FERNANDO Echevarría acaba de publicar Via Analítica, um livro com centenas de poemas que atestam como a poesia e os dias do seu autor se confundem cada vez mais numa só e magnífica presença. Nascido em 1929 em Cabezón da la Sal, em Santander, Espanha, vem muito pouco tempo depois para Portugal. O seu percurso biográfico passará, assim, por várias geografias: além de Espanha, a que irá regressar nos seus estudos, vive em Vila Nova de Gaia, em Paris, em Argel, Penafiel (Paço de Sousa) e no Porto. São os lugares de uma vida que assume percursos religiosos, a militância política, o ensino e a poesia. No princípio da tarde chuvosa de Novembro em que o encontrámos, esperava-nos, protegido por um amplo chapéu, numa encruzilhada do velho bairro da foz do Douro onde habita. Indica-nos o caminho da sua rua. Talvez haja uma sabedoria dos acasos: mesmo ao lado, ficam a rua de Santa Escolástica e a rua Beneditina e, enfim, a sua, a de Berta Alves de Sousa, pianista e intensa compositora portuense. Da obscuridade povoada dos andares inferiores ascendemos ao seu estúdio de trabalho e de repouso, um amplo e belíssimo espaço feito de um grande vão, quadros e muitos livros. Lá ao fundo, uma varanda tornada escritório, com mesas, pilhas de volumes, papéis que se acumulam. A todo o correr dos vidros, alcança-se um extenso panorama: labirinto de traseiras, o rio e logo depois o mar e o horizonte. Enquanto conversámos, a tarde foi caindo, entre nuvens, espumas e gaivotas. Dito de outro modo: “Apura-se a velhice a ver o rio / entardecendo lento no trabalho. / Um sol último esquece o último brilho. / E a conta pacífica dos anos / debruça-se. E estuda o que vem vindo / do horizonte tardio do mar alto.” – in Lugar de Estudo.

Talvez pudéssemos começar pelo mais circunstancial. Como descreveria o seu local de trabalho? É uma ilha, uma cela, um santuário?

Não tem nada de especial. Se tivesse de fazer essa consideração, a primeira coisa que me vem à cabeça é o tempo. O tempo tem qualquer coisa a ver com o templo, parece que não, mas tem muito a ver com um templo… É um lugar de recolhimento em que o fulano, no caso eu, deixa de existir para ser operação. O fulano não tem importância nenhuma, o trabalho é que se sobrepõe a tudo.

Há no seu “habitat” de trabalho objectos indispensáveis à sua volta ou é absolutamente supérfluo o que o rodeia no momento da escrita?

À minha volta só preciso de ter o papel e a esferográfica. Tem também muita importância a abertura, quer dizer: eu aqui estou e está ali o mar, que vai aparecer no poema ou não, mas de uma maneira ou de outra ele vai aparecer… Mas há essa sensação de abertura e não de confinamento.

Tem de ser um ambiente amigável, deve ter luz, silêncio, música, ruído?

O confinamento incomoda-me. Quando chego a uma casa qualquer, seja ela qual for, sendo nova para mim, a primeira coisa que faço é ir à janela e ver o que é que há à minha volta. No caso, por exemplo, de Paris, em que trabalhava nos cafés, o meu lugar era sempre uma mesinha que dava para fora, e depois havia o fulano que estava a trabalhar e a gente que ia passando. Essa gente, às vezes, era quase só sombras…

Aqui há tempos, uma senhora perguntou-me se havia mulheres na minha poesia, e eu disse “há com certeza, mas elas não sabem, nem eu…” Há aquelas sombras que passam e que ritmam o próprio trabalho…

Há outra coisa que é importante: diz S. João que no princípio era o verbo, eu digo no princípio há o ritmo. Ainda não há poema e há já um ritmo prévio, que vai dar o primeiro verso ou o último ou qualquer coisa, mas que é prévio ainda, porque a poesia é uma língua, como o é a música, a pintura.

Há uma história que se conta do Beethoven (não sei se verdadeira…). Ele teria executado uma sonata e, no final, um ouvinte pergunta-lhe: “e o senhor o que quer dizer com isso?” Ele toca a sonata novamente e diz: “isto!”. Não era traduzível, porque era uma outra língua. Em poesia é exactamente a mesma coisa. Fernando Pessoa escreveu um soneto cujos primeiros versos dizem:

Meu coração é um pórtico partido
Dando excessivamente sobre o mar

É o coração um pórtico partido? A razão discursiva diz que não há sentido algum nisso e, no entanto, nós aderimos a essa língua. Vamos ver uma exposição e, de repente, chega-se à beira de um quadro e esse quadro diz-nos assim: “espera aí!”. E deixou de haver aquele deambular à volta da exposição, porque o quadro mandou, porque é uma língua

Como descreveria a sua biblioteca? Está mais próxima de uma ideia de “cosmos” ou de “caos”? Como a organiza ou desorganiza?

Em Paris não havia biblioteca nenhuma, porque não tinha sítio para os livros… A razão por que já não vou a Paris, é que agora me faltam lá os instrumentos, e para mim os livros são instrumentos… Os livros vieram em caixotes e foram postos aqui ao calhas… A minha mulher, de vez em quando, organiza-os e eu deixo de saber onde estão… Eu desorganizo e está tudo muito bem desorganizado: eu sei, mais ou menos, onde estão as coisas… Ela organiza e depois nem ela sabe, nem eu, onde estão os livros…

A biblioteca para mim é importante. O que é mais importante de tudo são os livros que já li e que ainda consigo reler. Dificilmente agora compro outros… Posso, às vezes, substituir um que emprestei e ficou perdido e torná-lo, então, a comprar. São coisas antigas do tempo do seminário, por exemplo, livros que li em latim, como o Ovídio. Nós traduzimos lá uma grande parte das Metamorfoses e algumas elegias. De uma delas, ainda me lembro dos primeiros versos: Cum subit illius tristissima noctis imago (traduzir isto é o cabo dos trabalhos…). Há um livro meu que começa por citações de Ovídio e Geórgicas é uma espécie de homenagem a ambos.

Aqui estão duas obras que me tocaram. Depois há uma outra que tem a ver com o Virgílio, que fala de uma viagem que ele faz com o imperador Augusto, quando regressam a Roma. É um romance que se chama A Morte de Virgílio, que é de um grande, grande escritor: Hermann Broch. É impressionante, Virgílio quer queimar a Eneida, porque ela não está perfeita (e, de facto, há versos que não estão acabados…). O imperador diz que não, porque o Império sem a Eneida não seria perfeito…

Considera-se um bibliófilo?

Não, os livros para mim são instrumentos de trabalho.

Tem uma rotina de escrita, rituais?

Vou todos os dias para a Confeitaria Tavi. Gosto de trabalhar ao princípio da manhã, levanto-me muito cedo, por volta das seis, seis e meia, e gosto também de trabalhar ao fim da tarde. Pode suceder que me levante de noite, que tenha daquelas insónias em que estou a fazer um poema… Quando faço um poema de madrugada, o poema é uma maravilha e depois, de manhã, quando vou a pegar nele, salvo seja…

Mallarmé afirmou um dia a Degas que poemas não se fazem com ideias, mas palavras; de qualquer forma, o que decide o nascimento de um poema, o que é que o faz eclodir? É um processo surdo e lento, há momentos explosivos?

Depende… Mallarmé é um dos poetas por quem eu tenho o maior respeito e até escrevi um texto em que se fala dele. É um mal amado dos franceses. Dizem que ele não sabe escrever francês… E não, ele escreve poesia, não é francês… O projecto dele chamava-se O Livro. Começa por dizer que todo o poema está feito para entrar n’ O Livro. Há dois poemas dele que são nitidamente para entrar n’ O Livro… Um tem a ver com a renda e nós vamos ver e aquilo é renda feita com palavras… É uma maravilha!

Há um outro poeta que me interessa muito também: Paul Valéry. Ele diz que o primeiro verso dá-lo Deus (ou os deuses, tanto faz…) e depois o poeta tem de tentar que o segundo seja digno do primeiro, e por aí adiante. Mas às vezes pode ser pelo último que se começa… Há um soneto meu que demorou dez anos a fazer-se (isto foi na Argélia…). O primeiro verso ficou imutável. Fiz várias tentativas e nenhuma deu resultado. Ao fim de dez anos, ele fez-se a si próprio… Há aqui algo de estapafúrdio, mas é com isto que a gente trabalha…

A Obra Inacabada (título com que reúne a sua poesia) será, no fundo, também um livro em construção, como o de Mallarmé, sempre em aberto?

Eu chamo-lhe Obra Inacabada porque a obra está ali e está imóvel. A escrita imobiliza: quando eu digo a palavra, ela imobilizou, fixou. Mas é preciso pô-la em movimento, e quem o faz é o leitor. Sem o leitor ela é uma coisa suspensa: está fixa ali, mas é possível passá-la a acto. Há ainda algo em que a maior parte das pessoas não pensa, o esquecimento também é mobilizado quando se escreve (nós não sabemos como, mas ele é mobilizado…).

Há um facto que implica o grande poeta Rilke. Ele viveu com uma senhora conhecida por Lou, e que trabalhou com o Freud e com o Nietzsche. Houve um momento em que Rilke decidiu fazer análise e ela desaconselhou-o. Interpretação minha: ela desaconselhou-o porque, ao escrever, ele já estava a fazer análise, estava a trazer ao de cima o inconsciente ou o ainda inconsciente. De forma que estava a fazer psicanálise permanentemente…

Na eclosão da sua poesia, qual o papel das leituras e das outras artes, muito em particular a música e a pintura? Até que ponto são uma espécie de fermento da poesia?

Uma das últimas coisas que escrevi, num destes dias, na Tavi, chama-se Metamorfose, inspirada em Richard Strauss, nesse grande “poema”, que é música, só com cordas… Tem uma história: o compositor, depois da guerra, vê um dos sítios onde tinha trabalhado destruído, e escreve então Metamorfoses. Há várias obras de Richard Strauss que me inspiram, como As Quatro Últimas Canções. E também O Canto da Terra, de Mahler, com aquele “adeus, adeus, adeus”, que aparece também na 10.ª Sinfonia, que está inacabada… A minha poesia também tem a ver com isto.

Um meu amigo ouve música quando escreve, eu não… Quando ouço música, ouço música… Música é também uma coisa intelectual… Há um livro do Hermann Hesse, que se chama O Jogo das Pérolas de Vidro, que trata de música e uma personagem que ali aparece é o Mestre da Música. Ele está a escrever esse livro na mesma altura em que Thomas Mann está a construir um dos seus grandes romances (também sobre música), Doctor Faustus. É interessante notar como nos dois escritores a contemporaneidade das obras se cruza. O narrador de Doctor Faustus vai evocar, durante a Segunda Guerra Mundial, factos da primeira, abrindo-nos, de súbito, uma impressionante partitura literária.

O oceano Atlântico e a foz do Rio Douro também são motivo de inspiração?

Sim, de certeza. Há o mar, as marés, há nevoeiro, as neblinas… Há alusões, que aparecem de vez em quando, mas está tudo incorporado, faz parte de mim…

O seu percurso biográfico passa por várias geografias (Espanha, Argélia, Paris, Penafiel, Gaia, o Porto) e por vivências que atravessam a experiência religiosa, a militância política, o ensino. Acha que todas estas circunstâncias de algum modo condicionaram a sua poesia?

Tive sempre o cuidado de não misturar a poesia com a política. Fiz o que devia fazer na altura devida. E ficou ali… Basta dizer que no dia 31 de Janeiro de 1965 eu estava em casa do General Delgado, a celebrar a data. E ele foi preso no dia 13 de Fevereiro… Há por aí gente responsável pela sua morte… Estive na LUAR e no movimento MAR (Movimento de Acção Revolucionária). Estava na Argélia e saí do MAR quando se fez algo que eu achei que não era justo. Com a LUAR foi a mesma coisa… Fiz o que devia fazer e acabou… Depois do 25 de Abril até me ofereceram um lugar, e era bom… Eu disse “não”e fiquei em Paris…

Isto [aponta para os seus livros] tem a ver comigo, com a minha língua, que é uma língua de poesia.

A poesia e a política são coisas de ordem diferente. A poesia, como diz a palavra, é da ordem do fazer e a política é da ordem do agir. Por isso me interessa também a filosofia. A filosofia ajuda a viver e tem algo a ver com a poesia. O Heidegger diz que são as duas faces do ser. Calculo que ele deve ter muita inveja da poesia… Porquê? Porque a filosofia anda atrás de e a poesia não anda atrás de nada. A poesia é. Uma anda atrás dos conceitos, a outra não precisa, porque é a própria evidência.

O escrever à mão, o manuscrito, são para si importantes? E as novas tecnologias, o computador, em que é que ajudam ao processo poético?

Escrevo tudo à mão [mostra vários manuscritos], é tudo assim, e depois vai para o computador.

O trabalho de revisão é também importante? Quando é que finalmente larga um poema, quando é que sente que ele já pode ir à sua vida?

Nunca trabalho numa coisa só: digo-me isto vai para ali, aquilo vai para acolá… É ainda um monte de coisas que não é livro, é preciso fazer daquilo um livro. Este amontoado de coisas gosto que tenha uma determinada unidade e ordem: deito fora o que for preciso deitar e depois às vezes recupero… Este livro [Via Analítica] está pronto, mas já estou a trabalhar noutro ou noutros… Sei mais ou menos qual é a tonalidade… Por detrás há sempre um pensamento filosófico. São Paulo tem uma coisa muito bonita quando fala do enigma. A imagem que ele dá do enigma (curiosamente Heidegger leu muito São Paulo…) é a de um espelho que é em metal e, por conseguinte, de difícil leitura. Ele emprega essa palavra…

Já agora, vou dizer uma coisa que quase ninguém diz. Perguntaram-me várias vezes se eu era um poeta católico e eu disse “não, eu não sou um poeta católico, eu sou um católico que é poeta…”. Porque é que eu digo isto? O grande poeta católico é São João da Cruz. Eu não sou São João da Cruz, tomara eu, é um grande, grande poeta…

Revê-se em alguma família poética? Sente que há afinidades electivas com alguns autores? Venera heróis literários?

Há escritores de que gosto mais e outros de que gosto menos… Agora, com esta literatura light, como eles lhe chamam, já não sei como é… Há tudo aquilo que li, romances de cinco volumes e assim, e infelizmente hoje as pessoas já não têm paciência para ler. Não há novidades, nem há modernidade. Sinto que não há modernidade… Quando falam em modernidade, penso sempre no princípio da Renascença, quando liam os gregos e os romanos. Quem são os modernos? São os gregos e os romanos ou são os que os leram? Evidentemente que são os gregos e os romanos…Os pré-rafaelitas é a mesma coisa. O Rafael é que é moderno, os outros vêm depois… Há, de facto, um grande poeta e esse, de certa maneira, é herói, que é o Dante. Há também aquela pintura oriental ortodoxa, nos mosteiros que se opunham aos turcos, e é tudo pintado por dentro e por fora. Se formos a uma catedral, como a de Paris, é uma suma em pedra, ao meio está Nossa Senhora, Cristo e (suponho) o Adão… Nesses mosteiros faziam uma suma em pintura, por dentro e por fora. Tudo isto, de certa maneira, está no Dante.

Tem algumas memórias significativas de tertúlias, de grupos literários em que tenha participado?

A minha vida é um bocado monacal…

Como vê o papel das revistas de poesia, nomeadamente no Porto, ao longo dos tempos? Será que no Porto persiste uma tradição poética específica?

Sim… Temos ali o Passeio das Cardosas a testemunhá-lo, onde passeavam o Camilo Castelo Branco, o Guerra Junqueiro, algumas vezes deve ter andado o Antero de Quental…

Conheci o José Régio. O meu primeiro livro (que era mau…) chamava-se Entre dois Anjos e o José Régio e o Alberto Serpa fizeram duas antologias, uma que se chamava Na Mão de Deus e outra Alma Minha Gentil, e as duas terminam com poemas meus.

Publiquei no primeiro número de uma revista que se chamava Graal, onde estava o Padre Manuel Antunes, que conheci, e depois vim a ter o prémio que tem o nome dele… Também escrevi na revista Limiar sobre O Livro de Mallarmé. É o que eu penso do Mallarmé… Havia uma outra revista com o Egito Gonçalves e que tinha passado pelas mãos do António Rebordão Navarro. Chamava-se Notícias do Bloqueio. Houve várias outras, mas eu estava fora…

Quanto a tertúlias, nós saímos daqui em 1961 (a minha mulher teve uma bolsa da Gulbenkian e nós fomos para Paris) e antes disso havia uns jantares de poetas que se faziam uma vez por mês, mais ou menos, com o Egito, o Óscar Lopes (que me queria converter, até há uma dedicatória que diz: “ao Fernando Echevarría, meu irmão no baptismo”, mas eu não sou convertível…).

Agora uma proposta um pouco desonesta, sugerindo-lhe que se desdobre no papel de poeta e de crítico de si próprio. Como vê o lugar da sua poesia na literatura portuguesa? Sente-se integrado ou como um estrangeiro, um amável intruso?

Acho que o papel do poeta quem o faz é o tempo. Tudo o que vier ele o faz. Um grande, grande poeta nosso morreu em Macau e nós conhecemo-lo hoje porquê? Porque houve um carola que reuniu poemas dele… Com o Cesário Verde sucedeu quase a mesma coisa. O tempo fê-los e os faz. O nosso dever é trabalhar.

Haverá alguma especificidade do conhecimento poético, que traga uma mais-valia à poesia? Será uma forma de conhecimento tão útil, tão penetrante como o conhecimento científico, filosófico e outros?

A poesia traz várias coisas… Escrevi sobre isso um texto com o título “Poesia e Mundividência”. A poesia traz talvez a evidência. A filosofia anda à procura de, na poesia isso está lá. Se não estiver lá é porque talvez o poeta não tenha a humildade necessária. Há um livro meu que se chama Lugar de Estudo: o que importa é aquilo que se estuda e não quem estuda.

Aprendi a ler com um alfaiate que tocava flauta numa banda. Não havia mais nada e o meu pai mandou-me para lá quando tinha seis anos. Comecei a ser estudante aos seis anos e ainda hoje me considero estudante. E não sei se sou bom, porque já sou estudante há tanto tempo…Naturalmente, nem bom estudante fui… Vou fazer 90 anos em Fevereiro e agora é que estou a aprender. E chamo aprender adquirir aquela espécie de independência e de objectividade que a velhice dá, que nos é recomendada pelo Cícero no seu tratado De Senectute, que dá um jeito enorme na idade que tenho, nem queiram saber… Agora é que estou a aprender, e às vezes ainda me sinto novo demais…

Mais do que um desgaste, a velhice é uma espécie de apuro…

É, e a gente aprende coisas que nem calculava que aprendesse. Com a passagem do tempo há aquilo que nós perdemos e aquilo que nós ganhámos. E o que ganhámos resulta em desfavor do que perdemos, de certa maneira. Daí a nostalgia, de que falo já há muito tempo. A nostalgia é o que se passou. Santo Agostinho diz sobre a memória: a memória é a presença das coisas passadas. De forma que nós não perdemos tudo, porque fica a memória que é a presença, mas das coisas passadas.

A sua poesia foi já traduzida em várias línguas. Vale a pena traduzir poesia? Como vê esse exercício: milagre, traição, alquimia, contrafacção?

Não posso dizer nada contra os tradutores, por uma razão muito simples: não sei alemão. Alguns poetas alemães, nomeadamente os primeiros românticos, nunca os teria lido se não houvesse tradutores. De forma que tenho muito respeito pelos tradutores.

Costuma dizer-se que a tradução é uma traição. Há uma parte disso, mas há uma outra parte, que não é despicienda, e que consiste em recuperar aquilo que em princípio estaria perdido, através de uma criação de correspondências.

Gosto muito de Novalis e estou a lê-lo em francês, o Rilke a mesma coisa…

Como encara o papel da crítica de poesia? Como convive com ela?

É lá com eles…Não tenho razões de queixa. Em Espanha nem queiram saber, fizeram-me lá uma antologia bilingue, porque tinha nascido lá.

Mas não é um poeta espanhol…

Em Espanha perguntaram-me: qual é a sua pátria? Eu respondi: “a minha pátria é o exílio, mas não me esqueço que nasci aqui…”. Em Espanha há uma maneira de dizer que tem piada. La patria chica é o sítio onde a gente nasceu.

Dos críticos, há fulanos que não são do meu campo, não sei se ideológico ou não (não sei se tenho ideologia, tenho outras coisas, ideologia acho que não…), mas que apreciam aquilo que faço. Não digo que sou insensível a isso. O bicho humano é feito de tudo… Procuro é não ser vaidoso, isso seria horrível. O vaidoso é aquele que colhe louros onde não tem obras. É coisa que não me interessa, o poeta é um homem que tem ofício, como eram os antigos “artistas”, como o “artista trolha”, ainda dizemos isso…

Voltando à questão da pátria, quando escreve poesia escreve-a na língua portuguesa ou também é capaz de pensar a poesia na língua espanhola?

Comecei a escrever versos no seminário em Gaia, quando tinha doze anos. Mandaram-nos fazer uma redacção e, não sei porquê, pus duas quadras ao fim… Estava lá um padre português, que reparou nisso e disse: “eras capaz de fazer isto tudo em verso?” Respondi: “vou tentar”. E fiz. Todos os meus colegas acharam que era ele que tinha feito aquilo… E o Superior (eu tinha lá a carteira cheia daquela versalhada toda…) mandou-me queimar aquilo. Mais, mandou-me ir ao cozinheiro pedir fósforos para o fazer no quintal. Fui lá, cheguei à cozinha e o ecónomo era um outro padre. Expliquei, mas ele disse-me “mete ali no fogão”. Aquilo para mim foi um alívio e disse-me quem era aquele homem. Percebeu que era uma coisa que não se fazia… Fiquei-lhe sempre grato por isso…

Quando cheguei a Espanha, havia uma discussão sobre os modernistas. O modernismo espanhol não tem nada a ver com o modernismo português, são coisas totalmente diferentes, é fruto do Rubén Dario e tem mais a ver com o simbolismo, e o nosso não é bem isso… Os espanhóis que vinham de El Espino, o seminário menor deles, diziam que aquilo não prestava porque não se percebia. Eu disse: “então eles não percebem e sabem que não presta? Aqui há qualquer coisa que não joga…”. Comecei a escrever, mas sobretudo a ler o Antonio Machado e algum tempo depois o Juan Ramón Jiménez. Para dizer a verdade, de princípio não percebia muito daquilo, havia ali um mistério que não conseguia desvendar. Até que um dia, andava à procura de qualquer coisa, e saiu-me algo que tinha a ver com aquilo… A partir daí comecei a escrever em castelhano e depois deixei praticamente de escrever em português. Só escrevia em português as cartas ao meu pai, o resto era tudo em castelhano, eu que nunca estudei castelhano, mas a minha mãe era espanhola…

A sua sintaxe, que é muito peculiar, pode ter a ver com essa matriz castelhana? Diz-se de Fernando Pessoa, como teve aquele banho linguístico de inglês na África do Sul, que o seu português é um pouco especial…

Mas o Fernando Pessoa sabia latim… Há versos dele que são quase versos latinos traduzidos, e depois havia também o inglês… Para o Fernando Pessoa é assim… De Mallarmé, os franceses também diziam que ele não sabia escrever francês. Porquê? Porque tinha também estudado latim e a prosa dele faz, por exemplo, aquilo a que nós chamamos no latim o hipérbato. Eu é o que faço também… É a matriz latina. Pode haver ainda coisas espanholas, porque há enormes autores espanhóis, como o Calderón… Diz-se que a filologia está ultrapassada, mas é porque não se sabe latim…

A leitura da poesia de certos autores contribui para o seu bem-estar?

Sim, evidentemente, mas agora leio menos poesia… Releio poesia (aqueles poucos poetas que ainda leio…). Isto porque estou a fazer e, quando a gente está a fazer, está num outro mundo, que nem sequer é mundo nosso, é o mundo do fazer. Já disse: o sujeito (o fulano) ao fazer desaparece, para ficar o fazer, que é o que a poesia quer dizer: fazer. O fulano fica anulado. Não digo que ele seja um instrumento, mas é uma coisa um bocado semelhante. É sair do mundo para entrar noutro. Ora, ler outra poesia é entrar num outro mundo. Pode suceder que às vezes a gente releia poemas de outros e sinta assim uma espécie de família, uma sintonia… Vemos que, afinal, não estamos sós neste mundo…

Como se reflecte a sua necessidade de ler e escrever poesia, é como se fosse algo de inato?

Não é uma coisa inata. Quando trabalhamos com um certo ritmo sustenido (digo“sustenido”, sem “o”, porque é uma modificação de clave), a gente já não trabalha, encontra-se a trabalhar. Lembro-me de andar em Paris a passear e, de repente, dava comigo a trabalhar, sem esforço nenhum. Sem dizer “agora vou trabalhar”. Estamos naquela onda, não se sai, não se entra, está-se nela.

Quando sentiu que a sua vida passaria pela literatura e pela poesia?

O momento foi quando, naquela disputa com os espanhóis de que falei, acerca do modernismo, vi que, afinal, havia uma língua que não conhecia, e comecei a trabalhar nessa língua. Como tinha de ganhar a minha côdea, fiz várias coisas, e o primeiro emprego em Paris foi o de porteiro. Depois, no sítio onde fui porteiro, acabei por ser professor de francês para estrangeiros. Com os horários das aulas, tinha de ter um rigor muito grande para poder trabalhar para mim, nas minhas coisas, ler e escrever. Esse rigor fez-me bem, porque ganhei uma disciplina que não era vã, era para. Nessa disciplina houve uma sorte enorme, porque pude, nessa época, em França, reformar-me aos 58 anos. Tive duas grandes alegrias na minha vida: uma foi essa reforma, e disse então “agora começo a ser eu”. Houve outra: tinha uma vida muita apertada economicamente e só podia tomar um café por dia, mas, quando pude tomar dois, senti-me rico… A vida não é só ter dinheiro, é outra coisa…

Há autores que costuma rever?

Agora só compro livros que tenho a certeza de ler ou que emprestei…

Faz descobertas dentro da biblioteca que tem em casa?

Sim, penso: “deixa-me ir ver aquela página…”

Porque fez a opção pelo apelido em espanhol: Echevarría e não Ferreira?

Quando houve aqui um concurso do centenário do Almeida Garrett e um prémio dado pelo Ateneu Comercial, eu concorri. O livro não era bom, achava que não era bom, mas, apesar de tudo, teve um voto, que foi o do Vitorino Nemésio. Ele perguntou-me então: “porque põe Echevarría e não Fernando Ferreira”? Dizia ele, “Echevarría soa um bocado a espanhol e depois as pessoas vão pensar que o autor é espanhol, não é português”. Eu encurtei o nome literário, mas escolhi o nome da minha mãe de propósito.

A minha mãe morreu quando eu tinha dez anos. Durante muito tempo isso foi um terremoto surdo que me acompanhou anos a fio. Depois foi-se apagando e incrementou a parte de esquecimento.

Reconhece que o nome remete para uma outra língua?

Mas eu deixei de falar espanhol… Só que quando voltei à Espanha recuperei a língua rapidamente, sem ter estudado o castelhano, mas escrevia-o como os outros todos. Havia só, de início, os problemas que os portugueses têm com o castelhano, porque há falsos irmãos. Um dia fui ao mestre de noviços pedir-lhe uma escova dos dentes e ele deitou-se a rir, porque escova é uma vassoura…

Mas a mãe em criança falava consigo em espanhol?

Não, a minha mãe falava em português e depois tinha uma coisa extraordinária. A minha mãe gostava muito de cantar…

Valeu a pena esta opção pela palavra? Alguma vez se imaginou fora do mundo das palavras?

O caso do fulano é inconsistente. Só a obra tem relevo. E, nela, claro, as palavras que a sustentam. O fulano, esse, enquanto for vivo, escreve.

Cantareira, Foz Velha, Porto, 24 de Novembro de 2018

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