A CAMPAINHA por detrás do tubo metálico da salamandra não ajuda a anunciar a chegada. Felizmente, sendo frio não está frio, a salamandra desligada permite que encoste o dedo ao botão sem medo de me queimar. Primo duas vezes e começo a subir a escadaria de pedra, agarrado ao corrimão de ferro, pintado de preto, apenas para recordar o passado pela textura irregular, como fora de regular é já a minha memória das folhas de vinho americano no chão a tingirem o pavimento e a encher-me, sei-o agora, a memória de um cheiro a mosto e o barulho do ralador no seu movimento final, solto, com quando em puto me entretinha a imitar os mais velhos.
A porta de madeira é aberta, celebramos o final de uma pandemia, ou do final deste dia, ainda levo a máscara na mão, mas sobrepõe-se os dois beijos e o abraço e o cheiro a massa de rissol. Os passos são menos, agora, que me levam à sala de estar, mas na estatura maior, é a tempo que inclino a cabeça para não bater no velho candeeiro do corredor, sempre desligado, de madeira de mogno, numa velação pela escuridão, como é ainda o hábito de, no escuro, sentir a parede de pedra áspera.
Da cozinha, ponto de passagem intermédia antes da sala de estar onde, pelas duas portas de par em par passam vozes e luzes intermitentes da televisão, o rádio se habituava a transmitir a rádio renascença e, certo como um relógio, o terço em coro por detrás dos botões de cerâmica e o ponteiro vermelho escuro habituado a morar na mesma frequência de sempre.
Na sala há um aperto de mão, viva o fim da pandemia, continuo sem máscara, trocam-se cumprimentos e falas de circunstância sobre o futebol para surgirem as recordações doutros tempos e doutros chãos, agora uma sólida placa de cimento, outrora um soalho de madeira, picotado pelo bicho. Por momentos, andamos todos ainda descalços a correr no campo revolto depois de tiradas as batatas ou, já graúdo, baixando-me ao entrar na despensa transformada em lagar, com direito a prensa, para não bater com o cesto na padieira e perder metade das uvas no chão e outra metade no ralador, que tanto ralava ou relava as uvas, como me ralava o ânimo quando me faltavam as forças de garoto e que queria fazer trabalho de homem.
Passo da sala a um quarto, cumprimento as diferentes gerações presentes, frutos da mesma árvore, que velam a mais velha, doente, oscilando a ânsia com vocábulos sorridentes e gestos para esconder a preocupação. Coloco a máscara, saúdo o sábado tardio e esquecendo-me de baixar a cabeça o suficiente ao entrar faço soltar risos agradáveis de ouvir e que associo à mesa comprida por baixo da placa da garagem onde estava, também, o forno de cozer o pão e a casa de banho improvisada, logo atrás dos galinheiros e das coelheiras, quando nos juntávamos a comer a feijoada depois de uma vindima.
Fecho a porta de madeira, desço os degraus lentamente, recordo o som da bola de futebol a bater na parede e o cheiro das tangerinas ou o barulho das mesmas a caírem no tanque com água baça do sabão.
Vive-se, sim, mas é do lado de fora que nos bate o coração.
Miguel Gomes nasceu no Porto em 1975, reside desde essa altura em Cête, freguesia do concelho de Paredes. Estudou engenharia informática e tem pautado a actividade profissional entre o ramo industrial da informática, gestão administrativa, ensino e formação. É co-autor do livro “Alma Tua” (2019, Guerra e Paz) subordinado ao Vale do Tua e da exposição de fotografia e poesia “Rota do Românico: Caminho de Encanto“, subordinada à Rota do Românico. Publicou crónicas na revista online “Bird Magazine” e, actualmente, no Correio do Porto e Canal N. Publica igualmente os seus textos no blogue “Serenismo“.
Ótimo texto, Luís. Eu também já havia pensado sobre a possibilidade de o nosso coração estar do lado de fora. 😉
O nosso coração bate onde quer que desejemos chegar. Em última instância, está onde não nós sabemos estar, dentro de nós próprios.