Marcámos encontro com o poeta em Vila Real, onde vive. No caminho, viadutos sobre rios, escarpas, e depois uma espécie de limbo, um túnel que nos conduz na escuridão e nos larga de repente numa luz já de Inverno, entre nuvens confundidas com montanhas. A. M. Pires Cabral (Chacim / Macedo de Cavaleiros, 1941) esperava-nos junto ao Grémio Literário que tem o seu nome. A Biblioteca de Macedo de Cavaleiros toma-o também como patrono, mas o poeta e o prosador afastam com um gesto de inconformismo essa espécie de mitologia regional de vate transmontano, que os leitores mais atentos bem sabem que não faz jus à complexidade e subtileza da sua obra. Se o primeiro título, Algures a Nordeste, funda uma poética que se edifica a partir de um lugar isolado e em abandono, com suas árvores, bichos e ancestrais costumes, os versos desdobrar-se-ão também, desde o início e numa obra já extensa, em austera mas por vezes desabrida confessionalidade ou em catilinárias contra poderes vários; é vivo o diálogo que mantém com a tradição literária e tocam-nos as meditações desassombradas que não evitam as grandes questões da existência. Nessa tarde em que a selecção nacional de futebol era eliminada de um campeonato do mundo que atraía todas as atenções, A. M. Pires Cabral faz o elogio da caneta de tinta permanente e mostra-nos a máquina de escrever que conheceu, palavra a palavra, o seu primeiro livro; põe-nos depois nas mãos uma edição fora do mercado de Como se Bosch Tivesse Enlouquecido, um título marcante da sua obra. Caem-nos os olhos num poema, como se aí tudo se dissesse:

SEMENTE DE SEMENTES

Derramado, semente de sementes,
aqui jaz o das blasfémias,
das amotinações.

 Alguém perguntará: de que valeu
amotinar-se, se nenhum sinal
de rebelião aflora ao rés do solo?

Só ervas. Tudo o mais
retido no esplêndido, impassível
segredo do húmus.

Talvez pudéssemos começar pelo mais circunstancial. Como descreveria o seu local de escrita? É uma ilha, uma cela, um santuário?

Das três hipóteses, “ilha” é capaz de ser a que se aproxima mais, mas é ilha aberta. Toda a minha família tem acesso ao gabinete. Digamos que eu não me isolo lá, entra quem quiser, e não é preciso bater à porta. “Cela” não gosto muito, porque tem conotações monásticas e lembra coisas como penitência, jejum, abstinência, e não há disso no meu gabinete… Por outro lado, “santuário” também não serve. Se formos pelo sentido da palavra em português, é o sítio onde se adora um santo; ora, não há santos ali, portanto não há hipótese nenhuma de aquilo ser um santuário. Podemos pensar: será um santuário à inglesa, que significa “refúgio”, reserva natural para animais em perigo de extinção? Ora, como não me considero em perigo de extinção, penso que “santuário” à inglesa também não dava. Portanto, das três hipóteses, a mais próxima é mesmo a “ilha”, mas, como digo, uma ilha aberta, onde pode desembarcar e é bem-vinda qualquer pessoa.

Há no seu “habitat” de trabalho objectos indispensáveis à sua volta ou é absolutamente supérfluo o que o rodeia no momento da escrita? Deve ter luz, silêncio, música, ruído?

Esforço-me por criar um ambiente amigável, que é sempre uma condição favorável para que as coisas saiam bem. De tudo o que citam, só o silêncio é verdadeiramente importante para mim. Mas ruídos há sempre numa casa: tenho uma família, de quando em quando visitam-me os quatro netos que brigam e fazem uma barulheira muito incomodativa e paralisante da criatividade literária. Uma pessoa tem de adaptar-se ao ruído, que hoje em dia é uma coisa inescapável, que a todos atormenta e condiciona: ouço o vizinho de cima, ouço o vizinho de baixo, ouço o vizinho do lado… De modo que, aos poucos, vou-me adaptando a um mundo cada vez mais barulhento.  Música… Às vezes, não sempre, apetece-me escrever sob a influência da música. E que música é que gosto de ouvir?  Certos trechos de música erudita, daqueles mais populares,  que toda a gente conhece e aprecia, porque é bom que se diga que não sou melómano e a melodia é o que mais aprecio na música. Às vezes também coisas do José Afonso, memória dos tempos de Coimbra… O José Afonso que eu ouço não é talvez o que agrada à maioria das pessoas, ou seja, o cantor épico. Eu vou mais pelo José Afonso lírico, o da primeira fase, em que tem ainda uma voz de frescura incomparável. De quando em quando, não desgosto de ouvir coisas de Míkis Theodorákis. Uma vez passei pela Grécia e fiquei apaixonado pela música dele, que desconhecia em absoluto, e onde há meia dúzia de canções que gosto de ouvir, nomeadamente aquele tocante “Canto para os Irmãos Mortos” ou o envolvente “Kaimos”. Por vezes apetece-me um trecho ou dois de Andrew Lloyd Webber, o homem do Fantasma da Ópera e do Jesus Christ Superstar, do Don’t cry for me Argentina, etc., cuja música tem uma assombrosa riqueza melódica e uma elegância a que sou muito sensível. Também ouço música do povo, mas não de todo o país. O vira, por exemplo, ou o corridinho, ou o fandango, não me dizem nada. Gosto, sim, do folclore açoriano (que mexe mesmo comigo…), do alentejano, também do da Beira Baixa, a “Senhora do Almortão”, esse género de música… Mas o silêncio é de facto uma condição, não direi indispensável, mas importante. E tanto assim é, que já cheguei à conclusão de que o que escrevo na casa que temos em Grijó, à beira da Serra de Bornes — onde, a bem dizer, tenho todo o silêncio que quero, às vezes até demais — sai quase na sua forma definitiva, quase a não necessitar de correcções, de trabalho de lima. Quanto a objectos, sim, gosto de ter disponíveis todos esses objectos que dizem respeito a um escritório: agrafador, furador, régua, clips, molas para papéis, canetas várias. Sim, é verdade, não dispenso essa coisa que quase já não se usa, que é a caneta de tinta permanente. Um bom aparo de caneta de tinta permanente a correr sobre uma folha de papel macio é uma delícia. Embirro com esferográficas na mesma proporção em que gosto de canetas. E, atenção, tenho na minha secretária, neste momento, nada menos de cinco canetas, cada uma com tinta de sua cor (azul, preto, roxo, verde e sépia), que vou usando alternadamente para escrever alguma carta ou tomar apontamentos, raramente para as lides literárias. Para essas, uso directamente o computador, seja ficção, seja poesia, seja o que for. O computador é para mim uma peça fundamental. Quando por qualquer motivo estou sem computador, é quase como se estivesse despido.

Nunca experimentou escrever em cafés?

Não, no café não, é escusado… Aliás frequento pouquíssimo, é muito raro entrar num café…

Nessa casa de Grijó há decerto muitos livros. Como descreveria a sua biblioteca? Está mais próxima de uma ideia de “cosmos” ou de “caos”? Como a organiza ou desorganiza?

Eu convivo muito bem com os livros. A minha biblioteca não é grande, penso que andará perto de dois mil volumes. Já é alguma coisa… Está distribuída por vários locais. Tenho a parte principal aqui na minha casa de Vila Real. No escritório estão fundamentalmente os autores portugueses e os livros de referência: dicionários, enciclopédias. Juntar ali os escritores nacionais, já é de alguma forma uma preocupação de criar um “cosmos”. Na mesma casa em Vila Real, no quarto a que chamamos dos netos (de quando em quando vão lá dormir…), tivemos de fazer numa parede estantes de alto a baixo (até gosto que os netos ao acordar olhem em frente e a primeira coisa que vêem sejam livros, pode ser que se apaixonem pelo livro, como eu próprio me apaixonei…). Essas estantes são ocupadas com os escritores transmontanos e alto-durienses e com livros e revistas sobre a cultura transmontana em geral: história, etnografia, etc. Em Grijó, tenho, ao lado de livros de autores diversos que não julgo provável que precise de consultar, alguns autores universais. Ora bem. A preocupação que tive em distribuir os meus livros conforme o conteúdo, é já uma forma de “cosmos”, digamos assim. Portanto, eu diria que a minha biblioteca está mais ou menos organizada… Organizada não será bem o termo. Digamos que é um “caos” que aspira a ser “cosmos”. A organização tenta ir também até à ordem alfabética, mas aí levantam-se complicações várias que perturbam o esquema. E como praticamente todos os dias me entram livros pela casa dentro, o espaço começa a ser pouco, e a minha Mulher e eu já andamos a acarinhar a ideia de adquirir mais umas estantes. O problema é: para pôr onde?

Considera-se um bibliófilo?

Se tomarmos a palavra no sentido de aquele que gosta de livros, sou bibliófilo, sim senhor. Adoro livros, e mesmo, contrariamente a muitas pessoas, gosto deles também como objecto: um livro bem concebido, com “lettering” e “design” bonitos, com bom papel, com boa impressão, para mim é uma tentação, independentemente do conteúdo. Agora, bibliófilo no sentido de aquele que está a par da problemática da edição e do livro, isso não sou…

Tem uma rotina de escrita, rituais?

Rituais: a palavra não me agrada muito, porque também, de alguma forma, remete para o religioso e para uma certa obrigação de cumprir normas. Não, a minha escrita não precisa de rituais nem de rotinas. Nem de nenhum paraíso artificial: não fumo, bebo pouco café, álcool ainda menos. Se quiséssemos usar uma comparação um tanto chocarreira, diríamos que a escrita é como qualquer outra necessidade básica do homem: é quando apetece…

Não sacraliza, então, esse hábito de escrever?

Se sacralizar significa emprestar um sentido transcendente às coisas, não sacralizo nada, por isso também não sacralizo o acto de escrever, embora me pareça que, quando escrevo, estou num mundo diferente. Diferente, sim, mas não sacralizado. Escrever é um acto banal, como comer ou tomar banho… Se a pessoa nasceu com algum talento para escrever, é bom que o exerça, mas não o encareça de tal maneira que faça da escrita uma coisa dada pelos deuses que coloca o escritor num patamar superior ao da outra gente.

Mas procuremos as origens: o que aconteceu para decidir publicar, num certo dia, já aos 33 anos, em Macedo de Cavaleiros, numa pequena edição de autor, Algures a Nordeste?

Antes de responder, seja-me permitida uma pequena rectificação. A tiragem não foi assim tão pequena: foi de mil exemplares. Do meu último livro de poesia, publicado em 2021, terão saído quando muito uns 500. Já vê que não foi uma pequena edição. Mas foi uma loucura de quem não fazia então a menor ideia de como é o mercado da poesia. Adiante. Muito antes de publicar o livro de estreia, já vinha escrevendo os meus versos, naturalmente, mas o destino deles era, das duas uma: ou a gaveta ou o caixote do lixo. Publiquei, ainda estudante em Coimbra, na Via Latina, um poema ou dois, mas nada de verdadeiramente importante. De qualquer maneira, fui sempre escrevendo poesia, a que dava um dos destinos de que falei há pouco. A certa altura, tenho já tanto material na gaveta que começo a pensar: “Bolas, porque não passo isto para um livro?” E foi o que fiz. Neste ponto, costumo contar uma coisa que tem a sua piada. Na altura (isto foi em 1974) fez-se a tal edição de mil exemplares, que custou nove contos, que à época era dinheiro para quem tinha um salário de dois ou três contos mensais. A edição acabou por ser paga de uma maneira curiosa: os Bombeiros Voluntários de Macedo de Cavaleiros estavam a precisar de uma ambulância e acharam que podiam angariar algum dinheiro, vendendo o meu livro porta a porta. Apresentaram-me então uma proposta: eles pagavam a edição, davam-me uns 50 exemplares para as minhas ofertas e vendiam os restantes 950 para realizarem algum dinheiro para a ambulância. Aceitei. O livro foi vendido praticamente na totalidade, porque ninguém se recusava a contribuir para a causa da ambulância. Agora pergunto eu: os mil exemplares foram vendidos, mas teriam sido lidos? Não foram, naturalmente… As pessoas compravam aquilo quase como um acto de benemerência. Abriam o livro, liam quando muito uma página ou duas, não compreendiam o que liam, diziam “isto não presta”, desinteressavam-se e punham-no de lado. Admito mesmo que muitos exemplares possam ter sido usados para acender o lume nas manhãs frias de Janeiro; outros, quem sabe?, ainda lá andarão perdidos, nalguma gaveta. Voltando ao que me pergunta. A publicação de Algures a Nordeste foi a resposta para uma necessidade íntima que eu sentia avolumar-se a cada dia que passava. Posso passar por imodesto, mas pareceu-me então que aquilo tinha valor. Tive a sorte de dois críticos literários importantes e influentes, Joaquim Manuel Magalhães e Luís de Miranda Rocha, a quem mandei o livro, manifestarem uma reacção positiva e encorajadora. Daí para a frente, foi sempre a aviar: já pus cá fora perto de vinte livros de poesia.

O seu percurso biográfico passa por este Nordeste transmontano, notando-se,  desde o primeiro título, uma assumida e reivindicada inscrição num território, mas passa também, com certeza, por outras geografias e viagens, e por vivências que atravessam o ensino ou a dinamização cultural. Acha que todas estas circunstâncias condicionaram de algum modo a sua poesia?

Tudo o que vivemos tem potencial para marcar o que escrevemos. O primeiro livro, Algures a Nordeste, é muito condicionado pelo território e por aquilo que existe dentro desse território. O que veio a seguir pode acaso ter atenuado, mas não anulou esse potencial. É frequente deixar-me enlevar por circunstâncias exteriores a mim para fazer poesia. A poesia visita-me quando quer e a pretexto de tudo e de nada. Mas há duas coisas que me motivam consistentemente à escrita de poesia; por um lado, a necessidade de me sentir preso ao mundo concreto em que me movimento, por outro lado, a necessidade de dialogar com a transcendência, com Deus, a morte, a finitude, tudo isso.

O professor e o poeta não cruzaram muito os seus caminhos?

Cruzaram, mas não muito. O poeta que somos cruza-se sempre com a pessoa que somos.  Não se despe com facilidade a pele de poeta. A condição de poeta tinge tudo o que fazemos. Como professor, fiz a cada momento o que pude para transmitir aos alunos o gosto pela poesia. Mesmo que o tema da aula fosse, sei lá!, a revolução industrial. Fi-lo, sim, se calhar com êxito modesto, pois só um pequeno número de antigos alunos me tem feito saber que gosta de poesia e me atribui créditos por esse gosto.

Algures a Nordeste: o seu título inaugural separa desde logo as águas. Aliás, inscreve-se numa certa genealogia de poetas que constroem a sua obra a partir de um lugar isolado ou renegado, que faz a sua identidade de uma exclusão ou de uma solidão rebelde. Poderíamos recordar um título, do outro lado da rosa-dos-ventos, como Eu, Comovido a Oeste de Vitorino Nemésio. Mas já Joaquim Manuel Magalhães nos mostra que este seu primeiro livro está muito longe das limitadoras barreiras de um regionalismo ingénuo. Como vê estas questões: como se pode ou deve articular o local e o universal?

Devo repetir aqui o que já tenho dito algures: em termos de literatura, não vejo que seja justo fazer uma separação entre o local (ou regional) e o universal. O chamado universal não é superior ao chamado regional: é diferente. Quem protagoniza o universal ou o regional ou ainda o local é sempre o Homem. Será que, do ponto de vista humano, um camponês de Trás-os-Montes é menos digno de respeito do que um banqueiro da City ou um gangster de Boston ou um professor da Sorbonne? Rotular, por exemplo, de regionalista um romance que tenha esse camponês por protagonista é diminuí-lo. O homem, com os seus problemas, os seus conflitos, os seus amores e o seus ódios, as suas vinganças e crimes, é o mesmo em toda a parte. O livro Algures a Nordeste é, de algum modo, um protesto contra a discriminação e a subalternização de um território que tem, como qualquer outro, direito à dignidade. Joaquim Manuel Magalhães, com a lucidez que todos lhe reconhecemos, percebeu isso e pôs a questão em pratos limpos. Se há coisa que me incomoda, é referirem-se a mim como poeta regional ou, pior ainda, regionalista. Na verdade, isso não me incomoda apenas: ofende-me. Eu debruço-me sobre Trás-os-Montes, gosto de trazer Trás-os-Montes para a poesia, mas nunca como quem diz: “Vejam como é patusca esta região (ou esta gente)!” Não faço propaganda de traços alegadamente diferentes da identidade trasmontana. Tomo Trás-os-Montes na sua realidade, tal qual eu a vejo e sinto, e fecho a porta a coisas espúrias e aos rodriguinhos do folclorismo e do regionalismo. E dessa forma afirmo a dignidade de Trás-os-Montes.

Mallarmé afirmou um dia a Degas que poemas não se fazem com ideias, mas palavras; de qualquer forma, o que decide o nascimento de um poema, o que é que o faz eclodir? É um processo surdo e lento, há momentos explosivos?

Não tenho uma receita para fabricar poemas. Os poemas podem acontecer-me de muitas maneiras. Às vezes uma simples formiga pode dar origem a um poema, desde que eu esteja in the mood. Ou seja: tudo depende do meu estado de espírito a cada momento. Se estou fechado à poesia, não adianta tentar versejar: o poema não sai. Mas se estou aberto, qualquer coisinha pode dar origem a um poema. Isso leva-me até a pensar, um bocado por “blague”, que eu não faço poemas, os poemas é que se fazem a si próprios dentro de mim, utilizam a minha estrutura mental para se organizarem, e a mim pedem-me apenas que os passe para o papel ou para o computador. Tenho às vezes essa ideia meio maluca: que os poemas já me nascem feitos, que alguém os fez por mim, dentro de mim… Mas cuidado: se há poeta que trabalha afincadamente os seus poemas, esse poeta sou eu. Pode acontecer, mas é raríssimo, que um poema me tenha saído, digamos assim, já na forma definitiva ou perto disso. Pelo contrário, ando muito tempo a aperfeiçoar às vezes um simples verso, e por isso o computador é bom, porque faz esse trabalho muito facilmente e posso guardar versões anteriores, para depois comparar… De facto, faço um trabalho de oficina que é verdadeiramente cansativo mas ao mesmo tempo remunerador. Às vezes um poema parece que já está bem, mas se consigo introduzir-lhe ainda qualquer coisa que o valoriza é uma festa.

Quando sente que o poema está fechado?

Há realmente qualquer coisa que a certa altura me diz que o poema está fechado, e não aceita mais trabalho. Mas esse fechamento só costuma vir depois de muito e muito trabalho. Ou seja, pode ser uma questão de cansaço: tanto carpinteirei que já não estou para me chatear mais com um poema. Às vezes é assim mesmo que acontece. Mas isso nota-se no produto final, o que normalmente me impede de lhe dar o uso e a publicidade a que qualquer poema aspira.

Como se consegue dizer que este poema é melhor do que aquele? É mais inteligível, é mais imediato ou trata-se de densidade?

Para mim, a grande pedra de toque de um poema é a densidade emocional — coerência e densidade emocional. Se as não tiver, certamente é um poema inferior àquele em que inoculei uma dose forte de emoção. Por outras palavras, se não me entrego por inteiro ao poema, o resultado nunca é satisfatório, tem défice de autenticidade. A poesia é uma coisa exterior a nós, mas ao mesmo tempo depende de uma espécie de alquimia que se processa no nosso interior.

Há pouco falou do prazer de alcançar o apuro poético. É esse o momento que mais o cativa?

Quando se atinge esse ponto, é de facto um momento quase orgástico. O poema tem de dar prazer, a mim e aos meus leitores. Dar prazer não significa que dê alegria, o prazer pode ser até uma coisa triste ou trágica. O poema vai-se construindo a si próprio, vai-se apurando em sucessivas versões, até que a certa altura se apresenta como definitivo e não vale a pena mexer mais, porque mexer mais só pode estragar. Outra comparação irreverente: fazer um poema é como bater claras em castelo. Há um momento fugaz em que as claras estão no ponto certo e, se continuamos a bater, acabamos por estragar.

O facto de ler outros poetas não o inspira? É capaz de prolongar o seu espírito, digamos assim… ?

Eu leio relativamente poucos poetas, e normalmente apenas aqueles que me digam alguma coisa, porque a maioria diz-me muito pouco ou nada. A poesia é campo fértil para charlatanismos. Mas há poetas que me dizem muito. Por exemplo Ruy Belo, cujo livro Aquele Grande Rio Eufrates me tem proporcionado momentos de prazer enorme — mesmo se já o li e reli não sei quantas vezes — e tem inspirado alguns poemas. Não se trata de imitar, mas de penetrar num mundo poético peculiar e deixar-me contaminar por ele. São muito poucos os poetas que me conseguem motivar até esse ponto. Não citarei mais nomes de poetas contemporâneos, porque se há criaturas melindrosas e susceptíveis, são os poetas. Mas cito, se calhar inesperadamente para muita gente, o nome de Gil Vicente, não como dramaturgo, mas como autor de pequenos apontamentos líricos com que vai polvilhando os autos e as farsas. De quando em quando Gil Vicente introduz uma pequena reflexão sobre isto ou aquilo que me deixa absolutamente de rastos. Lembro-me de um passo da lamentação de Job no Breve Sumário da História de Deus, passo esse que considero extraordinariamente belo, belo de mais, e que tem deixado algumas marcas na minha poesia.

Também se sente a entoação camoniana, aliás até tem poemas que andam um pouco à volta disso…

Refere-se certamente a um bloco de poemas a que chamei ‘Pretextos Tomados de Camões’. São sonetos (ou perto disso) que têm em comum o facto de o primeiro verso ser o primeiro verso de um soneto de Camões. A princípio eram nove, mas depois acrescentei mais três a pedido de Vasco Graça Moura, que quis que eu entrasse numa edição que se fez no quarto centenário da morte do poeta: Imagens para Luís de Camões. Camões, naturalmente, é o maior dos nossos poetas, mesmo quando, especialmente na epopeia, se torna maçador ou retórico ou repetitivo ou previsível. Em Camões, mesmo  nesses momentos há sempre um toque de génio. É outro dos ‘meus’ grandes poetas, capaz de me amotinar e incitar à escrita.

Como é que convive o poeta com o artista plástico ou até com o fotógrafo?

Deixe-me separar as águas: eu admito a minha condição de poeta, mas não posso admitir a de pintor ou fotógrafo. Não nego que a pintura e a fotografia são coisas que, cada uma delas à sua maneira, me dão muito prazer. Sim, gosto de pegar numas tintazinhas de aguarela e espalhar umas pinceladas no papel. Assim como gosto de pegar na máquina fotográfica e captar umas imagens. Mas serão sempre actividades marginais, próprias de um diletante. Às vezes lá sai uma ou outra aguarela que até nem estará feia de todo. O meu gabinete foi concebido de forma a acomodar as ferramentas do escritor e do amador de pintura. Tenho duas mesas em ângulo recto e entre elas uma cadeira giratória. Se estou in the mood para a literatura, trabalho na mesa onde está o computador. Se estou in the mood para a pintura, viro a cadeira a 90 graus para a outra mesa, onde estão as tintas e os pincéis.  A fotografia também me dá muito prazer. Fotografo tudo o que posso, tudo aquilo que penso que me pode um dia ser útil, ou como documento ou como objecto estético. Publiquei há dois anos um livrinho chamado Simbioses, que é um conjunto de fotografias ilustradas com poemas pré-existentes, ou talvez antes um conjunto de poemas pré-existentes para ilustrar os quais fui colher fotografias. Entendo que a poesia e a fotografia podem conviver e enriquecer-se mutuamente.

Tem o hábito de dar a ler os poemas a alguém antes de os publicar ou em esboço? Há algum leitor privilegiado que seja cúmplice no  processo de escrita ou é uma tarefa absolutamente solitária?

A princípio não tinha, porque um certo pudor me tolhia disso. Mas de há uns anos para cá tenho dado a ler alguns poemas à minha Mulher, que tem uma notável sensibilidade poética, e às vezes, quando está connosco, ao Rui [Pires Cabral, o seu filho, também poeta]. Mas, salvo casos especialíssimos, não mostro a mais ninguém.

Quando envia um livro já pronto, por exemplo para a Tinta da China, ninguém se pronuncia? Está fechado, não há volta a dar, o editor recebe e acata…

Não é bem assim. E percebe-se porquê: a publicação de um livro é sempre um risco que o editor tem de considerar. Pode por isso acontecer que da parte do editor nos seja sugerida uma alteração, que todavia somos livres de não aceitar, assim como o editor é livre de não publicar. Pela minha parte — e falando agora de livros de poesia — sou receptivo às sugestões que me são feitas pelo Pedro Mexia, que, como sabe, é o director da colecção de poesia da Tinta-da-china, que editou os meus três últimos poemários. Já por uma vez ou duas me chamou a atenção para determinado ponto — e eu aceitei a sua opinião. Porque não sou um irredutível da intocabilidade do poema. Reconheço que por vezes nos apaixonamos de tal maneira por um poema que ficamos cegos a eventuais pontos fracos que ele contenha.  Então é bom que alguém nos faça ver esses pontos fracos. E se esse alguém é um fino poeta, como é o caso do Pedro Mexia, não me sinto desautorizado ao aceitar as sugestões. O Pedro tem a autoridade suficiente (e também a delicadeza) para me dizer “não acha que…?” E então pode mesmo acontecer um retoque num poema. Mas é coisa que acontece rarissimamente e relativamente a pequenos pormenores.

Podemos falar de um leitor implícito nos seus poemas, um leitor ideal que eles reclamem?

É um facto que nem toda a gente gosta de poesia. A tiragem média de um livro de poesia rondará hoje os 500 exemplares, o que prova que a poesia é consumida por uma minoria — provavelmente por culpa dos próprios poetas, que às vezes parece que fazem gala da sua ilegiblidade. Mas esse assunto já está suficientemente debatido, não vamos perder tempo com ele. Às vezes, olho para um poema ou um livro meu e interrogo-me: “Quem é que lê isto?” Acho que tem de ser uma pessoa capaz de penetrar no mundo do poeta, analisar os poemas de um ponto de vista dos sinais e dos recados que o poeta envia. Esses sinais e esses recados são por vezes tão embrulhados em retórica poética que se tornam impenetráveis. Mas nesse caso o leitor deve ser capaz de formular propostas alternativas de leitura, que, longe de serem redutoras, enriqueçam o poema. Fica aí o retrato-robot do leitor ideal, isto é, do leitor que eu apeteço para a minha poesia. Mas não sei se isso cola à realidade. A própria poesia, sendo una na sua génese, pode adoptar muitos formatos. Alguns leitores são sensíveis a um certo formato, outros a outro, outros a outro. Pode haver pessoas que, a uma poesia reflexiva e questionadora, prefiram, por exemplo, a simplicidade e frescura duma quadra popular. Porque não? Por isso não há leitor ideal. Há leitores.

A poesia do Pires Cabral coloca questões extremamente interessantes sobre as fronteiras ou margens da linguagem poética. Os seus poemas dominam e põem em jogo os mais diversos registos: respeitam um certo “decorum” poético, inspiram-se em matrizes clássicas (até camonianas), embrenham-se em jogos conceptuais e não ignoram efeitos polissémicos, mas aceitam também a linguagem mais chã, coloquialismos, inclusivamente o chamado “palavrão”, muitas vezes em clave humorística. E sabemos que até trabalhou mesmo num dicionário de língua popular. O poeta precisa de ter mão para todos estes registos?

De facto, uma das coisas que me fascinam na nossa língua é justamente a variedade de registos que ela proporciona. E gosto de percorrer todos esses registos de acordo com a disposição do momento. Procuro não ser monocórdico, que me parece ser o ‘pecado original’ de muita poesia. Tanto me sinto à vontade a usar um registo clássico, solene e quase pomposo, como quando me sirvo da palavra mais banal e mais coloquial que se possa imaginar. Digamos que é um dos meus brios, conseguir conciliar e fazer conviver, muitas vezes no mesmo poema, diversos registos possíveis que a língua nos oferece. Às vezes um regionalismo ou um calão, colocados no sítio próprio, fazem a diferença toda, abrem o poema para uma outra compreensão.

Falemos da crítica: costuma ler, presta atenção, é susceptível?

Leio, presto atenção, sou susceptível. Gosto que me digam que o livro é bom, mas hoje em dia (não sei se reparam…) a crítica literária não se destina a dizer se o livro é bom ou mau, limita-se a analisar friamente o que o poeta quis dizer. Às vezes a crítica não passa de uma paráfrase do livro. Gosto naturalmente que as críticas sejam favoráveis. Embora às vezes me sinta injustiçado por este ou aquele crítico e finja que não lhes ligo importância, porque é da natureza das coisas o poeta mostrar-se olimpicamente indiferente à crítica, a verdade é que respeito e compreendo o seu papel. Não a ignoro, e acho que estou sujeito como qualquer outra pessoa a que se diga bem ou que se diga mal do que escrevo.

Já fizeram algum estudo ou tese sobre a sua poesia?

Sim, mas pouca coisa, que eu saiba. Por exemplo, tive conhecimento de que uma jovem italiana fez a sua tese de licenciatura sobre um dos meus livros (Arado). Há também uma dissertação de mestrado sobre o fantástico na minha obra e uns quatro ou cinco casos de pessoas que, a nível académico, se interessam pela minha poesia. Que eu saiba, é tudo. Mas pode acontecer que haja mais alguma coisa de que não chego a ter conhecimento, porque não sou do género de andar a escabichar essas coisas. Se alguém quiser fazer um trabalho sobre a minha poesia, a minha ficção ou o meu teatro, esteja à vontade. Pela minha parte, estou sempre disponível para dar todo o apoio que seja preciso. A verdade é que continuo a ser um poeta relativamente obscuro para muita gente. Mas sejamos justos: os temas dos trabalhos académicos são geralmente sugeridos pelos professores. E, com a prodigiosa quantidade de escritores que há na nossa praça, alguns surgidos da noite para o dia, como os cogumelos — quem pode exigir que os senhores professores conheçam tudo o que sai a lume? Até por um reflexo de defesa, limitam-se a uma lista de escritores a que chamam o cânone. E o cânone é um universo fechado, onde só a custo e depois de muitas provas dadas é permitido ingressar.

Revê-se em alguma família poética? Sente que há afinidades electivas com alguns autores? Por exemplo, Camilo e Torga, pela partilha de um território geográfico, cultural e até simbólico, são-lhe referenciais?

Acho que não. Falar em ‘família poética’ é assumir que há grupos de poetas que comungam de um certo número de princípios — e eu sempre me considerei ‘uma carta fora do baralho’. Mas que tenho algumas afinidades com alguns escritores, isso tenho. Por exemplo, com Miguel Torga, que acompanho na sua busca de uma explicação capaz para a identidade trasmontana. Com Camilo, mais devagar: é um dos meus escritores de referência, mas afinidades propriamente ditas são poucas. E são sobretudo de ordem literária. Porque a Camilo, que Manuel Laranjeira ou Teixeira de Pascoaes, por exemplo, consideram trasmontano, não pelo nascimento, mas pelo temperamento, não o vejo a questionar a condição trasmontana. Em Camilo aprecio aspectos que nada têm a ver com a problemática identitária. O seu domínio da sintaxe portuguesa, por exemplo. Ou a vastidão do seu vocabulário. Ou a sua capacidade de efabulação. Ou a facilidade com que põe riso na minha boca ou água nos meus olhos. Gostaria também de citar outro escritor trasmontano, António Cabral, de quem fui grande amigo e grande admirador (faleceu em 2007). Com esse, sim, acho que tenho muitas e muito vincadas afinidades. Foi António Cabral quem abriu a poesia ao Douro laboral, a epopeia da construção do Douro vinhateiro. O Douro que Miguel Torga acha belo, vê-o António Cabral impregnado do suor daqueles que o surribaram, arrotearam, ajardinaram em vinhedos e ajudam a produzir vinho que provavelmente nunca beberão. Claro que Miguel Torga, por exemplo no romance Vindima, é sensível a isso. Mas atenhamo-nos à poesia. Há beleza nos socalcos e perspectivas do Douro, e a poesia de Torga e outros não se cansa de a fazer notar. Mas por detrás daquela beleza há qualquer outra coisa que só, penso eu, a poesia de António Cabral foi capaz de identificar. E neste reconhecimento, estou de alma e coração com António Cabral.

A formação em Filologia Germânica deixa rasto na sua escrita? Os grandes românticos ingleses ou alemães, os filósofos, a poesia mais recente?

Muito pouco. Mea culpa, mea culpa, mea maxima culpa… Na altura em que me licenciei era um bocadinho avesso a este tipo de referências que agora me dizem muito. Mas há um ou dois autores que realmente conseguiram entrar dentro de mim e que ainda cá estão. Um deles é naturalmente Shakespeare (o maior para mim: é um poeta-dramaturgo ou um dramaturgo-poeta extraordinário…). Outro é, em matéria de poesia mais lírica e confessional, Rainer-Maria Rilke, em quem Paulo Quintela me fez reparar e de cuja poesia magoada muito gosto. De resto, pouco mais retive. Nem mesmo Goethe, não obstante os esforços de Paulo Quintela para nos revelar o peso e a beleza da sua escrita. Acho que eu, em 1964, ainda não estava maduro para Goethe.  Nem para Schiller ou Hölderlin. Hoje, penitencio-me disso. Mas também encontro uma explicação, se bem que parcial, para esse alheamento: era uma altura de lutas académicas, em que andávamos distraídos com outras questões que nos arredavam dos grandes poetas ingleses e alemães.

Tertúlias e grupos literários foram importantes na sua vida? Como convive o poeta com o dinamizador cultural, o animador deste Grémio Literário, da revista Tellus, de muitíssimo mais?

Convivo bem. Encaro tudo isso — tertúlias e grupos literários, animação cultural, direcção da revista Tellus — como extensões do poeta. Eu gosto de tertúlias. Há pessoas que acham que são coisas fechadas, quase umas seitas, mas eu aprecio e gostaria até que houvesse uma tertúlia poética aqui em Vila Real, pessoas que se juntassem para desinibidamente falarem sobre poesia. Ainda não desisti de dinamizar uma tertúlia desse género.

Como vê o papel da “internet” e das chamadas redes sociais? Serão um substituto das tertúlias?

Eu não entro muito nesse mundo, sobretudo nas redes sociais, porque penso que aquilo é quase sempre de uma banalidade e seguidismo amorfos. É raro ler-se um comentário que tenha um bocadinho de sumo; as pessoas clicam no “gosto” e mais nada. Portanto, ponho-me um pouco à margem disso.  Mas tenho uma página no Facebook e com relativa frequência pranto lá o meu textozinho, e gosto que a pequena comunidade dos meus seguidores interaja comigo, concordando ou discordando. Por outro lado, também compreendo que para muitos é uma maneira de divulgar (leia-se: propagandear) aquilo que fazem. A “internet” proporciona-lhes um palco ou uma tribuna para mostrar os seus textos, é um canal alternativo para escoar a sua produção poética e isso é perfeitamente legítimo.

Não se corresponde com outros poetas?

De forma habitual ou continuada, não. Escrevo-lhes quando tenho assuntos a tratar com eles. Mas criei recentemente uma excepção espanhola: um relativamente jovem (metade da minha idade!) professor universitário de Ávila, mas residente em Zamora. Fez uma recensão sobre a minha Caderneta de lembranças, que publicou na Brotéria e que me enviou, ao mesmo tempo dando mostras de querer manter, com alguma regularidade, correspondência comigo. É, além do mais, um belo poeta e um conversador interessante e interessado. De quando em quando trocamos umas mensagens por e-mail,  só raramente por correio. Tem, como eu, o gosto pelas cartas à antiga, manuscritas (de preferência com caneta de tinta permanente…), distendidas, quase voluptuosas. Fica aí o seu nome: Rafael Angel García Lozano. É uma pena que a minha idade não me vá permitir que eu possa manter esta relação tão frutuosa por muito mais tempo. Mas… c’est la vie!

E quanto a jovens poetas?

De quando em quando,  há um jovem poeta que me aborda, solicitando-me um parecer sobre meia dúzia de poemas que me envia, ou mesmo um prefácio para um livro que vai publicar. Se reconheço nele qualidade, acedo de bom grado ao pedido. Ainda agora fiz um prefácio para um jovem do Porto — ou melhor: Rio Tinto —, cuja poesia mostra potencial para vir a ser um bom poeta. Ele veio ao meu encontro, não o conhecia de parte nenhuma. Mas creio poder dizer que ficámos amigos, e que a amizade nasceu por obra e graça da poesia. Chama-se Pedro Lopes Adão e vai sair brevemente o seu livro de estreia, que prefaciei e tem o título de Os amorosos e os odiados.

Tem sido jurado em vários prémios literários. Agrada-lhe a função?

Não agrada absolutamente nada, por várias razões, uma das quais é ter de ler  muito lixo. É um trabalho penoso, que me rouba o tempo para fazer aquilo que gosto realmente de fazer: escrever, ler, pintar, fotografar… Além disso, é um trabalho geralmente feito pro bono. (A propósito, deixe-me dizer-lhe que este Grémio Literário onde nos encontramos promove bienalmente o Prémio Literário ‘António Cabral’, mas paga aos elementos do júri uma retribuição justa pelo seu trabalho.) Fui muitas vezes — talvez umas 20! —  jurado do Prémio de Poesia Cidade de Ourense (cidade galega geminada com Vila Real). Por isso, acho que para esse peditório já dei… Não gosto de ser jurado.

Agora uma proposta um pouco desonesta, sugerindo-lhe que se desdobre no papel de poeta e de crítico de si próprio. Como vê o lugar da sua poesia na literatura portuguesa? Sente-se integrado ou como um estrangeiro, um amável intruso?

Devo ter um cento ou dois de leitores fiéis, mas — será que já garanti com isso um lugar na literatura portuguesa? Fica a dúvida. Mas, se algum dia vier a garantir, mais quero que seja pela diferença do que pela conformidade. Creio que tenho uma linguagem poética muito pessoal, e esforço-me por não obedecer a modas, escolas, gerações… Se aspiro a isso, tenho de retirar daí as devidas consequências — as positivas e as negativas. O meu lugar na poesia portuguesa é aquele que é, estou no patamar a que consegui subir pelos meus próprios meios. Se me integrasse em escolas ou capelinhas, teria provavelmente um percurso mais facilitado e maior visibilidade. Mas, falando com toda a franqueza, não sei se isso me interessa. Interessa-me ser uma voz autónoma e diferente e penso que de alguma forma o tenho conseguido.

Sente que algo mudou ou foi mudando, com o tempo, na sua escrita? Haverá uma fundamental linha de continuidade, apercebe-se de alguns momentos de ruptura? Temos os poemas próximos da terra, dos bichos, dos costumes; temos uma espécie de austera e desencantada confessionalidade, nomeadamente na revisita do passado; temos um discurso conceptista que dialoga com os clássicos, temos meditações de teor mais existencial que colocam, por exemplo, a questão de Deus. Fases ou faces da sua poesia?

Faces. Eu falaria em mudanças na continuidade. Costumo dizer que em Algures a Nordeste já estão em embrião as linhas principais que depois segui. Naturalmente, de quando em quando, há acidentes de percurso, em que se recua ou avança, mesmo sem querer. Às vezes parece que há rupturas na produção, mas na verdade aquilo que é fundamental, as grandes linhas de força, vão de princípio a fim, e espero nunca me libertar delas…

De qualquer forma, sente que uma matriz telúrica e rural é consubstancial à sua poesia, mesmo quando avança para outras paragens ou se embrenha em meditações mais existenciais ou até teológicas? Será o centro disto tudo?

Não, o centro não. Talvez apenas uma periferia. Não repudio nada do que escrevi, procurei estar inteiro em cada um dos milhares de versos que trouxe à luz do dia.  A matriz telúrica e rural, o afinco com que exploro o território e o que há dentro dele são factores importantes, e até talvez estruturantes (ou pelo menos co-estruturantes) da minha poesia. Mas tenho o pressentimento de que aquilo por que me arrisco a ficar conhecido é capaz de ser mesmo o meu diálogo com o transcendente, a minha relação com a morte e com a finitude. Mas nesse pressentimento também pode andar o pessimismo dos 80 anos. Seja o que Deus quiser — esse Deus com quem tenho andado às turras toda a vida.

Religiosidade e poesia: em que medida pode haver aqui uma compensação de uma pela outra?

Nunca pensei nisso… O meu diálogo, a minha relação com a transcendência, com Deus, são complicados. São um híbrido que resulta do afrontamento entre a educação religiosa recebida na infância, em que catequistas mal preparadas nos ensinavam um Deus agressivo, e as incursões da razão num território que se arroga couto privado da fé. Vai-me parecendo que aquilo que me ensinavam não corresponde ao que eu penso, e isso constante e consistentemente à medida que o tempo passa. De modo que chego a esta idade e não sei exactamente o que penso sobre o que me pergunta: religiosidade e poesia. Muito menos qual delas é compensação de qual.

Como é que alguém tão próximo da natureza e dos seus ritmos vê a questão da emergência ou da urgência ambiental, tão na ordem do dia?

Vejo com grande preocupação, naturalmente. A Terra está a responder às ofensas e abusos sem conta que o senhor homem lhe tem infligido. A Terra de facto não tem capacidade para absorver os efeitos nefastos de todos esses abusos e retalia de quando em quando: uma cheia aqui, um tremor de terra ali, um tornado acolá, um tsunami mais além. Pensando assim, não posso deixar de ser sensível à mensagem ecológica, isto é, de ser ”verde”, no sentido em que olho com preocupação para o caminho que a humanidade está a levar. Certamente, a breve trecho, se calhar já para os meus netos, haverá grandes dificuldades de sobrevivência. É com muita preocupação e até sofrimento que verifico que o Homem continua indiferente ao problema, por muito que se reúnam governantes alegadamente bem intencionados em Quioto, Rio de Janeiro, etc., etc. A Natureza, de que eu sou utente e defensor, está a pedir que alguém olhe por ela e evite o colapso total que nos está prometido se não mudarmos de agulha…

Como coabitam o poeta e o prosador, o contista, o romancista? Sente que há na sua poesia também um apelo narrativo ou que não se quer desligar de um certo “prosaísmo” da vida? E o contista aproveita-se da capacidade de síntese que é típica do poeta?

Poeta, contista, romancista, dramaturgo… Podia ter a tentação de falar em heterónimos. Mas não falo. Porque acho que, contrariamente aos heterónimos, as diversas personalidades literárias que me habitam não se isolam: estão lado a lado e consentem que haja osmoses recíprocas. Tenho a consciência de que a mão que escreve um poema é a mesma mão que escreve um conto. Reconheço que às vezes há, nos meus romances e contos, momentos de poesia, digamos assim, tal como reconheço que muitos dos meus poemas têm um certo pendor narrativo. Ficcionista, poeta, etc., são como que compagnons de route que seguem lado a lado, se respeitam mutuamente e se aproveitam uns dos outros, em simbiose, até onde isso seja possível. Há poemas que são um conto em embrião e há contos que se podem resumir num poema. Aliás, há muito que a ideia dos géneros literários estanques deixou de fazer sentido. Hoje os géneros interpenetram-se, mestiçam-se, esbatem fronteiras entre si. Uma ideia pode ser concretizada em qualquer dos géneros. Quer ver um exemplo? Estou a terminar um romance que já foi um conto, e esse conto, por sua vez, já foi uma peça de teatro. Pensei: esta peça de teatro é capaz de dar um conto engraçado; e transformei-a  num conto. Depois, ao reler o conto, percebi que, se acrescentasse uns quantos elementos, era capaz de dar um romance. E não é que deu mesmo? Estou a terminá-lo agora. E já ando a pensar em fazer do romance um poema herói-cómico. Tudo isto para dizer que hoje não há géneros literários estanques: podem sempre transformar-se uns nos outros.

Como vê o panorama da poesia portuguesa contemporânea?

Disse há pouco que a poesia é campo fértil para charlatanismos. É meu entendimento que grande número de pessoas que publicaram livros de poesia era melhor que o não tivessem feito — e se calhar isso também se aplica a mim, não me estou a excluir. Se é certo que nem tudo aquilo que se publica em Portugal sob a capa de poesia é verdadeiramente digno de ser publicado, também é certo, por outro lado, que há na poesia portuguesa certos nomes que seriam grandes em qualquer literatura universal. Dizem que Portugal é um país de poetas, mas não sei se o será mais do que a Espanha ou a Itália ou a França. Não sou um grande adepto da ideia de que Portugal tem uma poesia especialmente pujante, mas também não sou derrotista a ponto de pensar que não temos grandes poetas. Mas não me peça nomes, por favor.

Relativamente à obra que foi construindo, tem o sentimento de missão cumprida, de algo que o preenche?

Mesmo as missões cumpridas podem ser cumpridas segunda vez. Quero dizer que é arriscado dizer: missão cumprida, porque podemos sempre subir a fasquia, isto é, ampliar a missão. Mas aquilo que fiz até agora naturalmente dá-me a percepção de que, mesmo que pare aqui, já tenho alguns motivos de satisfação. A passagem dos anos (e já vão muitos…) não é uma coisa, enfim, que se diga suave. Digamos que a construção de uma obra poética ao longo da vida se processa como uma viagem de comboio em que vamos levados sem grandes sobressaltos. Mas às vezes, a caminho do fim, surge um pico de auto-estima, que não devemos levar a sério. Não sei se aquilo que digo nesta longa (uf!) entrevista deixa supor o tal pico de auto-estima. Mas, se deixa, foi uma partida do subconsciente e peço disso desculpa a quem ler. Mas também não queria ser forçadamente modesto. Tenho consciência de que alguma coisa fiz. Afinal já são mais de seis dezenas de livros publicados. Alguns deles, se calhar, era melhor que não tivessem sido escritos, outros foi muito bom que o tenham sido. A qualidade pode não se manter constante ao longo do tempo. O certo é que, de alguma forma, tenho uma sensação de missão cumprida. Não me arrependo de nada, incluindo os falhanços (que também tive…). Porque um falhanço costuma ter um lado pedagógico: ajuda a evitar a sua repetição. Uma pessoa deve acolher tudo aquilo que fez com generosidade; se este livro é fraco, não é por isso que eu o vou renegar, vou assumi-lo como filho meu que saiu um pouco defeituoso. Há às vezes uma certa tentação de alguns poetas renegarem o primeiro livro. Conheço dois exemplos de escritores transmontanos que calam pura e simplesmente o primeiro livro… Um deles é António Cabral, o poeta do Douro de que já falámos, outro é Bento da Cruz, grande escritor barrosão que viveu no Porto, um narrador de eleição. Eu não repudio nenhum dos meus livros. Nem o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro, nem o sexagésimo-quinto. Assumo-os a todos, e estou aqui para os defender com unhas e dentes quando mos atacarem.

Esta circunstância de ser poeta carrega em si um estatuto especial, uma maneira distinta de ser e de se apresentar perante os outros?

Não, de maneira nenhuma, nunca deixei que a poesia alterasse o meu comportamento de base, que é o de um homem relativamente modesto, que gosta de coisas simples e que não faz alarde nenhum daquilo que conseguiu no campo da poesia ou em qualquer outro campo. Não me parece que o estatuto de escritor tenha transformado o homem que eu era num homem diferente. Sou um poeta, assumo que sou poeta, mas antes de ser poeta sou homem.

Por ser poeta, não se sente mais sensível do que o homem comum?

Em parte, essa pergunta já está respondida na resposta anterior. Procuro ser o mais possível um homem comum, não gosto de retirar mais-valias da condição de poeta, nem puxo pelos galões de poeta. Sou um homem acima de tudo, um homem que calhou ser também poeta, que vai fazendo os seus versinhos e os vai publicando, sem que com isso deixe de ser um homem comum e se transforme noutra pessoa.

Valeu a pena esta opção pela palavra? Alguma vez se imaginou fora do mundo das palavras?

Valeu a pena, tenho orgulho naquilo que fiz. Ao dizer estas coisas posso passar por imodesto. Mas não é o caso. Eu não sou modesto nem imodesto, sou normal, uma pessoa absolutamente normal. E, francamente, felicito-me por ter escolhido viver para a palavra.

Vila Real, 10 de Dezembro de 2022

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