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A literatura e a fotografia por José Manuel Teixeira da Silva

A literatura e a fotografia por José Manuel Teixeira da Silva

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Palavra Comum: Que são para ti a literatura e a fotografia?

José Manuel Teixeira da Silva: Escrevo poesia, alguma prosa, faço fotografia, mas, curiosamente, não gosto de misturar, em termos criativos, essas práticas. Não me ocorre, por exemplo, ilustrar um poema meu com uma fotografia minha. Mas sinto que, para lá de uma diferença que também me sensibiliza, existe algo de essencial em comum à poesia e à fotografia. Algo de “súbito”, como no nome do meu “blogue” ou no título de dois dos meus livros de poesia, um “súbito” que sempre pressupõe uma qualquer permanência. Em ambos os casos, tanto na poesia como na fotografia, a noção de uma distância, de uma ausência, de uma perda, mas depois uma espécie de renascer, um carácter quase performativo, que se resolve numa nova vivência, num novo momento que dá um papel essencial ao leitor / espectador, um novo momento a que não é, porém, alheio o original (e isto apesar da perda, que também está aí vivamente inscrita).

Palavra Comum: Como entendes (e levas adiante, no teu caso) o processo de criação artística?

José Manuel Teixeira da Silva: Há algo de instintivo e está bem assim, não carece de muitas explicações. Tenho uma noção um pouco artesanal da arte. Algo não existia, aí está agora, com uma maior ou menor elegância e utilidade, idênticas, por exemplo, às de uma cadeira, e o poema ou a fotografia assim ficam, já longe do autor, disponíveis para os outros. Melhor se for um objecto que tenha o poder de sintetizar muitas coisas, se puder questionar, ensaiar outros pontos de vista, estimular o pensar e o sentir. Correndo bem, o objecto artístico “aumenta” a vida e a vida será também capaz de o intensificar. Dito isto, têm reparado que faço uma poesia bastante visual e uma fotografia algo literária. Não confirmo nem desminto.

Palavra Comum: Qual consideras que é -ou deveria ser- a relação entre as diversas artes (literatura, fotografia, música, artes plásticas, etc.)?

José Manuel Teixeira da Silva: Suponho que se inspiram umas às outras, fazem pequenos jogos de imitação, grandes cenas de ciúmes. As suas diferenças expressivas e processuais são valores a preservar, essa sua solidão iluminada. Mas é também muito interessante explorar os espaços de fronteira, apostar em projectos multidisciplinares, que é um pouco a condição do nosso tempo.

Palavra Comum: Quais são os teus referentes criativos (num sentido amplo)?

José Manuel Teixeira da Silva: Difícil dizer. Talvez deva confiar nos nomes que me surgem de imediato, porque haverá alguma boa ou má razão para isso. Na poesia (para ficar por Portugal), Camilo Pessanha, Pessoa, Carlos de Oliveira, Fiama, Sophia, Ramos Rosa, Fernando Guimarães. Na fotografia, Kertész, Álvarez Bravo, Sudek.

Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação literária e cultural hoje?

José Manuel Teixeira da Silva: Face ao império da normalização e do espectáculo, do consumismo e do óbvio, face a um ritmo que se vem tornando desumano, face aos mecanismos retóricos de uma comunicação alienada- cabem à criação literária e cultural tarefas de resistência. Que não seja o sublime adorno das narrativas dominantes que interessam à preservação de alguns poderes.

Palavra Comum: Que perspectiva tens sobre a Galiza em relação à Lusofonia?

José Manuel Teixeira da Silva: Será um espaço muito singular da Lusofonia, parece-me. Um irmão gémeo que foi viver, é claro, a sua própria vida, que não deve esquecer as origens nem alienar as circunstâncias. Como quando, morando no norte de Portugal, ia eu com os meus pais e avós, ainda criança, uma vez por outra, à Galiza- uma estranha sensação de me sentir ao mesmo tempo no estrangeiro e ainda em casa.

Palavra Comum: Qual é a tua opinião sobre a literatura e cultura portuguesa em geral a dia de hoje?

José Manuel Teixeira da Silva: Temo as generalizações e devemos ter a consciência de que os sucessos culturais, nos tempos que correm, confundem-se muitas vezes com operações de “marketing”. Tenho duas imagens, mas será assim em quase todo o lado: muita gente a fazer coisas muito estimulantes, em mundos que nem sempre se comunicam, e um quotidiano dominado por avassaladoras comunicações normalizadas, múltiplas formas de alienação programada e altamente rentável para alguns.

Palavra Comum: Trabalhas no ensino. Qual é a tua experiência? Como é a sua situação hoje e para onde deveria caminhar?

José Manuel Teixeira da Silva: A escola deve, é claro, acompanhar os tempos, mas remar também contra as correntes, deve estimular o pensar e o fazer autónomos. Ensinar literatura (se isso é possível) nem sempre é fácil- articular uma matéria de liberdade com constrições burocráticas. Mas há momentos felizes, e isso nem sempre é programável. Às vezes a tarefa é tão complicada como a de obter a quadratura do círculo. Vejo que a escola (mesmo a pública) tem evoluído, em termos gerais, num sentido que não é inspirador: marginalizando as artes e as humanidades, privilegiando a eficácia mais imediata, cultivando modelos empresariais.

Palavra Comum: Que projectos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?

José Manuel Teixeira da Silva: Na poesia, completar dois ciclos em que estou a trabalhar. Gostaria também de prosseguir e concluir a organização de um conjunto de pequenas ficções, bem como a tradução de poemas da irlandesa Sinéad Morrissey. Escrevi apenas uma peça de teatro, tenho ideias para outras. Aprofundar alguns projectos fotográficos.

Por Ramiro Torres publicado in Palavra Comum.

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