ÓSCAR Possacos publicou três livros de poesia: Lugar quebrado (1982), Prémio Nacional de Literatura Juvenil Ferreira de Castro (1983); Húmida viagem (1984) e Cantaria (julho de 2014). Da última obra selecionamos alguns versos que depois devolvemos ao poeta em forma de pergunta. Um desafio para desvendar os mecanismos da criação poética. Entre outros segredos ficamos a saber que usa a linha imaginária para coser devagar a casa, na costura dos beirais, que se engana muito e que tem sempre muitas dúvidas. Mas quanto ao desafio não tem dúvidas: valeu o adiantado da hora.

Por Paulo Moreira Lopes

Não sabe o caminho por não saber para onde há de ir ou porque nunca foi ao lugar que quer ir?

Pelos dois motivos, alternadamente ou em simultâneo, mas, francamente, o que eu gosto mesmo é de achar. Prefiro assim, engano-me muito e tenho sempre muitas dúvidas. Onde já ouvi isto ao contrário?

É clandestino mesmo vivendo na legalidade?

Aqui os que vivem na legalidade são os mais clandestinos.

É verdade que estamos onde somos?

Verdade verdadinha, só o ser não engana. Mas, se quisermos, podemos sempre fingir que não estamos.

Como se ata alguém a um rio corrente?

Talvez com a corrente.

Pode explicar como se pensa e escuta os passos?

Pensar é mais difícil, passa por exercícios de medição expedita, avaliação das direcções e sentidos, para não pôr o pé em ramo verde como sói dizer-se. Quanto a ouvir é simples, enquanto a velocidade do som não mudar e enquanto não corrermos assim tão rápido.

Quando escreve poesia é para libertar as palavras das correntes?

Não é possível libertar aquilo que é livre. No entanto, admito já ter havido algumas tentativas de captura, mesmo ortográficas.

Ao caminhar de manhã no aqueduto costuma molhar os pés?

Banhos por dentro e por fora, de madrugada, na melhor tradição profana.

Um corpo imiscível é um corpo que não liga com nada ou não liga a nada?

A meu ver, nem uma coisa nem outra. É mais assim-assim, tipo água nos sólidos, que se encosta, toma forma e que, às vezes, se emulsiona.

Costuma tomar banhos de alegria?

Tem dias. O tempo tem muitos humores e nem sempre chove de feição.

Sabe como se atravessam os dias desertos?

Não sei. Prefiro deambular nas margens. A solidão mata.

Já alguma vez esteve no sítio que foi embora?

Acontece-me muitas vezes porque “todo o Mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. Quem sou eu para contrariar Camões?

É perigoso andar a cavalo fio, nas costas do vento?

As quedas. As quedas são perigosas. Se for num cavalo alado o risco é maior.

Contorna-se bem a curva acinte de um bocejo?

Devagar, como todas as curvas acintosas ou não. É só esperar que depois da curva apareça a recta. Está nas leis.

E como se desperta a mentira deitada de um bocejo?

Desmascara-se. Se é mentira, é verdade que não é preciso acordá-la.

Que linha se usa para coser devagar a casa, na costura dos beirais?

A linha do horizonte, por vezes, não é adequada. Eu uso sempre a linha imaginária e até hoje não tenho queixa.

Porque pensa morrer de lado?

Morre-se melhor. Disseram-me. Não tenho experiência própria.

Demoram mais a passar os dias desfiados em contas de vezes dois?

O dobro. Se depois dividirmos o resultado por dois, fica mais ou menos a mesma coisa.

Precisa às vezes de ser coberto de arregaços?

Se não fosse a indeterminação implícita no primeiro verso, diria que foi mais para rimar com sargaço, abraço, regaço.

São fiáveis as palavras sem saída?

Tão fiáveis como os Homens sem saída. Às vezes, transbordam no cerco, doutras usam a entrada, eu acredito, sagradamente acredito, nos líquidos que vão e voltam em aparente química.

O que se ouve quando se escuta o fuso horário?

Com ouvidos treinados e encostando o ouvido à terra, podem ouvir-se o trote dos cavalos e outros movimentos à distância. Estranho hábito, convenhamos. Mesmo assim recomendo o mesmo método. O que se ouve, não digo. Cada um que escute o seu.

Não sente cócegas quando os pássaros lhe pousam nas linhas da mão aberta?

Não tenho cócegas nas mãos.

Sabe ou desconfia qual é a coisa que nos traz pelo braço de algum lugar?

Ando desconfiado. É o segredo que nos arranca às margens. De qualquer forma assiste-lhe a presunção de inocência.

Também tem livro de ponto?

Livros de ponto tenho vários e campainhas, muitas. De segunda a sexta marcam o ritmo dos dias. Diz quem manda que são os instrumentos adequados para marcar o ponto. Livram-nos do toque de caixa.

O funcionário quando está vazio vigia de perto o silêncio. Quando estiver cheio vigiará de longe?

Deve vigiar-se sempre o silêncio. De perto fala ainda mais nítido.

Qual o sabor de uma réstia de sol?

Quase não chega a ter sabor.

Será que o desafio valeu o adiantado da hora?

Merece. Merece, mas falo por mim.

Publicado originalmente em 24 de Dezembro de 2015

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3 COMENTÁRIOS

  1. Só uma pessoa boa e simples pode dizer coisas tão belas.Não sei de onde lhe vem esta forma de pensar e sentir mas uma coisa eu sei é que o que ele diz é agradável ao meu espírito.A conexão entre as coisas que existem e as que imagina e a forma como as apresenta são verdadeiramente belas.
    Era bom que algumas pessoas tivessem a possibilidade de lerem os seus livros e de se cruzarem com o ele.

  2. Sublime esta forma de falar! Como que nos faz viajar sincrónica e inexoravelmente estabelecendo conexões constantes entre o ser o sentir o real e o imaginário. Mas um imaginário tão real quanto é o viver em si e para além de si!E uma forma tão poética que transporta para tantas formas de sentir….Parabéns Óscar! Tenho muito orgulho em ter-te como colega! E… pegando nas tuas palavras “os que vivem na legalidade são os mais clandestinos…” Fiquei com imensa curiosidade de ler os livros!

  3. O único livro que tenho do escritor e amigo Óscar Possacos intitula-se
    “cantaria”, obra poética de que gostei bastante e que também sustenta
    em parte a entrevista de Paulo Moreira Lopes.
    Estou com curiosidade em ler o seu livro anterior “´Humida viagem”(1984).
    Parabéns ao Poeta, Óscar Possacos!

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