CARLOS COSTA que, até há pouco tempo, estava associado quase exclusivamente ao mundo do teatro, no ano passado publicou o seu primeiro romance, cratera, o que nos motivou a questioná-lo sobre esta aventura e os seus novos projetos. Descobrimos então um escritor preocupado em evitar o excesso de zelo literário de modo a permitir ao leitor um olhar tão original quanto o seu. E passamos a saber do fascínio que tem pelos incidentes do quotidiano capazes de o inspirar a escrever contos ou novelas, os quais o Correio do Porto publicará se assim o entender.
Por Paulo Moreira Lopes
A cratera (com inicial minúscula) além de ser o seu primeiro romance publicado é um de muitos sonhados mas não iniciados, começados mas não finalizados ou prontos mas não publicados?
Nem sonhados e não iniciados, porque recordo os sonhos apenas por algum tempo; nem começados e não finalizados, porque não consigo deixar uma coisa a meio; nem prontos e não publicados, porque deito fora o que não uso.
A opção pela fórmula do romance pode ser vista como um intervalo na escrita teatral, um desafio pessoal ou uma proposta de terceiros?
Não foi um intervalo, porque a escrita teatral foi prosseguindo. Não foi uma opção. Ninguém me pediu. Mas sim, foi um desafio, motivado pela necessidade de encontrar o formato certo para uma ideia, um desejo, que persistiam em não me abandonar.
Para escrever a cratera deixou-se guiar pela inspiração ou esquematizou previamente (passe a redundância) o enredo para depois o densificar (termo jurídico a que deve estar afeiçoado)?
As afeições densificam. Parto de um momento de inspiração; tenho muito poucos, por isso aproveito todos. Depois esquematizo ligeiramente. E acabo levado pelas personagens, como se fossem elas a encontrar o caminho. Por vezes parece que não faço nada, só deixo que aconteça.
O que teve mais relevância na criação da história: falar sobre uma família e a sua reação perante um problema (desaparecimento da Puca ou Puck), abordar o estilo de vida contemporâneo de uma família urbana ou questionar a relação da geografia com o destino daquelas e de outras personagens?
Na criação, acho que o mais relevante foi o desejo de descobrir o que teria acontecido com aquela família. Não com aquela que efetivamente publicou alguns anúncios acerca de um cão desaparecido, mas com a imaginada por mim. O que teria acontecido se (e quando) se tivessem atrevido a sair de casa para resgatar o cão. Desculpem, a cadela.
O livro acaba por ser uma boa campanha sobre Campanhã?
Ui, não sei. E tenho medo de responder. A sério.
Em certas passagens do livro faz alusão a locais do Porto e arredores com bastante pormenor. Para os descrever teve necessidade de os revisitar para não cometer nenhum lapso ou bastou-lhe a memória visual?
Confesso que fiz uma repérage, como no cinema. Fotografei e tudo. Mas depois nunca tive a preocupação, antes pelo contrário, de construir uma geografia perfeita e fui fundindo lugares, tempos, gentes e experiências.
Da leitura da história é flagrante a existência de duas cidades: uma organizada e estruturada (zona alta do Porto/Marquês) e outra caótica (Campanhã e Azevedo) onde a insegurança é muito latente. Esta abordagem teve em vista o quê: sensibilizar os cidadãos para as vantagens de se viver em lugares com o mínimo de ordenamento (jurídico e urbano), podendo encarar-se como um convite para migrarem para lá, ou uma denúncia das más condições em que se vive na periferia?
De um modo geral, acho que essa “insegurança latente” é subjetiva, na medida em que a narrativa avança através das impressões das personagens. Portanto, “inseguros” estão os estrangeiros ao território, porque não o compreendem, não o integram na sua complexidade emocional e política. Mas ainda assim, está também presente essa denúncia das “duas cidades” que a cidade contém.
Entre a ideia de escrever o romance e a sua finalização quanto tempo decorreu?
Se pensar na ideia da narrativa… bem, nem sei, acho que mais de 10 anos. Mas no início não sabia o que fazer com ela, cheguei a imaginar que poderia sustentar um projeto de dimensão performativa, como um outro que entretanto fiz, no mesmo território, transportando espectadores num táxi. Mas a partir do momento em que decidi que seria um romance, acho que uns 3 anos.
Escreve o título com inicial minúscula para não dar importância à dimensão da cratera?
Não sei, acho que aquele C maiúsculo me incomodava. Era como se fosse demasiada assertividade acerca do sentido, dimensões, significado do que nos pode engolir. E se eu tivesse tantas certezas não teria escrito um romance; talvez um ensaio, e aí sim, o título teria maiúscula, ou melhor, maiúsculas, porque seria composto de várias palavras, que exprimissem melhor as minhas certezas.
Será abusivo considerar a cratera como a única metáfora do livro?
Ao longo do processo de escrita, voltava sempre atrás para apagar algum “excesso de zelo” literário, em particular o associado à insistência em comparações e metáforas. Não sei, como se tentasse iludir-me com a possibilidade de não detalhar excessivamente o roteiro sensorial do leitor ao ponto de acreditar que o seu olhar poderia ser tão original e livre como o meu; mas ainda assim, imagino que muitas metáforas terão escapado a esta censura. Peço desculpa. E talvez isto explique que a cratera se destaque – tanto na paisagem como na literatura em si – porque parece a irrupção de uma outra dimensão nunca até aí convocada; ainda que não deixe de poder continuar a ser um dado absolutamente normal, porém estatisticamente improvável.
O Paulo Pimenta teve de correr muito para fotografar o salto do rapaz em paralelo com a correria do cão?
O Paulo Pimenta passa a vida a correr. Isso é uma das coisas que distingue o seu trabalho, como se ele soubesse antes dos outros que uma imagem se vai formar, e que é preciso correr para não a perder. Com frequência vejo-o correr em sentidos contrários aos outros fotógrafos como se só ele soubesse o que vai acontecer a seguir; melhor, como só ele soubesse de onde se deve ver o que vai acontecer a seguir.
Qual o contributo do editor Carlos da Veiga Ferreira para a publicação do romance?
Para além do óbvio – conferir ao romance uma chancela com o prestígio da Teodolito – o Carlos da Veiga Ferreira deu-me a imensa alegria de integrar, enquanto autor, a minha própria história enquanto leitor; porque o seu trabalho de décadas, na Teorema, permitiu-me o acesso a obras que me marcaram enquanto indivíduo, cidadão e artista.
Quanto ao enredo: a passagem sobre os acidentes na rua Damião de Góis não merecia um conto ou uma novela tendo por base aquela problemática?
Eu gosto desse tipo de interrupções no aparente controlo que temos sobre a vida urbana: um acidente, uma obra na via, uma conduta que rebenta. Não resisto a parar e a contemplar a tensão entre caos e ordem, entre os (quase todos) que não se orientam e os (poucos) que salvam o dia. Esta semana acompanhei as alterações ao trânsito provocadas pela necessidade de podar e arrancar uma árvore imensa. Foi fantástico. Era como se os funcionários da câmara fossem uns heróis da Marvel a interromper o quotidiano dos humanos cá em baixo; e havia gruas, escadas, cordas, motosserras e ramos gigantes a cair do céu. Se calhar tenho mesmo de pensar nesse conto ou novela. O Correio do Porto publica?
Tem resposta para a pergunta da Susana: porque é que alguém vai aceitar que lhe ofereçam, no aeroporto, um mapa da cidade em que vive?
Se tivesse resposta, não teria aceite esse mesmo mapa nesse mesmo aeroporto, sem pensar no que estava a fazer.
Pode ajudar o leitor a identificar o rio descoberto pela Susana, já que, por incrível que pareça, o homem de bigode farfalhudo e de camisa de flanela aos quadrados não sabia o nome da linha de água que corria por ali abaixo?
Admito que, por entre abordagens documentais e ficcionais, já procedo a uma mitificação deste território. Mas não deixa de ser verdade que aqui o incrível (a)parece e que meses depois também tu esqueces o nome das coisas para reteres apenas o que são. O meu conselho para o leitor é que faça o mesmo que a Susana: calçado confortável e garrafa de água. Há imensos rios para descobrir.
Uma curiosidade final: como se chamava o amigo do pai da Susana que morava para aqueles lados?
Nunca soube. Eu também sou assim, estou sempre a esquecer-me dos nomes das pessoas. Das caras não. Só dos nomes. Às vezes sinto tanta vergonha que só queria que uma cratera me engolisse.
Pensando no futuro: o que está a escrever neste momento?
Assim mais em regime solitário, acabei de escrever uma peça de teatro que imagino estrear em 2021; e estou a acabar a… como é que diziam acima?… a “esquematização”, é isso, a esquematização de um segundo romance para arrancar no verão.
Em modo mais colaborativo, estou a escrever – com a Ana Vitorino, Mário Moutinho e Sara Barros Leitão – um espetáculo para estrear no final deste ano; e um outro – com a Ana Vitorino e o João Martins – para estrear no final de 2020.
E acabei também há pouco a escrita de uma Peça para Smartphones que estará disponível de 3 a 17 de junho; mas aí tenho mais coautores do que os carateres que ainda aqui tenho disponíveis.
Ah, já me esquecia – porque já está escrito – neste momento chega às livrarias uma edição da Companhia das Ilhas de dois textos meus para teatro (de 2017 e 2018, também com Ana Vitorino e João Martins).