ENCONTRAMOS na contracapa da sua mais recente publicação, Últimas Regras (Companhia das Ilhas, 2019), uma muito justa apresentação de Inês Lourenço: “Nasceu no Porto em 1942. No seu percurso biográfico, em que também se manifesta uma certa atitude inconciliada com o lugar reservado à identidade feminina no imaginário simbólico e na cultura, sobressai uma contínua actividade no campo da poesia, como autora e igualmente na coordenação dos cadernos Hífen, entre 1987 e 1999. O Segundo Olhar (2015) escolhe poemas de uma obra que se inicia em 1980 e nos deu em 2016 um novo original, O Jogo das Comparações, em que se propõe que Um poema / é sempre uma pergunta / sem resposta. É seu um lugar imprevisto na poesia portuguesa, onde se cruzam virtuosismo verbal, ironia, quotidiano, acidez e iconoclastia, mas também um tom reflexivo e uma prolongada e candente meditação de teor existencial”. De referenciar, ainda, três títulos editados na mítica & etc, Logros Consentidos (2005), A Disfunção Lírica (2007) e Coisas que Nunca (2010), para além de antologias da própria poesia e numerosas inclusões em outras publicações nacionais e de diversos idiomas. Fomos ao encontro de Inês Lourenço na casa que habita, num antigo bairro de uma zona alta do Porto, deixado o dédalo urbano junto ao rio, para o qual, como sugeriu um dia num poema, Safo, a décima musa, talvez não desdenhasse precipitar-se. No caminho, a cidade mercantil e globalizada, que talvez lhe pudesse merecer o comentário que encontramos em “Carta de Agosto”, ao aludir ao “cortejo carnívoro de utentes de O Mesmo”, e enfim este escritório, não muito longe da Rua de Camões natal, que celebrou num dos seus primeiros poemas.
Talvez pudéssemos começar pelo mais circunstancial. Como descreveria o seu local de trabalho? É uma ilha, uma cela, um santuário?
“Santuário” aboliria “ in limine”, porque a poesia tem o uso e até o costume de dessacralizar as coisas, ou de inventar novas sacralidades. É algures um lugar entre ilha e cela, no sentido de cela de um mosteiro, espaço de reflexão, de retiro, de olhar para dentro de si próprio – nunca cela de prisão…
Há no seu “habitat” de trabalho objectos indispensáveis à sua volta ou é absolutamente supérfluo o que a rodeia no momento da escrita? Tem de ser um ambiente amigável, deve ter luz, silêncio, música, ruído?
Sim, neste momento o computador é absolutamente indispensável, e os livros, o próprio cheiro dos livros… Não ouço música, porque acho que o texto tem a sua música interna; as palavras e o seu encadeamento já estabelecem uma melodia ou uma não melodia (pode ser uma coisa sincopada, o que se quiser, depende do escriba…). Portanto, nunca ouço música a escrever, ouço música apenas, sem mais. Escrevo em silêncio, sobretudo em silêncio.
Como descreveria a sua biblioteca? Está mais próxima de uma ideia de “cosmos” ou de “caos”? Como a organiza ou desorganiza?
É, se calhar, um misto… Porque, por exemplo, nessa estante aí [aponta] é tudo poesia (com excepção de uns livros na prateleira de cima, que considero universais, uma boa edição de Os Lusíadas, a Odisseia, a Ilíada, dicionários de símbolos e outras sagezas…). No resto da estante, poesia organizada de A a Z. Há uma ordem alfabética, mas dentro dos “A”, por exemplo, os livros não estão rigorosamente por ordem: às tantas, anda um António Ramos Rosa misturado com uma Ana Hatherly, e assim sucessivamente… Mas procuro seguir uma ordem.
Considera-se uma bibliófila?
Sou amiga dos livros e tenho algumas raridades – tenho ali uma prateleirinha de raridades, em cima… Se encontrasse assim uma raridade extraordinária, sei lá, uma primeira edição da Clepsidra de Camilo Pessanha, que é um dos meus poetas de culto, se calhar era capaz de investir, só pelo gosto de ter a sensação de tempo nas mãos – olha, este livro já foi feito há 150 anos ou há 200 ou há 300… Nesse sentido, sim, mas não sou fanática. Interessa mais o que diz dentro de um livro do que, propriamente, a antiguidade…
Tem uma rotina de escrita, rituais?
Tenho alguns… Gosto de escrever à noite, porque a cidade (embora eu tenha janelas duplas…) está muito mais silenciosa. Ninguém telefona, não é preciso fazer refeições, não vem ninguém bater à porta… Estamos completamente livres, apesar de ficarmos com umas horas de sono a menos… Mas isso, a partir de uma certa altura, já não é relevante, se já se pode prolongar o sono pela manhã dentro… Escrevo à noite, o que não quer dizer que não reveja os textos de tarde ou, o que é mais raro, de manhã. Até porque eu tenho a teoria muito pessoal de que um poema nosso, que estamos ainda a construir, deve ser lido a diversas horas do dia, porque a sensibilidade é diferente. Normalmente, à noite, quando escrevemos e lemos o poema (o poeta é o seu primeiro leitor…), achamos que o que fizemos até está interessante. Não sei se é por ser noite, há uma energia diferente que nos faz ser mais passa – culpas connosco próprios… Achamos que aquilo está bom, mas, se vamos ver ao outro dia de manhã ou à tarde, quando a vida quotidiana se impõe e uma pessoa já é, de certa forma, outra e a cabeça está de maneira diferente, lemos o que escrevemos com algum distanciamento do clima nocturno e somos muito mais impiedosos. Eu sou muito mais impiedosa: digo, “isto não está bem”, “esta palavra aqui está a mais”, … Se calhar, reduzo o poema a metade… Portanto, é preciso passar o crivo das diferentes situações de leitura, em que somos também leitores diferentes. Buscamos um aperfeiçoamento, não no sentido da perfeição por si mesma, mas daquilo que fizemos ser comunicável a mais gente. Herberto Helder sugere, algures, que nenhum poema se destina ao leitor – isso é uma “blague”, considero eu, como muitas outras que os poetas dizem… Porque, em última análise, o poema destina-se ao primeiro leitor, que é o próprio poeta, ao leitor que há nele, e que, nessa medida, corta isto, corta aquilo e acrescenta aqueloutro… É por isso que as minhas leituras dos poemas são feitas a horas diferentes do dia…
Mantém boas relações com as velhas musas inspiradoras? A inspiração é importante para si?
As musas eram umas entidades clássicas. Havia nove musas e Safo, inclusive, foi considerada a décima por Platão… Patrocinavam as artes e havia uma para a poesia épica e outra para a poesia lírica. Continuamos a falar na musa, mas isso acho que já é apenas um tópico… De qualquer forma, uma pessoa escreve sob determinados estímulos. Por exemplo, eu posso ouvir na rádio uma notícia que me revolta imenso ou ver uma crítica de um livro, vamos supor, em que se diz uma coisa exactamente oposta à que eu penso sobre a vida, sobre os seres humanos – ponho-me então a reflectir e, se calhar, debaixo daquele estímulo sou capaz de escrever um poema, que é um poema de reacção… Ou posso estar num café a falar com outra pessoa e guardo emoções, e talvez vá depois escrever… Creio que era Valéry que dizia que havia o “manequim” do poema, de certa maneira o fulcro de onde parte a ideia inicial, que não é necessariamente o primeiro verso. Essa ideia inicial é um estímulo e até pode ser a conclusão do poema…
Na eclosão da sua poesia, qual o papel das leituras e das outras artes, muito em particular a música e a pintura? As viagens são também importantes?
Sim. Tudo isso são estímulos para escrever, até porque são novas visões da realidade circundante, de outras pessoas. Um quadro pode ser uma viagem, olhar para dentro dele pode ser uma viagem…Igualmente a música, citando Jorge de Sena: “se todas as artes me são necessárias à vida como o ar que respiro, a música ocupou sempre, entre elas, um lugar especial”. Não concebo viver sem a música.
O seu percurso biográfico tem como referência fundamental esta cidade do Porto, onde nasceu, e a que associa, naturalmente, tantas memórias pessoais e culturais. Considera que esta circunstância é determinante para a sua escrita?
O lugar de origem é muito importante para toda a gente que escreve, a não ser para aqueles que são decididamente apátridas ou que vivem como nómadas. Há um sentimento de um certo nomadismo, para quem passou por muitas cidades e nelas viveu. Eu, embora fizesse algumas viagens, não estacionei assim grandes temporadas fora do país. Porque os meus pais e os meus avós eram do Porto (a minha mãe de Paranhos, o meu pai de Cedofeita…), tenho uma sensação algo difícil de definir: este local, desde há muitos séculos, incorpora realidades que me dizem respeito, à minha individualidade mais profunda. Mesmo quando as famílias se separam ou as pessoas morrem, continuamos a sentir um parentesco com certos sítios da cidade. As pessoas já desapareceram, mas os sítios onde nós passamos, por onde passeamos ou andamos com elas, onde moraram, onde nos lembramos de estar com elas, esses lugares continuam lá, embora o urbanismo às vezes os modifique… Há qualquer coisa de familiar. Eu sei que, quando desço a rua de Camões e chego ali à Igreja e à Praça da Trindade, a Alferes Malheiro, a certas esquinas, tudo me parece da família. São pedras, são casas, é coisa urbana, mas sinto-me em casa. É a minha casa… Direi que, mais do que na cidade, me sinto em casa no Porto.
A Inês, que tantas vezes se mostrou inconformada com a imagem e o papel atribuídos à mulher na nossa sociedade, revê-se mais na palavra “poeta” ou “poetisa”? Poderemos falar de uma escrita feminina?
Essa questão da palavra “poeta” e “poetisa” está a modificar-se… Sophia de Mello Breyner dizia que “poetisa” era a mulher do “poeta”… Uma vez perguntaram-lhe, numa entrevista, se estava sempre de acordo com o marido e ela disse que não: se estivesse sempre de acordo, um deles não pensava… Isto vem a propósito… Havia, nomeadamente em Espanha, nos fins do século XIX, primeira metade do século XX, a ideia de que “poetisa” era aquela mulher que fazia versos sobre as flores, sobre a paisagem, os sentimentos – digamos, motivos mais femininos, entre aspas… Era um pouco como se diz dos vinhos adamados, era uma espécie de poesia adamada… Então começou a revelar-se uma corrente que achava preferível “poeta”, como defende Sophia, por exemplo. Mas Natália Correia ou Teresa Horta preferiam “poetisa”… Reportando-nos àquele tempo, acho que Sophia tinha uma certa razão. Embora exista a palavra “poetisa” no léxico português, realmente a referência era muito marcada por certos preconceitos. Depois desta fase, em que se ligava a poesia feminina a falar de flores, de jardins, da nuvem que vai a voar no céu (não faz mal nenhum falar na nuvem, mas tem de se transportar a nuvem para outra coisa…), passou-se para a famosa cena do corpo feminino. Veio a libertação sexual, nos anos 60 do século XX, e então também passou a ser uma marca poética feminina, quase obrigatória, falar só do corpo, do eros. Ora, eu acho que tudo que seja uma espécie de tópico de que já se está à espera porque se é mulher, é limitativo e revela falta de liberdade. Sempre considerei a palavra “poeta” num sentido mais neutro, não apenas ligado ao masculino. Não gosto muito que me chamem “poetisa”, sou franca, gosto mais de”poeta”. Mas concordo que, neste momento em que há quotas femininas nos parlamentos, tendo em conta a ascensão da mulher à carreira da magistratura, à sua intervenção na vida social, na vida política, na vida cívica (embora algo minoritária ainda…), se poderá retomar o vocábulo “poetisa”, que já não tem adstrita essa coisa da senhora que está em casa, a fazer os bordados, ou que, coitadinha, era muito mal vista se se dedicasse a actividades extra-familiares. Não é por acaso que as mulheres tiveram de adoptar pseudónimos masculinos para afirmar as suas obras junto dos editores. Mesmo J.K. Rowling, autora do Harry Potter, dizia que mandou vários originais para editores com o seu nome, que é Joanne, e que não aceitavam as obras. Quando começou a assinar com “J.K.”, que era ambíguo, teve imediatamente outra recepção. Isto é dos nossos dias, não é do tempo da George Sand ou das irmãs Brontë, que também começaram por assinar com nomes masculinos. Esses condicionalismos influem na escrita e na recepção da poesia feminina. Mas quem quiser dizer “poetisa”, tudo bem, eu não fico ofendida… Neste momento, quanto a esta preferência, está-se numa fase de hesitação.
Aceita que a sua poesia, com a ironia, acidez e iconoclastia que tantas vezes a marcam, possa ser considerada de intervenção?
Eu acho que esse carimbo de intervenção normalmente fica um pouco circunscrito à intervenção política. Não, não me revejo muito nisso, porque acho que tanto falo de uma coisa muito íntima como falo de uma coisa social… No mesmo poema podem coexistir esses itens. De qualquer forma, todo aquele poeta ou escritor cujos textos não intervêm no seu tempo e na mente dos seus leitores, mais valia estar quietinho… Intervir acho que é necessário, mas não no sentido de irmos para a revolução… Ainda não estou bem capacitada de qual será a revolução ideal, porque tem havido várias, e depois revestem-se sempre de rituais sanguinolentos, como seja a Revolução Francesa, que foi muito importante, mas descambou na guilhotina e sacrificou gente inocente; ou a Revolução Soviética, que na base teve objectivos imensamente positivos, como acabar com os mujiques, que eram quase uns servos da gleba, vendidos com os campos, terminar com aqueles grandes domínios dos condes e príncipes russos, superar a miséria – era tudo muito louvável, mas depois, para segurar esses bons propósitos iniciais, há imensos desvios. De maneira que seria excelente encontrar um tipo de revolução sem essas consequências, mas também, sem isso, talvez ficasse quase tudo na mesma…
Por falar de intervenção, como é que vê a relação entre a poesia e a “internet”?
Ainda ontem vi na “internet”um poema muito interessante de António Cabrita, meu contemporâneo, dos anos 80, acerca dos poetas de agora… Depois havia um comentário que citava um artigo do jornal El País acerca dos poetas”pop tardo-adolescentes” em Espanha. Referia-se que esses poetas nasceram na “internet”, nas redes sociais, e que neste momento há editoras interessadíssimas neles, é um fenómeno até comercial. Escrever poesia é olhar de outra maneira e há sempre gente criativa, com boas referências culturais e que conhece, que leu… O problema é que uma pessoa não se pode meter a escrever poesia sem ter lido para trás obras importantes, sem ler os grandes clássicos, porque senão arrisca-se a estar a pensar que descobriu uma coisa que já está descoberta há imenso tempo… Acho que neste momento se nota a tendência de falar apenas das coisas quotidianas e banais (e eu também o pratico…), mas é preciso ter sempre uma saída para algo de mais profundo… Fala-se do quotidiano, mas será necessário encontrar uma correlação desse discurso com algo que interesse à comunidade humana, de forma que uma pessoa que leia aquilo se reveja… Se falas na tua mesa, tens de falar noutro tipo de mesas também ou na ausência delas… Eu noto que, neste momento, há assim um certo ensimesmamento, um culto do banal pelo banal, com umas expressões descosidas, só para surpreender e intrigar…
A propósito dessa questão, de que é preciso ler o que está para trás, revê-se em alguma família poética? Sente que há afinidades electivas com alguns autores? Venera heróis literários?
Uma coisa são as eventuais afinidades electivas, outra coisa são os heróis literários. Vamos por partes. Quanto a afinidades electivas, eu sou bastante (como é que hei-de dizer…?) heterodoxa, acho que há coisas boas nas diferentes maneiras de fazer poesia. Acho que se pode ser muito bom sendo um poeta místico (e eu não sou propriamente crente, sou agnóstica – também não vou no ateísmo, não digo não há nada, não…, espero o que é que vai acontecer quando for desta para melhor, acho que uma das belas surpresas da morte é essa, termos um comprovativo desse grande mistério – para já estou expectante…), mas pode-se, dizia, ser bom poeta sendo um poeta místico, sendo um poeta de intervenção, sendo um poeta mais do lado do lirismo, sendo um poeta erótico, embora eu não aprecie insistências monotemáticas… Não tenho nada contra esses poetas, falo apenas do seu produto textual: sempre o erotismo, estou na cama desta maneira e olho para ti daquela, e agarro-te com a mão direita, e agarro-te com a mão esquerda, e o teu dorso e a tua perna, e o teu não sei quê, eu sinto-me assim, eu sinto-me assado, … – quer dizer, acaba por ser, para mim, fastidioso. Para uma criança que ainda está a aprender as partes do corpo, é pedagógico ler essa poesia… Acho que não me insiro assim em nenhuma família poética. Eu tenho um lema, uma ambição para a minha poesia: é ser ao mesmo tempo emocional e reflexiva. O meu sonho sempre foi reunir as duas grandes vertentes da interioridade: a emocionalidade (porque não há arte sem emocionalidade) e, ao mesmo tempo, a reflexão. São as grandes perguntas sem resposta… Essa será a família poética, de resto, não tenho assim sensações de pertença. Quanto a heróis literários, um grande escritor português é, sem dúvida, Fernando Pessoa, de que gosto muito, acho que é realmente toda uma literatura…; mas também Camilo Pessanha, Jorge de Sena (que é um poeta multifacetado), Sophia, Luiza Neto Jorge, Fiama, Fernando Guimarães, Vasco Graça Moura, Joaquim Manuel Magalhães (mas não é o desta última fase, em que decidiu andar ali a podar os seus livros, embora tenha toda a legitimidade para o fazer…), o inevitável Herberto Helder e, claro, o meu querido Eugénio de Andrade. E há muitos outros poetas por quem tenho estima. O Camões, sempre…, o Nemésio, a Natália Correia, … Quanto a heróis da ficção, quando era miúda lembro-me de que o meu primeiro herói foi o Jorge dos Fidalgos da Casa Mourisca; eu tinha para aí 9 anos quando me apaixonei pelo Jorge, que era um rapaz tão simpático… Ainda sou do tempo em que se lia o Victor Hugo, Zola, Balzac, Romain Rolland, que tinha um romance em cinco volumes chamado Jean Cristophe, Camus, … Também gostava muito do Sartre, da Simone de Beauvoir, dos russos, do meu querido Dostoievski, de Tolstoi. Essa gente toda era o nosso grande recreio das férias grandes, imensas, de Agosto e Setembro, dois meses, 60 dias ali ao alto… Era a praia e a leitura, não havia televisão, nem telemóveis… Havia praias excelentes, que não tinham nada a ver com as de agora, ainda tinham os “beijinhos” e os buziozinhos, sinal de que não havia poluição. Andavam verdadeiras hordas a apanhar os “beijinhos” na areia e os caramujinhos, para fazer colares, pulseiras. Havia a praia e a leitura… Eu lia esses romances, e também os americanos… Nesses tempos o teatro quase não se representava, por causa da censura, de maneira que as edições de teatro vendiam-se muito, como o Tennessee Williams. Mas li também o Charles Dickens (David Copperfield), as Brontë (A Paixão de Jane Eyre), li e reli, aquilo era muito interessante para os meus 15 anos… Como heróis literários, temos também aqueles escritores de quem a gente diz “que bem que este fulano escreve…”. Nesse sentido, o José Régio foi, para mim, um grande herói literário e poeta. Quando ele veio com aquele poema, o “Cântico Negro”, era assim uma coisa do arco da velha… Fui proibida de dizer esse texto num recital da escola, porque a minha professora de Português, que por acaso até era poetisa ou poeta (era mais poetisa…), me disse: «Vais lá dizer que és filha de Deus e do Diabo? Vais dizer isso?» Ali, na Filipa de Vilhena… Quanto ao Régio, eu só dizia «quem me dera ir para Portalegre…». Eu só queria ir e ter aulas de Português em Portalegre com o Régio… Digamos que é um herói literário…
Falando agora da Hífen: que importância teve na sua vida a revista literária que inventou e editou?
A Hífen foi realmente importante. Antes dessa revista, tinha ajudado a editar uma outra de textos feministas, que se chamava Artemísia. Depois saí e aquilo acabou, porque pretendiam fazer uma coisa panfletária, e eu não queria. Numa discussão, disse a propósito de uma colaboração: «isso não é um texto, é um ruído…» A seguir a essa Artemísia, pensei que tinha de virar-me para fazer uma coisa de que gostasse e lembrei-me de organizar uns cadernos de poesia. A princípio houve uma certa estranheza, talvez por não frequentar certos grupos do Majestic ou do café Piolho. Não fazia parte dos “milieux”, tinha acabado o curso de Letras e escrevia, de maneira que fui sempre um bocado solitária e fora das “paróquias”. Mandava aos poetas um convite com um texto em que dizia qual era a ideia da revista, e começaram a responder-me. Nessa altura, em 1987, ainda era tudo por cartas, não havia” internet”… E começaram, então, a responder-me, a mandar-me textos, e assim comecei com a Hífen. Foi muito interessante, tenho cartas do Luís Miguel Nava, do Ramos Rosa, da Natália, dessa gente toda, a enviar-me os poemas. Foi uma experiência, de facto, interessante, e a Hífen ainda calcificou mais, no bom sentido, uma espinha dorsal: a minha ideia de que se pode ser bom tendo diferentes modos de escrever poesia. Isto porque “hífen” quer dizer traço de união entre coisas diferentes. Lembro-me de quando levei o primeiro número ao Fernando Fernandes da livraria Leitura (um excelente livreiro…). Diz-me ele assim: «mas esta gente dá-se toda bem uma com a outra?!». Respondo-lhe: «os textos não pegam à bulha uns com os outros…» Naquele ano de 87 estava-se numa espécie de hiato, um certo esgotamento das vanguardas. Ainda se estava sob a influência do Fernando Pessoa, havia gente a escrever à maneira do Fernando Pessoa… Estava, por outro lado, a surgir a grande galáxia chamada Herberto Helder, e os epígonos do Pessoa passaram para epígonos de Herberto Helder: torrentes de palavras… Não havia revistas nenhumas e então entrei com a Hífen, e aquilo teve algum sucesso. Claro, o grande público nunca se chegou a aperceber, foi mais entre os poetas… Era mais uma revista para a comunidade poética, sejamos objectivos…
Como conseguiu fazer a revista, tinha pessoas a auxiliá-la, não era só a Inês…
Eu ia todos os dias ao apartado buscar a correspondência, fazia os convites, o meu filho, Nuno Lourenço, que é arquitecto, fazia o grafismo; tinha a ajuda do José Manuel a fazer as revisões de provas, isto a partir do n.º 2 ou 3 da revista. O primeiro saiu com algumas gralhas… A gráfica era muito perto, ficava aqui na Rua do Paraíso, era a Imprensa Social, ainda a chumbo… Eu descia a rua, tinha lá os velhos tipógrafos que já me conheciam e eu ia pedindo, faça isto, tire aquilo… A tipografia era quase minha vizinha… Depois arranjei uma distribuidora que me pegou na Hífen, mas que distribuía nos sítios talvez menos indicados para o público de poesia, e eu recebia muitas devoluções. A partir de certa altura arranjei um patrocínio do Instituto Português do Livro e das Bibliotecas, mas isso revelava-se ruinoso: davam uma pequena ajuda e depois mandavam uma lista das bibliotecas do país inteiro para mandar a Hífen, de maneira que só em despesas do correio ia o subsídio e depois, como não tinha ninguém para me fazer os embrulhos, acabava por comprar envelopes almofadados que são caríssimos…. Só em correspondência gastava o subsídio… O último número foi em Dezembro de 1999, mudança de século e de milénio, mas eu acabei porque nessa altura a tipografia a chumbo estava no seu estertor, já se estava a entrar na era do computador, e levava-se um dinheirão para digitar os textos, por haver nesses tempos pouco pessoal habilitado para o efeito. Tive de deixar esta tipografia e fui para outra, junto à Escola de Belas-Artes, que não cumpria prazos, e comecei a ter problemas… A mudança do processo de impressão trouxe-me problemas vários, de custos, de prazos. Então decidi acabar, porque tudo isso me impedia de escrever para mim. Eu estava sempre preocupada com a Hífen (pedir os textos, coleccioná-los de uma maneira harmoniosa, enviá-los aos autores, andar atrás das críticas, até assinei a “Recorte”, encarregada de pesquisar nos jornais…). Acabei com tudo para me dedicar à minha escrita. Foi nessa altura que comecei a escrever mais… A revista durou muito tempo, porque só já estava a fazer um número por ano. Primeiro eram “cadernos semestrais”, mas depois passei simplesmente para “cadernos de poesia”, porque era impossível aguentar o ritmo.
Teve ainda o privilégio de conhecer muita poesia inédita?
Eu nessa altura ia à Leitura (ainda existia essa santa livraria…), via o que tinha saído, escolhia meia dúzia de livros e levava-os, ficava com referências. Editei muita gente pela primeira vez, um deles foi o João Luís Barreto Guimarães, e tenho o último poema que escreveu o Grabato Dias – morreu oito dias depois… Tenho um poema do Joaquim Manuel Magalhães totalmente inédito, que não está em mais lado nenhum…
Como vê o lugar tão minoritário e marginal que a poesia hoje ocupa, se compararmos com outras épocas? Será que, neste tempo tão globalizado, lhe cabe ainda um papel importante?
A poesia tem sempre um papel importante, porque é um misto de reflexão, filosofia e arte. É a que mais se aproxima, de entre todas as artes, de uma reflexão e de uma emocionalidade, conjugando essas duas vertentes. A poesia tem sempre lugar. Aliás, percebemos que em movimentos de libertação vêm logo aqueles “slogans”, que são quase pequenos poemas, como “o povo unido jamais será vencido”- isto é quase poesia, até rima… Nos grandes momentos sociais, em que há um sofrimento, uma angústia das comunidades, a poesia surge espontaneamente. A poesia tem sempre lugar. Neste preciso momento, sofre de um certo eclipse… Mas, se calhar, esses poetas que agora estão a meter essas coisinhas tipo “ó Maria, traz cá a escada…” vão ser úteis, porque eu acho que a poesia se afastou muito do cidadão médio. Há sempre o cidadão médio, aquele que não é especialista em nada e não tem grandes leituras… Os pais, se calhar, não tinham livros em casa… Agora é moda não ter livros em casa, tudo despacha as bibliotecas, os velhos morrem e os descendentes apressam-se a pôr os livros pela porta fora, porque ocupam muito espaço. Muitas vezes não se gosta de música clássica, de poesia, de pintura, porque nunca houve um ser adulto que levasse a criança a um museu e dissesse “olha…”. As crianças têm uma plasticidade da imaginação muito grande, apenas faltam adultos que as iniciem na leitura. O grande problema é esse: as artes têm códigos, tem de se saber como é que se entra ali… Neste momento o discurso é “quero um Porsche”, “quero uma casa com piscina”, está tudo muito virado para esse lado material, porque as pessoas eram muito pobres e só havia meia dúzia de privilegiados. Estamos no refluxo disso… Pelos vistos, agora até se está a comer carne a mais, que era coisa que havia uma vez por mês… De maneira que as pessoas estão muito agarradas ao “ter”; agora o grande impulso do humano é para concretizar necessidades primárias: comer bem, ter bons apetrechos, divertir-se, de maneira que, se a poesia se põe lá muito nas suas tamanquinhas da intelectualidade, não diz nada a ninguém… Acho que é necessário haver uma maior aproximação, mas no plano do texto, não se trata de fazer muitos congressos, muitas festinhas, mas de escrever de uma forma que cative as pessoas.
Quer falar-nos dos projectos de escrita com que se ocupa actualmente?
Neste momento, quanto a projectos literários, tenho uma antologia brasileira numa editora do Rio de Janeiro, que deve sair no fim deste ano, com o título Os Pecados Predilectos, organizada e posfaciada pelo poeta brasileiro Ronaldo Cagiano. Tive algum trabalho para salvar o “c” do “predilectos”, que queriam, na editora, abolir, por causa do acordo ortográfico. Também tenho outros projectos pessoais. Um deles tem a ver com um “caderno de viagens” poético. Como viajei a muitos sítios, desde Petra (Jordânia) a Jerusalém, Veneza ou São Petersburgo, tive muitas agendas com apontamentos, mas nunca escrevi poemas. Só tenho uns sobre Berlim, um outro sobre um café em Paris, que era onde iam a Simone de Beauvoir e o Sartre… O resto deixei tudo por escrever – de maneira que estou agora a recuperar essas memórias das minhas viagens… Três destes poemas saíram recentemente na revista Eufeme. Também tenho um outro projecto que já iniciei, tendo enviado os primeiros seis poemas para a Telhados de Vidro, a revista do Manuel de Freitas. Trata-se de escrever poemas a partir de versos de outros poetas, que me ficaram na memória desde há imensos anos, de elaborar um poema meu com as minhas reflexões, as minhas coisas, acres ou então não, comovidas, sobre aqueles versos. O título desse conjunto será Rizomas, que são assim uns caules enterrados na terra, umas raízes. Tudo isto para além de um velho projecto que não consegui ainda efectivar, que é o de fazer um volume com os meus poemas sobre o Porto, com todos aqueles que têm referências implícitas ou explícitas à cidade.
Como se reflecte a sua necessidade de ler e escrever poesia?
Eu acho que a poesia tem uma grande vantagem sobre a prosa, porque num poema uma pessoa lê coisas a que, se calhar, só chega em trezentas páginas de um livro de ficção. O romance é uma espécie de revivescência daquela necessidade que nós temos em criança de pedir ao pai ou à mãe «conta-me uma história para eu adormecer…». Para o apreciar, é necessário nós gostarmos de ouvir histórias. A poesia é um discurso diferente, apela à reflexão, ao pensamento, mas também dá o gozo da palavra, através da emoção que concita. Uma pessoa lê, por exemplo, aquela esparsa de Camões, “Ao desconcerto do mundo”, que é uma coisa maravilhosa: “Os bons vi sempre passar / No mundo graves tormentos”. Até decoramos sem querer, não se faz esforço nenhum… A poesia é muito mais instantânea, o leitor apreende e fixa muito mais… Estou sempre com os meus sentidos abertos ao aparecimento de um bom poema.
Quando sentiu que a sua vida passaria pela literatura e pela poesia?
Desde muito miúda que comecei a fazer quadras, ainda na escola primária, de maneira que sempre tive muita queda para isso… Não sabia se seria uma opção de vida… Sempre achei que querermos uma coisa não é determinante, porque há imensas circunstâncias na vida que nos condicionam. Por exemplo, os meus pais morreram cedo, e acabamos por não fazer nada do que pensávamos. O meu primeiro livro saiu em 1980, tinha eu trinta e tal anos, mas já incluía poemas que estavam na gaveta há dez anos. Eu acho que sempre tive a sensação de que tinha de escrever, era uma coisa muito interior, não sabia se ia editar, se iam comprar os livros, se iam escrever críticas, mas sei que queria fazer aquilo, como uma pessoa que tem fome… Ainda nasci nos anos quarenta e nessa altura as professoras na escola primária motivavam muito os alunos para decorarem poemas, e eu decorei a “Balada da Neve” do Augusto Gil, “O Estudante Alsaciano” de um ignorado Acácio Antunes, o “Se” de Rudyard Kipling, o “Cântico Negro” do José Régio (a que já aludi), etc. Havia nos anos cinquenta uma grande motivação para a poesia, neste sentido, e também páginas literárias nos jornais, no Notícias, no Janeiro. Lembro-me de ver no Janeiro, teria para aí os meus dez anos, um poema de Junqueiro, toda a gente falava ainda nele… A minha mãe também cantava… Era poesia rimada, mas uma pessoa desde criança que era muito levada por esse tipo de aproximação à poesia, muito pela oralidade… Eu fui sempre encaminhada para essas coisas. Mesmo para as orações eu tinha uma sensibilidade um bocado poética e literária. Achava que as orações, que era obrigada a memorizar na catequese, tinham qualquer coisa de poético. Ainda hoje sei de cor algumas, como se fossem poemas. A “Salve Rainha” acaba por ser um poema ”beato”, mas um poema [recita uma passagem]. Tudo são pequenos afluentes do mesmo rio…
Valeu a pena esta opção pela palavra? Alguma vez se imaginou fora do mundo das palavras?
Eu podia ter feito outras coisas, mas, no que quer que eu fizesse, o meu grande impulso era para a área artística. Eu também desenhava muito bem… Valeu a pena? É compensador? Não penso nessa ordem de ideias, acho que não pode ser de outra maneira, é uma espécie de destino… Estou como o Eugénio de Andrade, que visitei várias vezes e era meu amigo. Já idoso, escrevia em cima de uma tabuinha de madeira, que punha sobre os joelhos, e aludia ao facto de lhe dizerem que estava sempre preocupado com os seus poemas, e ele respondia «é o que eu sei fazer, escrever poesia, é o meu trabalho». Já estou como ele…
Rua de Santa Helena, Porto, 19 de outubro de 2019
Entrevista publicada originalmente na Gazeta Literária da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, Outono/Inverno 2019|n.º 6.