Os mortos são astutos: liquefazem-se
a fim de suscitar a nossa piedade.
São egoístas: exigem
memória pontual,
mobilizam-nos os sacos lacrimais.
Da sua obscura experiência
nada dizem; porém são tagarelas
se se trata de lembrar os beijos dados.
Exploram com mestria
os nossos pontos fracos.
Os mortos – quer queiramos, quer não –
voltamos sempre a eles.
Os mortos irremediavelmente
nos falam com aquela voz que têm.
por A. M. Pires Cabral in Antes que o rio seque (Solo Arável), Assírio & Alvim, outubro 2006, página 105
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Isso das aparições é mentira,
a verdade é outra,
o riso dos mortos.
Se sabem o que fazemos
dão voltas nos seus quartos,
enrolam os seus cigarros
ou cosem as suas meias:
procuram saber se rezamos ou não os pais-nossos,
se cumprimos fielmente o que pediram;
são muito inteligentes os mortos, sabem-na toda.
Os mortos, pessoas
que ficaram geladas
e vivem no Campo como as formigas
e à noite,
se não agarram o sono,
os mortos desvelam-se
e saem dos seus lugares
e cantam baladas,
sacodem as larvas,
contam as cartilagens
e regressam à cova
com parcimónia.
E não gostam nada que sintamos pena;
os mortos têm sorte,
estão mais perto do Senhor.
Gloria Fuertes (1917-1988), in A única maneira de esquecer a beleza, poesia traduzida de Luís Filipe Parrado, Língua Morta, novembro 2022, página 152