NOTA PRÉVIA DO COMPILADOR
Este depoimento, anónimo, foi encontrado por acaso, entre os papéis que se acumulavam num Gabinete dum professor de Filosofia da Faculdade de Letras do Porto. Por mim, sou exclusivamente responsável pela transcrição dum monte de folhas manuscritas, sempre no verso de “papel de 35 linhas”, com o aspecto de sobras de velhos pontos de exame, letra miudinha que me vi desesperado para entender. Tentei respeitar sempre o sentido geral da conversa, só completando com muita prudência algumas linhas ilegíveis!

PERGUNTA: Posso?! Começamos?! Está a gravar…
RESPOSTA: Avance lá!

PERGUNTA: Eu sei que o meu amigo não está habituado… Portanto, esteja calmo, fale devagar e não engula as palavras! Que eu ando há muitos anos “nisto” e já sei como é!
RESPOSTA: Esteja descansado!! Belo gravador…

CONTRA-RESPOSTA: É “Aciko”, do melhor! E bom preço. Não tem garantia mas “eles” dão assistência. Se quiser, arranja-se um. Sabe, a gente anda por aí e sabe destas coisas… Vocês, filósofos, sempre “encafuados” com esta “livralhada”, é natural que …
RESPOSTA: Não se preocupe, ó criatura! Prefiro “gravar” na memória. Tem garantia de origem e quando precisar de “assistência” eu trato do assunto…

PERGUNTA: Vamos lá, que as “pilhazinhas” estão a rolar e…
RESPOSTA: Siga! Siga!!…

PERGUNTA: Porque se recusa a dar entrevistas?
RESPOSTA: Bem! Não se trata de recusar, mas de ninguém me entrevistar, o que me deixa profundamente feliz, pois vai ao encontro dum dos objectivos da minha vida: “Não dar nas vistas!”. Passar ao lado, ser anónimo, não abrir Telejornais, não estar nas primeiras filas dos Simpósios e, quiçá arriscar-me um dia a uma condecoração no 10 de Junho…

PERGUNTA: Mas a verdade, é que está a dar esta entrevista …
RESPOSTA: Pois é! Mas esta é uma mentira. Não existe… É inventada como as histórias que se contam às crianças antes de adormecer, isto na perspectiva duvidosa de que as crianças dormem e que alguém lhes conta “histórias”, ou que elas estejam interessadas em ouvi-las.

PERGUNTA: Por favor, não desconversemos…
RESPOSTA: Seja! Conversemos, então!.

PERGUNTA: Que faz, como modo de vida?
RESPOSTA: Tirando o objectivo, sempre adiado, desde que fomos expulsos do Paraíso de “não fazer nada”, consegui atingir o território mais próximo disto, isto é, dou aulas de Filosofia!

PERGUNTA: Dá aulas?!
RESPOSTA: Tem razão! Não dou. Para ser mais exacto, “vendo” aulas. É o meu “produto”, a única mercadoria que tenho para oferecer!

PERGUNTA: Mas, diga-me; Aulas de Filosofia… Isso serve para alguma coisa?
RESPOSTA: Ora aí está uma boa pergunta, que merece resposta apropriada. Vai ficar satisfeito! Olhe, a Filosofia, de facto, “não serve” para nada…

PERGUNTA: ..!!! Mas então…??
RESPOSTA: Viu! Ficou satisfeito! Eu não lhe disse. Era o que você pensava e eu já lhe dei razão. Confesse que julgava que ia levar com poderosa argumentação que justificasse aquilo que você nunca aceitaria! Assim é melhor, entendemo-nos já…

PERGUNTA: E pagam-lhe para isso?!
RESPOSTA: Eis um dos maiores mistérios que já enfrentei! É verdade, PAGAM! Admitamos que é motivo de reflexão…

PERGUNTA: E quem lhe paga, pode saber-se?
RESPOSTA: Olhe! Por acaso, pode. Paga você, a sua família, os seus amigos, os seus inimigos, o País inteiro. Quer dizer, como agora está na moda, vivo dentro do “bolso dos contribuintes”. Mas atenção! Como sou contribuinte também, em última instância, pago-me a mim próprio. É praticamente a quadratura do círculo.

PERGUNTA: E esta situação escandalosa nunca foi denunciada, descoberta, atirada para o Provedor de Justiça?
RESPOSTA: Extraordinariamente, não! Há 2.500 anos que este “rega-bofe” se mantem e o “bibelot” da Filosofia continua a ser mantido como “objecto decorativo” na mansão do Pensamento Ocidental! E mais ainda. A atender aos líderes de opinião, da Política ao Futebol, a Filosofia parece estar “in”, se me é permitida a expressão… De facto, como entender frases como “(…) a filosofia de jogo a meio-campo (…)” [Cf. “Record”, “A Bola”] ou a “(…) filosofia do Orçamento de Estado (…)?! [ Cf. “Diário das Sessões” ]

PERGUNTA: Nunca tinha pensado em tal assunto nessa perspectiva… Mas olhe que não me convence!
RESPOSTA: Está a ver! A situação melhorou um pouco nas 3 últimas perguntas… Pelo menos, começa a admitir que há um certo conforto neste “bunker” da Filosofia.

PERGUNTA: Regressando às aulas, aos professores, ao Ensino. Não acha que tudo isto está num caos, que agora não se aprende nada?
RESPOSTA: Talvez! Há, na verdade, uma tal psicose do borburinho, da velocidade, do “mudar” só para não estar no mesmo sítio, que o que se pode ensinar parece já não precisar de ser aprendido e o que deveria ser aprendido ainda não pode ser ensinado!

Por outro lado, é tão grande a preocupação com a mania de fazer pensar as pessoas pela sua “cabeça” ( conceito de grande beleza anatómica…), levando-as às conclusões, sem forçar a memória, sem decorar, sem estudar, que nos arriscamos, se seguirmos esse método à risca, a regressar aos tempos do “Homo Habilis”!

PERGUNTA: Não acha essa posição arrogante e politicamente incorrecta?!
RESPOSTA: Acho! Acho! Mas que é que você quer que lhe faça? Que lhe diga “sim” a tudo! Com franqueza, assim não pode ser…

PERGUNTA: E há quantos anos anda, para usar as suas palavras, a viver à custa dos Contribuintes?
RESPOSTA: Acredita, se lhe disser que me mantenho a flutuar há 30 anos?? Já viu! Trinta anos e não me mataram, instauraram processo disciplinar, ou sequer uma manifestação de desagravo, porventura uma ou outra bengalada, uma ameaça de defenestração, como ao vil Miguel de Vasconcelos…

PERGUNTA: Mas 30 anos é uma vida! E “isso” tem uma carreira?
RESPOSTA: Tem! Tem! Mas não dá trabalho nenhum, para o escandalizar ainda mais. Só é preciso dar dúzias de disciplinas com nomes diferentes, fazer uma “provazitas públicas”, uns artigos publicados em obscuras Revistas, ler milhares de exames, ter paciência para estar centenas de horas sentado em dúzias de “Comissões”, “Conselhos”, “Comités”, tomado conhecimento de ofícios, protocolos, despachos, acordos culturais de 100 páginas com as “Ilhas Comores” ou o Ministério da Educação do Burundi.

PERGUNTA: Mas a vida universitária é isso? E a investigação, os debates elevados para pensar os problemas do País e do Mundo, sei lá … Coisas assim!
RESPOSTA: Tem razão, desculpe! Esqueci-me desses pormenores. Mas deixe-me dizer-lhe que toda a gente anda, de facto, desvairada a investigar! É vê-los a transpirar, de bata branca, os mistérios do Universo dum lado, os Investigadores do outro, e o Universo, coitado, a perder a sua intimidade, sem vida privada, devassado em artigos demolidores publicados em várias línguas, uma fila de empresários à porta da Universidade, esperando a solução das equações, para imediatamente as comercializarem em produtos que trazem a felicidade à Humanidade. Tal e qual dizia o bom Jacinto, de “A Cidade e as Serras”: “(…) Suma Ciência x Suma Potência= Suma Felicidade. (…)”.

PERGUNTA: Até que enfim me diz algo de positivo! Só não vejo o que é que a Filosofia tem a ver com isso tudo… Afinal de contas, convença-me que não é “conversa mole”, parlapatice, textos intragáveis que ninguém entende!
RESPOSTA: Deixa-me numa situação difícil! Se digo que os textos são “intragáveis”, os meus colegas matam-me! Se não digo, você exige que eu os explique, em linguagem de gente… Preferia não responder a essa pergunta!

PERGUNTA: Desculpe, mas não se livra. Eu insisto: São, efectivamente, inúteis e ilegíveis essas incomensuráveis pilhas de comunicações, artigos, teses e quejandos que vocês fazem?!
RESPOSTA: Olhe, vou fazer-lhe uma confissão. Sou eu que tenho falta de preparação, reconheço que sou burro, um “bluff” total. A Literatura a que se refere está, infelizmente, “adiantada” em relação à Humanidade actual. Será reconhecida num Futuro longínquo por uma espécie biológica mais evoluída. Tenha paciência, mas é preciso esperar…

PERGUNTA: Não espero, coisa nenhuma! Agora que o apanhei, você quer fugir! Tenha ao menos uma réstea de hombridade, pois falo em nome do público, dos Cidadãos deste país que têm direito à verdade!
RESPOSTA: Têm direito à Verdade?! Mas esse direito ainda não foi regulamentado… Não sabe que se está à espera do Parecer da “Comissão do Livro Branco da Verdade”, de forma a atingir-se um consenso, uma maioria democrática??!

PERGUNTA: Mas então a verdade do Mundo depende dos consensos, das maiorias?! Essa agora… Só me falta dizer que a Verdade é referendada…
RESPOSTA: Desculpe, mas acho graça! Agora é você que me vem com argumentos autoritários e politicamente incorrectos… Daí a pouco ainda me vai dizer que as Leis de Newton poderiam ser válidas se a maioria dos votantes não estivessem de acordo!!

PERGUNTA: Não me faça perder o “fio à meada” … Já nem sei por que motivo chegamos a este ponto. Se não se importasse, limitemo-nos ao essencial, que é…
RESPOSTA: Eu dou aulas de Filosofia e você quer saber…

PERGUNTA: Exacto! Eu querer, bem quero. Mas isto está difícil…
RESPOSTA: A culpa é sua. Está sempre a fazer perguntas, a cortar-me a palavra, não me deixa responder!!

PERGUNTA: Perdão! O senhor é que não me deixa perguntar…
RESPOSTA: Essa é boa! Ó criatura de Deus, pergunte lá!!!

PERGUNTA: Que é, afinal de contas, a Filosofia e como se pode ser professor disso?!
RESPOSTA: Começo por lhe desculpar, por agora, esse “risinho” satisfeito que parece acompanhar a sua pergunta. Mas, se quer a minha opinião, a Filosofia é uma desgraça, uma coisa que até acontece nas melhores famílias. Falo metaforicamente, claro!

PERGUNTA: Claro! Claro! E depois…
RESPOSTA: O Ocidente tem, há 2.500 anos, uma filha única, nascida imprevistamente e que, contrariamente ao que era esperado, não seguiu a tradição familiar, isto é, ficar “pasmada” à espera de ser escolhida para um casamento decente, tendo como tarefa fundamental varrer diariamente o gineceu e espantar-se, “babada”, com a sabedoria dos filhos que, aliás, era a repetição pura e simples do palavreado dos Pais.

PERGUNTA: E essa criatura infame não foi posta na ordem com dois berros e um arregalar de olhos?!
RESPOSTA: Não. Veja lá como são as coisas! Resolveu fugir de casa e ir viver sózinha nas arcadas das Cidades, no exacto local em que se cruzavam as ruas que iam dar ao Templo e às lojas de mercadores que trabalhavam os metais preciosos vindos da Trácia, mesmo à vista das enseadas donde chegavam e partiam navios que faziam a rota do Mediterrâneo.

PERGUNTA: É preciso muito cuidado com as mulheres! É por isso que eu, lá em casa, não permito certas coisas… Tudo nos “conformes”, camisinha lavada, jantar a horas…!!
RESPOSTA: Ah! Sim. E como é que consegue isso?!

RESPOSTA: Deixo-me de Filosofias, ó meu caro! Tudo na “linha”.. Horários para as coisas, disciplina, cada qual no seu lugar…

PERGUNTA: Mas que tem você a ver com o que se passa “dentro de portas”? É que aqui, quem entrevista sou eu!!
RESPOSTA: Foi um deslize, um “à parte”, faça o favor de desculpar! Retomemos a conversa. Perguntava você?!

PERGUNTA: Eu sei lá o que perguntava! Andamos aqui às voltas e quando chegamos a um ponto decisivo, você vem-me com despropósitos, diverge, não “centra a bola”…
RESPOSTA: Permita-me que o cumprimente pela riqueza das metáforas! Vejo que é um desportista, um frequentador de estádios, nota-se aliás pelo músculo que exibe, quer físico, quer mental. Como diria o velho Alves dos Santos, cronista da “Bola” e do antiquíssimo “Domingo Desportivo”, o senhor é coriáceo…

PERGUNTA: Sou quê…??!!
RESPOSTA: Coriáceo.. Olhe que é um elogio.

PERGUNTA: Obrigado! É a primeira coisa que diz que entendo e com a qual concordo. Até o vou deixar continuar com aquela história do Ocidente que tem uma filha que fugiu de casa… Não vejo o que tem isso a ver com a Filosofia, mas dado que sou “coriáceo”, continue lá!!
RESPOSTA: Não leve a mal, por favor! A rapariga é a Filosofia e represento-a assim para dar um tom “picante” à entrevista, você até pode dar um título genérico espectacular, do tipo:” Alto funcionário público anda metido com menina fugida de casa durante o horário de trabalho!”…

PERGUNTA:Só um momento, para eu tomar nota! Já agora, desculpe, como se escreve “urário”, estará bem assim??!
RESPOSTA: Está 75% bem! Só falhou em duas letras! Vejo que é um homem culto. Não estava à espera…

PERGUNTA: Por favor, continue…
RESPOSTA: A Filosofia, dizia eu, foi viver ao ar livre, abandonou a esmerada educação que tinha recebido na casa paterna e decidiu olhar a Natureza sem ser como um palco onde se degladiavam Heróis, Deuses e Demónios, por trás de cada pedra, cada nuvem, de cada onda do mar,

PERGUNTA: Parece-me falta de respeito tudo o que diz sobre essa “menina”! Tanta insolência e está vocacionada a tornar-se um caso de polícia!
RESPOSTA: Vou esquecer, por agora, esse seu comentário. Mas, para seu espanto, dir-lhe-ei que a aventura solitária por ela começada não só provocou, como pensava, olhares de desaprovação e crítica. O número de ouvintes que com ela se sentavam, conversando, na hora mágica do entardecer, antes de se tornarem visíveis as primeiras estrelas sobre o Egeu, ia aumentando dia após dia. E todos traziam, no regresso a casa, um grande silêncio na alma e um estranho brilho no olhar…

Às vezes, levantavam-se de noite e iam até à praia, pegavam numa concha partida e ficavam a contemplá-la como se todos os segredos do Universo aí residissem!

PERGUNTA: Isso, mais que Filosofia, parece-me a descrição duma “paixão” com aroma adúltero! Afinal de contas, rapariga nova, fugida de casa, só, a dar conversa a estranhos até altas horas da noite!?…
RESPOSTA: Digamos que, num certo aspecto, não deixa de ter razão! Mas temo que, pelo seu olhar esgazeado, pelos suores e tremores que começa a ter, esteja a distorcer completamente o sentido das minhas palavras.

PERGUNTA: Tenha cuidado com o que diz! Olhe que eu falo não por mim, mas pelo que pensa a opinião pública…
RESPOSTA: O cavalheiro, quê?? Em nome da “opinião pública”? Ah! Então o caso muda de figura… Tinha-me esquecido que nunca fala por si, mas recebe encomendas, é uma mula de carga da “vox populi”. Sei que sofre com isso. Peço-lhe desculpa…

PERGUNTA: Mula de carga, eu?! Francamente, o senhor é atrevidote…
RESPOSTA: “Mula” é metáfora, por amor de Deus! Se quiser ponha outro animal, um cavalo, um camelo, uma ostra, sei lá…

PERGUNTA: Cavalo? Camelo?!!
RESPOSTA: Pronto! Já vi que não gosta de bichos! Pense em exemplos doutra ordem, talvez carroças, contentores, cabazes…

PERGUNTA: Está a ver porque é que a Filosofia está como está? É que “vocês”, dá-se-lhes a mão e abusam logo… Parece que têm prazer em ferir os sentimentos das pessoas de bem.
RESPOSTA: Por quem é, não chore! Eu só estava a tentar dizer-lhe que a Filosofia era uma paixão e depois, nem sei como, estamos neste lindo estado! Reconheço que exagerei, a culpa é toda minha. Tome lá um lenço e assoe-me esse nariz!

PERGUNTA: Obrigado! Estes meus nervos, ultimamente, não têm andado bem!
RESPOSTA: Olhe, um conselho! Não pense tanto… Não continue a ler à noite o “Scientific American”, evite livros em alemão e, acima de tudo, desista de traduzir para finlandês a “fenomenologia do Espírito” de Hegel…

PERGUNTA: Como sabe que ando fazer tudo isso?…
RESPOSTA: É que as pessoas, hoje em dia, fazem as coisas mais estranhas que se pode imaginar. É isso que dificulta a investigação… Por mais que se procure um “sítio deserto”, já lá está uma família ocupada a grelhar fêveras de porco e a ouvir, aos berros, a “Radio Cidade”.

PERGUNTA: E na Grécia, quando a Filosofia começou, não era assim?
RESPOSTA: Tirando o facto de ninguém saber como era, mas todos mandarem o seu palpite, os primeiros filósofos não tinham esse problema. Por não terem sido ainda inventados, não existiam os júris, os críticos, os especialistas, os mestrados e doutoramentos em Filosofia. Esses foram os únicos felizes a sério, os completamente livres! Tudo estava por fazer, todas as perguntas eram as primeiras perguntas e todas as respostas tinham a inocência e frescura das coisas sem passado.

Quem poderia hoje, sem cair no ridículo, ou “chumbar” nas “provas específicas”, permitir-se falar na “origem de todas as Coisas”? E ainda por cima dizer que tal mistério se resolvia com a “Água” de Tales, o “Apeiron” de Anaximandro, o “Fogo” de Heráclito ou os “Números” dos Pitagóricos?!

PERGUNTA: Água?! Fogo?! Números?! Então é uma espécie de vale-tudo! Assim, também eu…
RESPOSTA: Também o cavalheiro “quê”?! Não me diga que está farto de pensar nisso! É que, pelo decorrer da conversa, não me tem parecido nada…

PERGUNTA: Perdão! Quero eu dizer que, para responder assim, não é preciso muito esforço! Qualquer um é capaz…
RESPOSTA: Claro que é! Basta pensar nisso… Mas é aí que reside o verdadeiro problema. Raramente pensamos “o óbvio”, o excessivamente “próximo”. Lembre-se que o único pedaço de chão que não podemos ver é o que se encontra debaixo dos nossos pés!

PERGUNTA: Ora essa … !!!
RESPOSTA: É o que lhe digo…

PERGUNTA: Até que enfim que o “apanhei”! Olhe, desloco-me um metro para o lado e eis desvendado o seu argumento. Debaixo dos meus pés, estava…
RESPOSTA: Diz muito bem! Estava … Mas agora já não está outra vez, pois o que eu lhe disse é que nunca podia ver o que está sob os seus pés. Entendeu?!

PERGUNTA: !!!…Hmmm!Hmmm! De facto… Olha qu’esta! Bem, adiante!
Dizia-me que a Filosofia procurava a “Origem das Coisas” e veio-me com a história do Ar, do Fogo e dos Números e não sei que mais… Mas que contributo deram para a felicidade das pessoas? Afinal de contas, antes estavam todos de acordo e agora cada qual que escolha!…

RESPOSTA: Nunca por nunca esperei um interlocutor tão sagaz e observador…

PERGUNTA: Obrigado! Eu até por acaso sei que tenho um “feeling” para estes assuntos…
RESPOSTA: E é que tem mesmo, convença-se disso! Vou tentar responder-lhe.

A Filosofia não traz a Felicidade para as pessoas, não é verdade! Basta olhar para a biografia e para a cara dos Filósofos para ficarmos elucidados. Em regra, são feios como trovões, cheios de tiques, desleixados, alguns mesmo recusam-se a tomar banho, quiçá para não destruirem a substância primordial de Tales, outros portam-se mal à mesa e, no caso de serem mulheres — abrenuntio!!! — chegam a recusar-se a cozinhar, a espanar o pó dos móveis e a darem sempre razão aos maridos.

Para tudo dizer numa só frase. Entra a Filosofia numa casa de paz e de bem, começa a tragédia, a balbúrdia, a lógica de “faca e alguidar”.

PERGUNTA: É o que dá quando se larga a trela á cãozoada! Mordem logo a mão que lhes dá de comer…
RESPOSTA: Desculpe, importa-se de substituir “cãozoada” por “gataria”! É que me parece mais apropriado como metáfora… Os debates filosóficos menos civilizados fazem lembrar mais o ritual desses predadores de telhado! Miram-se à distância, incham, ficam com o dobro do tamanho, pêlo eriçado, trocando argumentos nas trevas da noite, enquanto a cidade dorme o sono dos justos.

PERGUNTA: Concedo e agrada-me! Até porque, aquilo que o cavalheiro chama a “Cidade”, é a gente que trabalha, produz e têm de se levantar cedo enquanto “Vocês” perturbam a Ordem Pública… Pode limpar as mãos às parede com a linda imagem da Filosofia!
RESPOSTA: Tem razão! Mas lembro-lhe que essa “Cidade”, mal sai dos braços de Morfeu, desata a buzinar nos cruzamentos, atropelam-se nos hipermercados com a ganância dos esfomeados, palita o dente após a sopa, isto para não ir mais longe… E faço-lhe notar que está a ficar com o pêlo eriçado e começa a ver-ser-lhe a cauda…

PERGUNTA: Irra, que o senhor é malcriado e fere as pessoas! Depois ainda andam com lamúrias sobre a má imagem da Filosofia…
RESPOSTA: Mas confesse lá que esta nossa conversa sempre é mais divertida que andar à procura dum lugar para estacionar. Até lhe vou admitir uma fraqueza. Começo a simpatizar consigo!

PERGUNTA: Pois olhe que não parece! É que o seu palavreado, ultimamente, tem assumido o total descaramento… Ainda por cima, arroga-se pregar sermões, esquecendo-se que “isto” vai para os jornais e que a opinião pública tem mão pesada! Se lhe fecharem a “loja”, depois não se queixe…
RESPOSTA: Vejo que, finalmente, chegou a ameaça, o levar a conversa para “casos de polícia”, a condenação às galés! Logo no momento em que tive a ilusão de que estávamos a entender-nos e em que cometi a imprudência de vislumbrar nas suas perguntas e na sua atitude a esperança duma “Ideia”, de algo que ultrapassasse o grunhido da horda primitiva! Mas o cavalheiro parece comprazer-se na questiúncula, na navalha de ponta-em-mola…

PERGUNTA: …!?? Mas isto é um desaforo! O senhor está constantemente a mudar de “humor”, tanto me trata bem como me insulta e ainda morde a mão que lhe dá de comer?! Olhe que as minhas entrevistas chegam às mais altas instâncias…
RESPOSTA: Por essa, não esperava! Às mais “altas instâncias”?! Já podia ter dito. Não me tinha apercebido que chegava tão longe e tão alto…

PERGUNTA: Pois é para que se saiba!! Talvez agora a conversa siga um rumo adequado! Eu até nem queria dizer isto, mas estava mesmo a pedi-las…
RESPOSTA: Para já, os meus cumprimentos às “altas instâncias”!! E os meus votos sinceros, através de si, para que se tornem cada vez mais “altas”, até atingirem o estatuto de “troposféricas instâncias”!

PERGUNTA: Troposféricas ?!…
RESPOSTA: É! É! “Troposférico” é muito alto. Praticamente em órbita!

PERGUNTA: Até que enfim… Vejo com agrado a sua palidez e as tentativas de se esconder por trás do monte de papéis deste tugúrio onde, em má hora, entrei…
RESPOSTA: Olhe que não me estou a esconder! O que você está a assistir é ao crescimento da burocracia em “tempo real”. Enquanto conversamos, os papéis reproduzem-se através dum complexo sistema de telecomunicações em vigor neste Ministério.

PERGUNTA: Logo vi! É o regabofe da Função Pública…
RESPOSTA: Pois é. De há uns séculos para cá a Filosofia empregou-se! Agora para a colocar de novo ao “ar livre” ainda vai o mundo dar umas voltas.

PERGUNTA: Cá para mim, se fosse eu que mandasse, a Filosofia era privatizada!
RESPOSTA: Ah! Sugere OPV? Acho que comprava. Sempre é uma empresa com tradições e implantação no mercado…

PERGUNTA: He! He! É o que lhe digo. “Isto” fechava e já!! Irra..
RESPOSTA: Vamos então, caro Senhor, ao “bota-abaixo”. Trouxe a ferramenta?!

PERGUNTA: E que rico parque de estacionamento aqui se fazia. Dinheirinho a pingar, a pingar. Plim! Plim!…
RESPOSTA: O meu amigo até muda de côr quando lhe sobem os cifrões ao crâneo. Bolas!

PERGUNTA: É que eu não tenho a sua vida!
RESPOSTA: Tem graça! Comigo também acontece o mesmo. Já agora, desculpe a indiscrição, mas devem pagar-lhe uma miséria. Não?!!

RESPOSTA À CONTRA-PERGUNTA: Nem sabe o que me fazem! Ainda só ontem é que me pagaram os “retroactivos” da cobertura das meias-finais da “Taça”. Ia ao Multibanco levantar 5 contos e a máquina “comeu-me” o cartão..

COMENTÁRIO: Coitado! Só lhe faltava roubarem-lhe a “Toyota Hiace”…

RESPOSTA: Vire essa boca para lá. “Ela” hoje foi com o Teles! Sabe, aquele que saca as “cachas” do Tribunal de Polícia… O “gaijo”, sempre que pode, avança sem cerimónia! Depois cá fica o carrejão a gastar senhas de autocarro! Apertões, baldões, se não me agarrava naquela curva antes de chegar aqui, tinha dado um “jeito”. Mas fiquei com uma “dorzita”.

PERGUNTA: De que lado? Deixe ver…
RESPOSTA: AHHHHHHHHHHHHHH!! Bolas, que já me aleijou.

COMENTÁRIO À RESPOSTA: Pronto! Já parei. Mas é vesícula.

PERGUNTA: Mostre a língua! Mais.. Mais..
RESPOSTA: ??Está bem assim?

PERGUNTA: Perfeito. Abusa de fritos?!
RESPOSTA: Enfim. Lá em casa, para ser mais rápido…

PERGUNTA: Muda os óleos?!
RESPOSTA: Sempre que posso. Pelo menos, de 15.000 em 15.000 KM…

PERGUNTA: Ó homem! Estou a falar da fritadeira!!!
RESPOSTA: Isso é com a patroa. Mas “aquilo” está negro!

PERGUNTA: Bem, vamos agora então ver …
RESPOSTA IRRITADA QUE PASSA A PERGUNTA: Mas eu estou para aqui deitado, a fazer de camelo e você a armar-se em Médico!!!!..

RESPOSTA SERENA: Cuidado! Nós, os Filósofos, somos herdeiros de Hipócrates, o clínico!

PERGUNTA: Isso é prática ilegal da Medicina! Vou denunciar já à “Ordem dos Médicos”. É “limpinho”. Amanhã conte com essa!
RESPOSTA: Lá está você com ameaças. É que não conseguimos estar 5 minutos, sem..

PERGUNTA: E tudo “escarrapachado” a “corpo 26” com chamada à “Última Página”!!!
RESPOSTA: Acalme-se e pense duas vezes. Ou então, basta só uma! Já viu a que se sujeita? A triste figura sua! Expôr-se assim, literalmente, à Filosofia, essa malandra, utilizando palavras suas?!!

PERGUNTA: ??????!!!!! Quê?
RESPOSTA: É! É! Sem tirar nem pôr…

PERGUNTA: Ó amigo! Isto não sai daqui… Pelas almas!
RESPOSTA: Ai sai! Sai! Você tem de entregar a entrevista e eu não lhe digo mais nada. Tenho de ir dar uma aula!

PERGUNTA: E agora?! E eu? Sim! E eu?!…
RESPOSTA: Marque consulta para daí a 15 dias, mas sem hora! Vai esperar…

COMENTÁRIO QUASE-PERGUNTA: Comigo, não há esperas!!! Ou vai ou racha! Não ponho mais cá os pés e a “Entrevistazinha”, diga-lhe adeus…

RESPOSTA: Adeus, Entrevistazinha!

PERGUNTA: Quê?!…
RESPOSTA: Nada! Nada! Vá com Deus e não se esqueça de meter a fralda para dentro…

E, por pura maldade, nem pense que lhe vou explicar porque é que Rousseau batia na mulher…

PERGUNTA: Rousseau?! Aquele que joga como “trinco defensivo” no…
RESPOSTA: Não! Não!.. O do “bom selvagem”! Olhe que está muito em moda nos Ministérios!

COMENTÁRIO IRRITADO: Não há selvagens bons!!! Só Selvagens, e pronto!!

RESPOSTA: Até que enfim. Chegamos a um consenso! Pode sair.

DESABAFO FINAL SEM SER PERGUNTA: Maldita a hora! Nunca mais me apanham aqui!!…

RESPOSTA: HHHMMMMMMMMMMMMMMMMM!! (Longo silêncio e porta que bate.)

Porto, Março, 2001

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