1.
Um fantasma é ainda como que um lugar
de que o teu olhar faz depender um som;
mas aqui, na negrura deste pêlo,
dissolve-se a mais forte visão:
como um louco raivoso que, mesmo no auge
da fúria, bate os pés na escuridão,
de repente se achasse entre os chumaços abafantes
duma cela onde cessa e se evapora.
Assim ele parece disfarçar dentro de si
todos os olhares que jamais nele pousaram,
para sobre eles, ameaçador e agastado,
se fechar num arrepio e com eles dormir.
Mas súbito, como que desperto, volta
o rosto para ti e contempla-te nos olhos:
e então encontras o teu próprio olhar no âmbar
amarelo das pedras redondas dos seus olhos,
inesperadamente: incrustado e fóssil
como um insecto de remotas eras.
in Poemas, As elegias de Duino e Sonetos a Orfeu, Oiro do Dia, setembro 1983, página 170, tradução Paulo Quintela
2.
Um fantasma, apesar de invisível,
acusa o toque do teu olhar,
o que não acontece com o teu pêlo
negro e felpudo, que absorve tudo.
Como um louco que, num acesso
de mania, destrói tudo em redor,
e de súbito cai numa espécie de torpor,
no chão acolchoado da cela,
ele parece dissimular dentro de si,
todos os olhares que nele pousaram,
para agastado e ameaçador
se enroscar e com eles adormecer.
Mas, de súbito, desperta de novo,
volta-se para ti e olha-te nos olhos:
descobres-te, então, a ti próprio, suspenso
no âmbar amarelo dos seus olhos ovais
como se fosses um insecto e nada mais.
in Animal Animal, Assírio & Alvim, fevereiro 2005, página 97, tradução de Jorge Sousa Braga