EMERENCIANO não se considera simplesmente um artista plástico, menos um pintor de arte. Diz que carrega a possibilidade das palavras, o que o levou, em 1998, a uma atrevida candidatura ao marginal reino dos poetas, com a publicação da obra: A mão tingida sobre o espelho e Chão prisão do mundo. Decorridos quase 20 anos sobre aquela candidatura, decidimos questioná-lo sobre as aventuras que tem tido no reino dos poetas. Entre outras confissões, conta-nos que está no atelier aquém e além das palavras. Ir & vir é a sua empresa, é patrão e empregado.

Por Paulo Moreira Lopes

A obra A mão tingida sobre o espelho e Chão prisão do mundo, Campo das Letras, fevereiro de 1998, é uma atrevida candidatura ao marginal reino dos poetas?

Não me considero simplesmente um artista plástico, menos um pintor de arte. Não estou desligado da intencionalidade comunicativa, embora não explicite a mensagem, por isso as imagens são reflexos mudos, esperam a duplicação por palavras que os indicam, diria com certeza Michel Foucault. Os sentimentos e os pensamentos que a pessoa do artista carrega são a possibilidade das palavras, desejadas prioritariamente a partir dos outros, por isso espero sem desesperar, e esta percepção leva-me para uma atrevida candidatura ao marginal reino dos poetas.

Quando está no campo da poesia lavra com todo o cuidado, sempre pouco?

Sou dentro em função de fora e fora em função de dentro, enfrento a dificuldade pragmática da vida, mas não desisto, e cruzo a fronteira que separa a pintura da escrita. Comecei pela imitação e representação visual dessa escrita, havia a necessidade de falar, mas todo o cuidado era e é sempre pouco. Com a pintura mostro ou digo mostrando, para dizer e dizer mostrar socorro-me da poesia, mas também de alguns apontamentos ensaísticos.

Aprendeu tarde com os poetas, mas a tempo de perceber o rio?

Seria injusto para com os ensaístas se dissesse que aprendo hoje apenas com os poetas, eles calharam quando dei o passo no caminho do dizer, escrevendo, mas o rio labiríntico já existia, levou-me a procurar também o ensaio e a filosofia. Para ser esclarecido leio de um modo desgovernado, aliás, entendo-me desgovernado na relação com o mundo.

Encosta-se à sombra do espelho quando está cansado?

Sim, encosto-me à sombra do espelho, querendo desfazer a estética por causa da realidade que me pertence, percebendo o centro do mundo que sou e não quero estar só. A aproximação de outros centros do mundo seria admirável sobre todos os pontos de vista, muitos problemas se resolveriam cá e lá, a própria solidão com o seu perturbador volume era afastada cá e lá.

Tem conseguido agarrar a realidade ao pôr a mão sobre o espelho?

Ao pôr a mão sobre o espelho para agarrar a realidade não a agarro verdadeiramente, manifesto o desejo.

No tempo do telefone, se este não tocava, punha-se a brincar com o fio enleado. Hoje como faz com o telemóvel?

Esperar alguém que viesse falar pelo telefone, desejar marcar encontros, também, trazia ansiedade, hoje com o telemóvel não é diferente. Porque viver só e muito tempo inquieta, sobretudo quando se deseja o essencial, coisa do pensamento e das mãos. No tempo do telefone, enquanto esperava o atendimento do lado de lá, brincava com o fio enleado, agora agarro a metáfora do fio, o fio de Ariadne, para me orientar, e todo o cuidado é sempre pouco. Um eterno fio luminoso amarra-me e desamarro ao aproximar-me dos outros, desconhecendo se têm más intenções, se são distraídos com os seus fios de orientação. Por vezes os nossos fios enleiam-se. Viver prevenido, estar atento ao outro, que vem e não, é ao mesmo tempo desejar que traga o seu cuidado ao encontro do meu. Apesar dos cuidados os nossos fios às vezes enleiam-se, e devemos saber desenleá-los. As intimidades conquistam-se pouco a pouco, e quando julgamos que está tudo bem, não está, alguns nós subsistem. A perfeição não existe.

A pintura cura-o?

A pintura enquanto aproximação à escrita e dimensão simbólica na sua relação com a escrita, escrevendo, sim, sem dispensa dos livros de pensamento, eles são fundamentais. A pintura por si só pode ser a ilusão de uma cura, mas está no caminho de um fundo puro que vem e às vezes esqueço, é uma viagem de ida e volta “ao fundo de uma repetição”, afirmaria Gilles Deleuze. Por isso a pintura é uma impura atitude, e Impura Atitude foi o título de uma exposição que realizei na Fundação Júlio Resende em Gondomar.

Quem ronda a passagem estreita?

Um intrometido, às vezes um ladrão percebido tarde, quando nada há a fazer. Mas alguns amigos podem aparecer se me pensarem de cá para lá, e a passagem estreita alarga-se, nascem os sorrisos.

Continua a baralhar cartas gastas e viciadas?

A vida é isso, baralhar cartas gastas e viciadas, e não posso fazer outra escolha, saía do mundo. As traições estão sempre no princípio. No princípio é a traição, creio que foi Gilles Deleuze que escreveu, mas ela perde-se no tempo, algumas são esquecidas, outras lembradas. Há com certeza relação entre cartas de jogar e cartas de escrita, e algumas destas são arquivadas pela dúvida e/ou a sensatez do não envio.

É duro o ensaio da pele?

As cobras mudam de pele, os outros animais não, e os humanos vestem-se, através das roupas procuram uma verdade encobridora de outra, que às vezes é mais do que uma suspeita, no caso de um artista dominado pela sinceridade, a verdade expõe-se sem se revelar completamente. Por isso reflecte-se o ensaio da pele, às vezes duro, na realização de obra que não resumo à pintura.

Faz muito silêncio?

Sim, faz muito silêncio, em meu redor, e em mim ele é dizível, às vezes ruidoso e não perfeito. Os silêncios dos outros são dizíveis, também, poderei querer interpretá-los, mas em certos casos desejar que não se revelem, seria por certo uma perda de tempo.

Habita uma casa lavada de anos?

Habito, a mesma, o meu corpo, e não há maneira de sair definitivamente. Alguma sujeira vem com o tempo e lavo, a minha e a de outros, passam para o arquivo, o pensamento.

Onde aprendeu a escutar as mãos?

Quando me confrontei com o desejo de realizar o sonho de querer ser pintor, de arte, na infância, mas a questão problematizou-se depois com o serviço militar e a guerra colonial. Não cometi um crime grave e fui privado da liberdade, era jovem, e esse tempo ainda pressiona a existência, por isso recorro de vez em quando às mãos escutadas e as palavras nascem.

Que chave guarda no bolso do casaco?

A chave para abrir a porta do meu futuro com gente dentro. É preciso preparar o momento, a grande dificuldade, porque a responsabilidade não é só minha, e a exigência da reconstrução da tribo não é percebida. Há um olhar sobre o estranho que vem de lá para cá, esse estranho poderia trazer a felicidade, e se ela vier a revelar-se experimento a chave que trago no bolso do casaco. Se a chave se adequar, se abrir a porta, eu entro, estou no futuro. Espero não ser demasiado velho para entrar.

É frequente a rua entrar-lhe em casa e parar em frente ao espelho?

A minha rua, aqui metáfora da rua da minha infância, vem de lá para cá, atravessa-me e termina junto ao espelho quando me olho. O motivo não é estético, mas obviamente quero ter boa aparência fora. Mas devo matar a estética ou relacioná-la, e pergunto: onde estão os companheiros da urgência para as soluções da vida cá e lá, num mundo a precisar mais do que imagens? Os pobres não comem imagens e a estética é egoísta, li algures.

O que é que tem água dentro e a noite estrelas refletidas à espera das suas mãos?

Um poço de água límpida e parada justamente para refletir as estrelas à noite e possa ter a coragem de me atirar um dia para apanhar uma. Há quem morra na cama, e eu certamente morrerei numa. No mar seria comido por bocas lavadas, outra hipótese a considerar se me aproximar do desespero, espero estar bem longe dele. Há muita incerteza sobre a minha vida daqui a alguns anos.

Ainda continua a crescer para dentro e dentro sendo?

Sim, a crescer para dentro ou a querer, para ser, princípio do pensamento que leva-me a procurar os livros. Quem não cresce para dentro não cresce para fora, isto é, não pensa dentro para ser fora em função de dentro e dentro em função de fora. Cada pessoa é um anel de Moebius ou labirinto unicursal, ou dito de outro modo, cada um tem a sua solidão, mas nem todos sabem como desfazer-se dela, às vezes é preciso ser-se criativo.

A casa é o lugar onde os diabos mais atacam?

Sem dúvida e à noite a dormir, mas são os fantasmas que me salvam, eles chegam para me confidenciarem os seus segredos, relacionados com os sustos daqueles que se amedrontam. Houve um tempo em que quiseram assustar-me, não resultou, hoje os fantasmas e eu somos cúmplices, posso revelar-lhes os meus segredos. Os diabos são o prolongamento dos inimigos do dia a dia, e devo dizer que não tenho a mania da perseguição. Alguns diabos vieram da guerra lá atrás, entretanto outros surgiram, agradeço-lhes o facto de esquecer de vez em quando os primeiros.

Para poupar energia, por que não apaga a lâmpada em pleno dia acesa?

Se apagasse a lâmpada acesa em pleno dia não seria a pessoa que sou em continuidade criativa. “A lâmpada no reino da imaginação não se acende nunca do lado de fora”, escreveu Gaston Bachelard.

Quando diz que a sorte pode descer à rua e quer lá estar, quer dizer que é apostador?

Não sou apostador, mas apostava se tivesse a certeza de que ganhava o jogo, mas devo admitir que um dia a sorte pode descer à rua e eu quero estar lá, porque ela procurou-me ou foi um acaso feliz. Sou um homem da rua onde os meus semelhantes transitam, passam amigos, conhecidos, neutralizados, e anónimos. De todos espero surpresas agradáveis.

Quem o leva ao rumo da lua?

Um amigo inesperado e leal.

Se a infância é infinita significa que nunca chegará à idade adulta?

Há quem mate a criança dentro, não é o meu caso. A minha criança tem momentos em que adormece, outras vezes ri e pula, eu sossego-a. A quem é demasiado sério, irremediavelmente adulto, e incomoda-se com as traquinices da minha criança, obviamente ela envergonha-me, peço desculpa. A idade adulta não é necessariamente afastamento da infância, é antes a reformulação de princípios essenciais de uma educação que perdurou, ou princípios adquiridos pela percepção da ausência, e a cultura deve envolver-se ou não serve para nada. Todos devemos inscrevermo-nos na educação e na cultura para que o mundo seja perfeito. O caminho é muito exigente.

Por que diz não querer agasalho?

Quero ser contaminado por temperaturas diversas do humano, perceber os caminhos diversos dos seres animados ou quase mortos do mundo em que habito. O homem e o artista são aqui indissociáveis, têm o mundo pela frente e o desassossego (Fernando Pessoa) ou a inquietação (José Mário Branco).

Tem assim tanta força ou fúria para esmagar o relógio entre as mãos?

Deveria ser possível, porque era nossa a vontade, parar o tempo e conseguirmos recuperar o que foi perdido. A culpa da perda de tempo nas nossas vidas não é só nossa. Há quem nos faça perder tempo, e isto aconteceu-me de modo brutal com o serviço militar obrigatório e com outros atropelos à minha liberdade. Nunca tive nem tenho a decisiva liberdade, mãe de todas as outras, a liberdade económica.

Como se apaga uma mão acesa?

Devagar, o que não significa perder tempo, aliás, como diz o provérbio, devagar se vai longe, ganha-se balanço, e o salto pode ser perfeito. Há quem salte com a vara. No meu processo de vida com a mão acesa, ou iluminada, apagá-la é algo que quero fazer lentamente para que o saber da minha construção seja seguro, e permanente a descoberta da minha ignorância. Todos somos ignorantes em graus diferenciados, que ser iluminado pelo outro que sabe mais do que eu é um bem, mas uma ilusão a aproximação a alguns infelizes ignorantes, desapontam-me, e mais do que sentir-me só, estou aqui mal acompanhado.

É devagar que mata os dias?

Relaciono aqui a resposta com a resposta à pergunta anterior, querendo-me iluminado, arrumando um dia a seguir a outro, fazendo coisas, pensando. Lembrando o filósofo, fazendo cortes, revoluções, desejo que me acompanhem aqueles que percebem a necessidade das revoluções e as processem, neste sentido o companheirismo será produtivo e de uma imensa alegria.

Em vez de tomar as rédeas do vento sobre as águas revoltas não seria preferível enfrentar o mar de barco?

Bela ideia, enfrentar o mar de barco, se o mar fosse realmente aquele que tem água, mas o mar a que me refiro existe no chão da nossa existência, estamos nele, e eu olho os animais que voam com alguma inveja. Para estar nas rédeas do vento deveria poder estar a voar, sem obstáculos, afastado das casas e dos prédios das cidades. Sair da cidade onde resido deslocando-me para onde a Natureza se exibe com toda a sua abertura é um descanso. Os incêndios estão a destruir a possibilidade do descanso, agora.

Procura passar com discrição pela valeta, o lugar dos cães?

A vaidade é a riqueza dos pobres de espírito e eu não quero pertencer. E ao ver os cães da minha rua, levados por gente dependente, gostaria poder dar-lhes racionalidade, levá-los a falar para falar com eles. Os cães não são responsáveis pela merda espalhada que me obriga a olhar para o chão, hábito que adquiri, ou quase. Os cães são, conforme algumas pessoas, sãos de espírito, mas as pessoas poderemos responsabilizar. Se os cães falassem poderíamos levá-los a falar com os seus donos, e assistiríamos a interessantes conversas e a algumas discussões.

Para poder dormir costuma prender o sol e libertá-lo de manhã?

Imagem poética sobre uma realidade, a do sol que quando nasce é para todos. Deveria ser possível garantir a liberdade livre, lembrando aqui o poeta António Ramos Rosa.

Além de lavrar no campo da poesia também cava no atelier?

Verdadeiramente lavro em campos distintos, complementares, concorrentes também. Estou no atelier aquém e além das palavras. Ir & vir é a minha empresa, sou patrão e empregado.

É verdade que depois de uma certa idade pesam e são inúteis as cores?

O peso dos anos e uma consciência que não tinha antes, quando comecei, em 1973, a olhar para trás. Às vezes apetece-me abandonar o encanto das cores do Arco Íris, escolher cores compostas, sem dispensa do preto e do branco, a neutralidade e a ausência. Há uma renovação entre nascer e morrer, vimos e vamos, estamos aqui de passagem com o nosso estado normal, sermos doentes desde que nascemos, desde quando estávamos prontos para morrer, li algures, talvez em Montaigne.

Diz que tem uma carta adiada. Não acha que a carta já perdeu a oportunidade?

Outros rumos, outras escolhas, hesitações, arrependimentos, e a carta adiada perdeu a oportunidade, sim, e um dia, no meu último dia, despedindo-me, ainda vou olhar para trás. Ninguém me poderá salvar, é o fim, porque não sou crente. Mas serei mais um que ri melhor, porque serei um dos últimos a rir, vou deixar o meu rasto. Rasto foi o título de uma exposição que realizei em Santo Tirso na Casa da Galeria. E a propósito recordo outro título de uma exposição que realizei na Vila da Feira na galeria Ao Quadrado, Vamos Conversar. Vamos conversar disse ontem, digo hoje, digo amanhã. Estou sempre à espera que venham.

Por último, é possível dizer-nos por que corre o pião desprendido da fita?

O pião roda sobre um eixo sem parar porque não há perguntas e, quando elas têm existência, conforme sucedeu com este questionário, o pião tomba e espera que pegue nele outra vez. As perguntas são fundamentais para que a vida ande, o pião possa ser lançado de vez em quando, de outro modo a fita pode ser desviada da função no jogo, alguém se apodera dela, o próprio jogador dá-lhe um uso que pode ser o do arrumo da vida sem pausa, um estrangulamento. Eu preciso de pausas, podem ser distracções criativas, como a de ver um pião a rodar, e trazê-lo para a palma da mão.

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1 COMENTÁRIO

  1. O meu artista preferido deixou nesta entrevista o testemunho das suas preocupações artístico/literárias. Embora recorrendo (talvez demais) à metáfora, Emerenciano não poderia, porém, a ela furtar-se porque, a perguntas metafóricas, não se poderia responder senão metaforicamente. Na globalidade foi uma óptima entrevista e um óptimo testemunho do arcaboiço intelectual do “meu” Artista/Poeta. Disfrutei de uns momentos culturais aprazíveis. Parabéns a ambos: entrevistador e entrevistado.

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