Com o Domingo a transpirar em bátegas de água, resta-me navegar pelos riachos enfurecidos que escoam ao fundo da estrada, depois dos paralelos, até se aninharem nas verdes encostas de campos abandonados. Dizem que chove, consulta-se oráculos digitais cujos algoritmos, cada vez mais acertam menos, tais as vicissitudes climáticas que, tal como o Homem, estão cada vez mais estranhos.

No meu resguardo à prova de água, sob o guarda-chuva inclinado ao vento, talvez em reverência a Eos, vou caminhando sem astrolábio ou balestilha. Há estrelas, mas não as vejo agora, pois a minha noite ainda não caiu e o firmamento, para já, é este tecido cinzento que se encima sobre as varetas.

A placidez de um São Simão chuvoso, entre falos exagerados com laços azuis e cor-de-rosa, pendurados nos toldos impermeáveis das doceiras, e autocarros estacionados entre regatos, vai contrastando com as canecas de vinho novo, tintadas pela inconstância de mãos sôfregas. A santidade sempre foi profana, mas o receio de uma divindade austera fazia dela, santíssima, um castiçal de finados sem qualquer vela.

Agora que as ermidas solitárias reverberam no silêncio das montanhas escanhoadas, e as promessas ficam algures entre a tasca e o shopping, não há santo que nos valha e, talvez por aí, se imponha a verdade nua, crua, perante as vestes díspares que ornamentam quem procura o próximo ruído para se ouvir calar ou, que é como quem diz, a roupa etiquetada em cima de um manto nu.

Não há nada sobre nós, além do universo, e da indistinta perfurada envergadura celeste, que coa a luz divina. E, no entanto, vejo-os sacudirem o destino como se sacudissem o orvalho matinal que os tapara o relento invernal. As pessoas plantam o próprio mal. Neste caso, chove também no nabal.

A noite amanhece cedo, ao redor do recinto o vento sacode os fios eléctricos onde, também ondulantes, os bolbos iluminados aquecem as gotas de água caídas das nuvens, onde rostos mais ébrios confundem o balcão com o confessionário e, na ausência de prior, descarregam, caneca atrás de caneca, a sua dor. A inocência tudo pode, inclusive perdoar o mal que faz pelo bem que sabe, e se a manhã não traz análise no largo da feira, emborca-se mais uma, que se o homem a fez, o homem a beberá.

Faço de conta que não ouço, mas escuto. E por entre os salpicos tintos na zincada plataforma da tasquinha, onde a solidão conversa sozinha, ergo o braço e chamo o funcionário, sem grande atenção:

– Traga mais uma, em honra de São Simão.

Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo”.

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