LUÍS Filipe Cunha é Doutorado em linguística e investigador do Centro de Linguística da Universidade do Porto. Aos oito anos perdeu a visão por completo. Confessa que na altura entrou um bocado em pânico, mas logo percebeu que teria de passar a conviver com a cegueira. Hoje diz que nunca se deixou levar por sentimentos muito extremos como a revolta, mas também está longe de encarar a cegueira com resignação ou passividade. Confrontado com a possibilidade do aperfeiçoamento dos outros quatro sentidos por parte dos invisuais, diz que isso não passa de um mito.

Por Paulo Moreira Lopes com fotografia de J. Paulo Coutinho

Consegue lembrar-se do momento da consciencialização da cegueira?

Sim, penso que sim. No entanto, como, quando era muito novo, tinha ainda alguma capacidade de perceção visual e a minha perda de visão foi gradual e relativamente lenta, a consciencialização da cegueira foi, por assim dizer, acompanhando esse processo. Lembro-me, apesar disso, de um momento crucial em que me apercebi do que se estava realmente a passar. Por volta dos meus sete ou oito anos, conseguia ainda, com auxílio de uma lupa de grande aumento, ler livros impressos a tinta, desde que as letras fossem suficientemente grandes e as condições de luminosidade favoráveis. Aconteceu que, um dia, deixei de o conseguir fazer, mesmo após várias tentativas de adequação das condições para a leitura. Nessa altura confesso que entrei um bocado em pânico e percebi que teria de passar a conviver com a minha cegueira.

Como reagiu emocionalmente a essa diferença?

Como expliquei anteriormente, o processo foi relativamente gradual, pelo que, sob um certo ponto de vista, fui tendo tempo para fazer a minha adaptação progressiva à situação. Claro que, muitas vezes, experimentei (e ainda experimento) um sentimento de frustração pelas diversas limitações que a falta de visão me impõe, mas fui aprendendo que a melhor estratégia a seguir é ir tentando contornar teimosamente os vários obstáculos que se me vão deparando. Nunca me deixei levar por sentimentos muito extremos como a revolta, mas também estou longe de encarar a minha cegueira com resignação ou passividade.

E os seus pais, restante família e pessoas mais próximas?

Em primeiro lugar, devo referir que tenho uma mãe verdadeiramente excecional, que sempre me acompanhou e ajudou a transpor as dificuldades com que me ia deparando. Na década de 1980, quando praticamente ainda não se falava em Portugal de novas tecnologias e das suas vantagens, ela compreendeu que este seria o melhor caminho para a resolução de muitos dos problemas que eu teria de enfrentar no futuro. Graças a ela, fui, provavelmente, uma das primeiras pessoas no nosso país a fazer um curso de Optacon, um equipamento que possibilitava às pessoas cegas terem acesso a qualquer conteúdo impresso, que era transformado, por impulsos elétricos, num “output” tátil. Quando o conceito de audiodescrição ainda nem sequer existia, já a minha mãe me dava a conhecer tudo o que me rodeava através de palavras e descrições pormenorizadas. Sempre me senti muito valorizado e acarinhado por toda a minha família e, nesse aspeto, penso que todos fomos fazendo uma aprendizagem conjunta. Como tenho uma família grande (os meus pais, quatro irmãos, tios e, na altura, também os avós), recebi sempre todo o apoio de que precisava. Ainda hoje associo muitos dos livros que povoaram a minha infância às diferentes vozes das pessoas que mos leram. Quanto aos colegas, também nunca experimentei grandes problemas de adaptação ou convivência. Como tive a sorte de ser um bom aluno, eles perceberam que eu poderia ajudá-los quando tinham dúvidas sobre alguma matéria e, assim, também acabava por ser perfeitamente natural eu pedir-lhes auxílio sempre que não conseguia fazer alguma coisa. Tive, quase sempre, e nos diferentes graus de ensino, professores excelentes, que, em diálogo comigo, iam procurando as melhores formas de adaptar os conteúdos e a melhor maneira de ensinar para que eu pudesse acompanhar as aulas sem problemas. Como, desde sempre, convivi com pessoas normovisuais e me tentei integrar nas suas rotinas e atividades, nunca senti especiais dificuldades em termos de integração social pelo facto de ser cego. Por vezes é necessário fazer algum esforço para que as pessoas compreendam que a falta do sentido da visão se resume a isso mesmo, mas, com alguma flexibilidade, as coisas não são tão difíceis como possam parecer à primeira vista.

Quais as estratégias que adotou para diminuír a dependência de terceiros?

Devo dizer, em primeiro lugar, que não tenho uma grande obsessão pela ideia de independência, no sentido em que estou plenamente consciente de que, só por mim, não consigo resolver todos os obstáculos que se me impõem. Não conheço nenhum ser humano que seja verdadeiramente autossuficiente. A vida em sociedade mostra-nos que, de uma forma ou de outra, vivemos em interdependência recíproca e, ao longo da nossa existência, todos precisamos uns dos outros. Nesse sentido, não sinto qualquer problema em aceitar ou pedir ajuda sempre que considero isso inevitável. Mas, obviamente, gosto de ter a minha autonomia e as novas tecnologias vieram trazer respostas bastante satisfatórias a esse nível. Quando penso em autonomia, tenho de pensar em estratégias que sejam o mais eficientes possível, ou seja, que me permitam realizar o que quero mas sem que isso se acabe por transformar num esforço sobre-humano. Muitas soluções tecnológicas como os leitores de ecrã, as linhas braille ou os GPSs falantes têm, felizmente, vindo a dar resposta a muitas das dificuldades que uma pessoa cega tem de enfrentar no seu dia a dia ao permitirem transformar estímulos visuais em informação que pode ser captada por outros sentidos. De qualquer modo, tenho uma postura bastante pragmática a este respeito: vou procurando encontrar as soluções mais adequadas à medida que vou sendo confrontado com a necessidade de resolver os desafios com que me deparo.

No pressuposto de que a falta de visão aumenta as potencialidades dos outros sentidos, qual o sentido, no seu caso, mais desenvolvido comparativamente às pessoas que o rodeiam e que não são cegas?

Não estou seguro de que a falta de visão aumente necessariamente as potencialidades dos outros sentidos; o que acontece é que as pessoas cegas acabam por fazer um melhor aproveitamento das possibilidades que os diferentes sentidos oferecem em seu favor, por vezes de uma forma bastante diferente. Em minha opinião, um caso paradigmático é o tato. Tipicamente, uma pessoa normovisual presta muito pouca atenção às suas potencialidades. Para uma pessoa cega, no entanto, a utilização das suas virtualidades é fundamental: é, por exemplo, através do tato que eu consigo ler e reconhecer a maioria dos objetos. Como as pessoas que veem não necessitam de recorrer a este tipo de estratégias, não treinam o tato da mesma maneira que uma pessoa cega, daí a sensação de que os cegos têm os sentidos mais “apurados”. A questão é que a falta da visão obriga a uma readaptação dos outros sentidos e ao seu aproveitamento em situações em que, para um normovisual, estes podem, por assim dizer, ser mais facilmente dispensados.

Que proveito tem tirado dessa vantagem, se é que existe?

Não lhe sei responder a essa questão com facilidade. Por vezes não nos damos conta dessas vantagens, a não ser que surja uma situação concreta que as ponha à prova. Por exemplo, quando, à noite, existe uma falha de eletricidade em casa, e enquanto não são disponibilizadas fontes de iluminação alternativas, fico claramente em vantagem perante as pessoas normovisuais que me rodeiam, porque tenho muito maior facilidade em me movimentar e em encontrar objetos, por exemplo.

Quando conversa com as pessoas, só o facto de as ouvir, permite-lhe aperceber-se do estado emocional das mesmas e eventualmente do seu caráter? Se está a mentir, por exemplo?

Só algumas vezes. Esse tipo de identificação é muito variável e depende de um grande conjunto de fatores. Quanto ao estado emocional, talvez seja mais fácil a sua identificação, porque existem pistas concretas no tom de voz, na prosódia, ou mesmo na energia colocada no fluxo das palavras que podem auxiliar a caracterização das emoções que uma pessoa está a sentir no momento. Mas existem variações muito significativas de acordo com os nossos interlocutores: nem todos deixam transparecer o seu estado de espírito com facilidade. No que respeita à identificação de uma mentira, isso torna-se ainda mais difícil, na medida em que não depende tanto das pistas puramente auditivas (excluo, naturalmente, as pessoas que não conseguem mentir sem ficarem nervosas, o que se pode identificar facilmente por padrões de voz): salvo se houver incoerências no discurso, é praticamente impossível saber se uma pessoa está ou não a mentir. Mas, como é evidente, essa análise do conteúdo discursivo não depende da falta ou não de visão para ser efetuada. Quanto ao caráter de uma pessoa, não acredito que possa ser captado mediante uma simples conversa ou apenas por pistas sonoras: é uma questão bem mais complexa que, em minha opinião, transcende em muito um conjunto de dados puramente sonoros, percetíveis através da voz.

Em caso afirmativo, que uso faz desse segredo ou é-lhe indiferente?

Como disse, só muito raramente consigo fazer esse tipo de identificação e apenas em casos muito evidentes. Portanto, no que me diz respeito, esse “segredo” simplesmente não existe, é um mito…

Que noção tem da luz e da sua ausência?

Conservo ainda alguma perceção luminosa, que me permite, por exemplo, distinguir se é dia ou noite. Mas, neste momento, é o máximo que consigo fazer. No entanto, é o suficiente para ter a noção da diferença entre os conceitos de claridade e de escuridão.

Quando pensa numa maçã pensa em quê? No sabor, no odor, no tato do objeto ou das letras em código braille, no som da palavra ou de um dado momento da vida em que aquele objeto o marcou?

Penso essencialmente na sensação tátil que me é proporcionada pelo contacto com o fruto. Tratando-se de um objeto com que lido frequentemente, em que toco praticamente todos os dias, é a parte tátil que mais se torna saliente. Mas isso pode variar com os diferentes objetos: se pensarmos, por exemplo, numa casa, já não é a sensação tátil que predomina, mas, por exemplo, cheiros ou sons que lhe possam estar associados. No entanto, e sempre que tenho proximidade tátil com os objetos, é esta sensação que normalmente predomina sobre as outras e que me proporciona uma noção mais aproximada da sua configuração. Por exemplo, para conhecer os animais, arranjei a estratégia de colecionar modelos em miniatura, para que me fosse possível ter a noção do seu formato (não seria fácil pedir para tocar em leões ou tigres num jardim zoológico). De qualquer forma, no meu caso, o tato é provavelmente o sentido que desempenha o papel mais importante na perceção dos objetos que me rodeiam.

Acha possível criar um discurso próprio dos invisuais, com exclusão das imagens, ou seja, assente somente nos outros sentidos?

Não, simplesmente porque as línguas faladas pelos seres humanos incorporam de forma muito evidente as perceções visuais na sua estrutura. Portanto, prescindir dessa parte da linguagem equivaleria quase a falar uma língua diferente, o que só serviria para aumentar as barreiras à comunicação… O que se pode fazer é, por vezes, traduzir a parte visual em conceitos mais abstratos ou estabelecer comparações que sejam apreensíveis pelas pessoas cegas. Mas não me parece fácil, por exemplo, traduzir noções como as respeitantes às cores ou a graus de luminosidade com o recurso a outros elementos sensoriais.

Por não se distrair com as imagens, acha que o seu pensamento se tornou mais reflexivo, mais propenso a questionar do que a descrever?

Não necessariamente. Penso que preciso das duas facetas: se faz sentido questionar, é também necessário encontrar respostas e a descrição, mesmo que feita sobre meios alternativos que não os puramente visuais, ajuda a compreender o mundo que nos rodeia e é fundamental para percebermos como as coisas funcionam.

Será que podemos falar de um pensamento dos invisuais, que tendem todos a pensar do mesmo modo, a terem reações idênticas e um caráter próprio?

Decididamente não. As pessoas cegas que conheço são todas muito diferentes entre si, revelam comportamentos e reações muito díspares e têm conceções da vida por vezes bastante divergentes. Não acredito nada num pensamento unificador entre pessoas cegas. Aliás, se fizer entrevistas como esta a vários indivíduos com cegueira, chegará provavelmente a uma conclusão semelhante…

Existem profissões à medida dos cegos?

Não, em princípio não creio. É verdade que as profissões que se baseiam crucialmente no sentido da visão estão, à partida e por razões óbvias, vedadas às pessoas cegas (estou a pensar, por exemplo, em casos como os dos motoristas ou dos desenhadores). De resto, e desde que sejam acauteladas as devidas adaptações para que a falta do sentido da visão não se torne um obstáculo, qualquer profissão pode ser exercida, com maior ou menor dificuldade, por uma pessoa cega.

E profissões onde o desempenho dos cegos é superior à média das restantes pessoas?

Também não creio. Tudo irá depender do treino, do gosto, da vontade e do empenhamento do indivíduo, e estas são características que não se correlacionam com o facto de se ser cego ou não. Por exemplo, tradicionalmente diz-se que os cegos teriam uma propensão natural para a música, dado que esta atividade se pode relacionar intimamente com o sentido da audição. Por experiência própria posso garantir que isso não é verdade: nunca tive habilidade nem apetência para uma carreira musical e sempre encontrei grandes dificuldades na aprendizagem da música.

E, ainda, profissões novas a desempenhar somente por cegos?

Não. Qualquer profissão que possa ser desempenhada por cegos, pode igualmente ser exercida por qualquer outra pessoa. Tanto quanto eu saiba, as pessoas cegas não dispõem de quaisquer características diferenciadoras, enquanto grupo, que permitam fundamentar uma crença desse género. A única diferenciação prende-se com a ausência de perceção visual, que define a cegueira, e isso mais depressa se pode converter num entrave do que numa vantagem num mundo que se centra de forma tão fundamental na importância da imagem.

Como está a ler este questionário? E como o vai responder?

Estou a lê-lo na minha linha Braille, um equipamento que, ligado ao computador e associado a um leitor de ecrã, permite converter texto em código Braille. Vou responder no teclado qwerty do computador, pois, desde muito cedo, aprendi datilografia e é, neste momento, a forma mais célere que tenho para escrever.

A leitura e consequente reflexão deste questionário ajudou-o a pensar a cegueira de outra forma?

Sim, naturalmente! Sempre que somos confrontados com novas questões, com desafios a que nunca tínhamos sido expostos, obrigamo-nos a encarar as nossas conceções sobre o tema que estamos a abordar com um novo ponto de vista, de uma maneira diferente.

Acha útil abordar esta questão de uma forma tão frontal e desinibida?

Sim, naturalmente, não só porque me ajuda, enquanto indivíduo cego, a clarificar e a confrontar certas ideias mas também porque pode fazer com que as pessoas que eventualmente leiam esta entrevista sejam, também elas, forçadas a repensar e reequacionar as suas crenças e acabem por descobrir algo de novo.

Obrigado por ter aceite o desafio.

Eu é que agradeço a oportunidade!

NOTA DO EDITOR: foi por intermédio da professora Regina Gouveia que conhecemos Luís Filipe Cunha. Eis o seu comentário ao resultado do desafio:

“Não trocaria a minha profissão por nenhuma outra. Fui professora de Física e Química desde os 21 aos 60 anos e só me aposentei porque a burocracia tomou conta de tudo até da nossa profissão, deixando-nos pouco tempo para o que é essencial – a partilha de saberes e as relações humanas, muito em particular as relações professor/aluno. E neste campo vivi experiências belíssimas, entre elas a que tive com o Luís. Até hoje mantemos uma forte amizade (o que, felizmente, me acontece com muitos outros ex-alunos). E não foram as excelentes qualidades intelectuais do Luís que mais me marcaram, mas sim as suas qualidades como pessoa.

…fui aprendendo que a melhor estratégia a seguir é ir tentando contornar teimosamente os vários obstáculos que se me vão deparando. Nunca me deixei levar por sentimentos muito extremos como a revolta, mas também estou longe de encarar a minha cegueira com resignação ou passividade.

Este excerto da belíssima entrevista retrata bem o Luís.

Fico feliz por ter propiciado, embora de forma involuntária, o encontro entre ambos.”

Partilha

6 COMENTÁRIOS

  1. Gostei muito de ler esta tua entrevista. Um abraço, Luis. Gostava de te ver mais vezes na rua sozinho como ja tive oportunidade de ver mas já há bastante tempo.

  2. Obrigado pelo comentário! Quando não tenho boleia, depois das reuniões na faculdade, venho muitas vezes pelos meus próprios meios para casa… Mas a mobilidade, principalmente numa cidade como o Porto, é algo que deveria ser bastante melhorado para realizar os percursos com conforto e segurança. Espero que, rapidamente, a tecnologia também venha dar aqui uma ajudinha. Abraços.

  3. Olá Luis!
    Gostei que me tenhas enviado este teu trabalho.Está um retrato de ti muito bem feito. Só te esqueceste de dizer que és o meu assessor informático.Quando tenho problemas no meu computador, já sei quem resolve . O Luis!
    beijinhos
    Titó

  4. Como já te disse via “mail” considero um imenso privilégio ter sido tua professora.
    Vi que o João Melo foi o primeiro a comentar.
    Um grande abraço para ti e outro para o João Melo quando estiveres com ele.
    Regina Gouveia

  5. Obrigado, tiozinho, pelo comentário! Não falei na assessoria informática porque é um serviço exclusivo para clientes muito especiais! Beijinhos.

  6. Olá, Dr.a Regina! Foi também para mim um enorme privilégio e uma felicidade tê-la como minha professora. Eram fantásticas as nossas aulas experimentais, que, ao longo do meu percurso, me foram sempre de grande utilidade para muitos outros desafios ao longo da vida. Um enorme abraço.

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here