alheia. O Salgueiros, no Vidal Pinheiro, era passagem estranha para mim, as escolas e o chilreio desconhecido a pássaro de aldeia, sonorizavam ladainhas que me assustavam. Agora, entrar em casa, no lar alheio, deslocado ainda que sob a alçada do padroeiro de São Veríssimo, traz um estrangeirismo a casa passada dos petizes, sob os pitões aborrachados nos sintéticos relvados, no futebol, na vida.

O bairro parecia ter adormecido há pouco, enquanto a cidade acordava de uma noite mal dormida, com os sonhos à porta gradeada do complexo desportivo de Campanhã. O frio convidava ao esfregar das mãos, soprar o vazio, saltitos pardalescos na imaginação de um Vicente Calderon, ou qualquer outro palco trazido à criatividade dos sub 9 e as suas celebrações de tentos cobrados à moda de qualquer um dos grandes nomes futebolísticos, trazidos nos vídeos curtíssimos de qualquer plataforma ou rede social.

Os pais abrigados na beirada estendem as asas para que os craques do futuro não se molhem hoje. Tiritando de frio nas pernas níveas, esfregam as mãos nos braços de galhos finos dos arbustos que são. Ao fundo, por trás da cerca improvisada em canil, um cão enorme fita os estrangeiros com indiferença. Desloco-me até lá e encontro, no seu olhar desafeiçoado, uma fome de liberdade que o faz negar a bolacha que lhe faço chegar por entre os espaços da rede. Pelo contrário, cerca-se, rodeia-se, coloca a custo as patas direitas numa poça de água e encosta-se à cerca, que tem já o seu molde, como que convidando-me a afagar o que posso do seu espesso pêlo.

Esqueço-me do mais importante, o jogo de futebol entre miúdos, por vezes vivido mais apaixonadamente pelos pais nas bancadas molhadas, do que propriamente de quem espera apenas imaginar-se um Ronaldo, Messi ou Mbapé durante umas dezenas de minutos, pretensões esquecidas rapidamente aquando do lanche partilhado, por um pai patrocinado. O café ao intervalo aquece-me a imaginação, converso circunstancialmente com um pai da equipa adversária, dirigente, com uma chave de fenda na mão para dar um toque no portão de entrada, enquanto recorda, com outro interveniente, as noites dormidas sentadas com o puto ao colo, doente, até aos três anos, a cortisona como companhia e esperança de um ataque certeiro à maleita, o esforço na distração para que o catraio não tossisse e marcasse, assim, mais um golo verdadeiro na baliza adversária que, como sabemos, bem pode ser a vida às vezes.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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