A LITERATURA tem destas coisas. Tempos houve em que as personagens se metiam com os narradores, estes com os autores, estes, ainda, com os leitores, e já ninguém sabia quem era quem e como legitimar cada um “per si”
Tão aparentemente complexa desestruturação de modelos e de sentidos parece encontrar na actualidade, à luz de descomprometidas leituras, uma resposta simples: todos são personagens. Porque é isso que a literatura cria: narrativas com personagens, mesmo que aparentemente elas lá não estejam, ou se designem por nomes que servem apenas para conceptualizar funções. Confundindo um pouco, podemos ir mais longe nas nossas certezas: a literatura pode ser também criação de personagens sem narrativa mesmo que aparentemente ela lá esteja ou recrie discurso de sentido difuso.
É o que sucede com este “A Morte de Dali”, de Francisco Duarte Mangas. Quem disse que a coerência narrativa é essencial a uma história com aparente princípio, meio e fim? (“Dará a nossa vida uma história incomum, com notas de rodapé? Ouve, Teresa: tenho saudades do medo urbano; de ver o rosto das pessoas banais. É estranho dizer isto. Mas, enquanto penso a cidade, despisto o hálito da luz.”, pág. 30) Ou quem disse que o editor, por exemplo, não pode ser recrutado para o rol das personagens sem que, inevitavelmente, imaginemos um senhor de óculos, sentado a uma secretária submerso por uma catadupa de manuscritos de leituras inconclusas, fazendo comentários mais ou menos oportunos à medida que avança na busca de algo diferente, para mostrar a um público mais ou menos necessitado de outras aventuras? (É simples eliminar uma personagem. O ladrão apareceu para impedir a história, a história erótica que eu não prometi. Fez-se Ladrão. Incontrolável, surripia-me a palavra. Como se fosse verosímil, Teresa. Assim parece-me melhor: morto, sob o perfume doce dos limoeiros, nada dirá. A narrativa, Editor, a narrativa segue o curso normal das coisas. Pág. 69)
A escrita deste livro inscreve-se num plano específico de desmistificação do fazer literatura, que nos dias de hoje conhece alguma regularidade, longe já das propostas moralistas, moralizadoras ou moralizantes de uma qualquer concepção surrealista ou de escrita automática. O que se procura é o prazer da escrita, que inevitavelmente conduz (ou visa) o prazer da leitura, e que tem como elementos essenciais a sonoridade das palavras. Este tipo de exercício (entendido já não no sentido experiencial, mas como proposta acabada), buscando uma aproximação à poesia, não ousa, no entanto, assumir-se como tal. O que se deseja é proporcionar momentos de fruição de leitura, onde cabe a formulação bem conseguida, a frase bem ritmada, o sentido da proporção, a estimulação do sorriso ou uma hesitação mais ou menos legítima.
De vez em quando a literatura tem destas coisas. Quando se espera uma narrativa feroz, crítica, reclamando da sociedade exercícios mais humanos, mais densos de ironia e objectividade, sobretudo quando sentimos que tudo nos escapa na voracidade do fazer moderno, mais imediatista que contemplativo, a literatura – coisa superior – brinca com os seus mais dilectos modelos, nãos e leva a sério, deixa-se ir. Sem más consciências,
Para certas concepções, o resultado pode enfermar de algum desconforto. Um juízo de valores poderá, no mínimo, reclamar como desconcertante uma literatura que se escreve assim. Mas quando tal acontece é porque esquecemos o que a escrita desde sempre pretendeu reflectir: o fingimento.
“O meu breve destino fica traçado: indefeso e triste, hei-de abrir os telejornais do planeta. O triunfo da indignidade: e o mundo, ávido de espanto a toda a hora, vai consumir-me. E alguém há-de escrever uma novela, inventando biografia que não é minha. E alguém passará a livro as tuas memórias. E alguém publicará o teu diário. Um diário apócrifo consentido é sempre uma pudica obra de arte, Teresa: acaba, por favor evita este martírio. Permite-me uma morte íntima.” Pág. 95.
Afinal este pequeno livro não se faz assim tanto no descompromisso com o mundo. O que nos pede mais atenção. Ainda.
Por Dóris Graça Dias publicado em 21 de abril de 2001 no jornal Público
A Morte do Dali
De Francisco Duarte Mangas
ISBN: 972-695-415-0
Edição: janeiro 2001
Editor: Editorial Teorema
Páginas: 160
Um excerto do livro sem notas de rodapé:
“26
Traz o jornal (como aparece com o jornal do dia se não saiu de casa?), senta-se na cadeira de baloiço, próximo da janela donde eu via a manhã. É Verão, o Verão, Teresa. E eu desejo morrer na Primavera. Morro na Primavera do próximo ano, num desses dias serenos de luz: o simples bulir das folhas do vidoeiro estremece a natureza. Dias há assim: olhamos a paisagem, e a paisagem parece uma fotografia. Breve rumor transparente acorda as árvores, o zumbido das abelhas em redor das dedaleiras, vozes distantes, o ruído de uma motorizada, bando de pombas levanta aflito no silêncio dos nossos passos. Há dias assim, Teresa: a natureza nos olhos, muda, bebe-te os pensamentos, como predador que conhece a tua fragilidade. Abre o jornal; vai ler, em voz audível, uma dessas notícias terríveis do nosso quotidiano, “Manuel Jiménez Rubio regou com gasolina e lançou fogo à mulher em plena rua…” Ladrar anormal cala Teresa. É o Ladrão, Um homem, Herberto! 0 Dali cerca-o… o homem levanta a navalha, parece uma navalha… tenta subir o muro… (pág. 64 a 65)
27
Os gritos irmanam-se com os gritos da Teresa. Matou-o. Não foi treinado para isso, mas matou-o. Crava-lhe os dentes no pescoço, bebe o calor do sangue, não desaboca. Permanecerá debruçado na vítima como gárgula de granito. Os gritos atraíram gente até ao portal. Mulheres velhas, algumas crianças. Teresa pousa o telefone, E agora, Herberto? (página 66)
28
Anda à volta dos meus pés, como se quisesse atordoar a impaciência. E agora, Teresa?
Subimos as escadas. Faz força para abrir o desuso da porta,
Por uns dias, ficas aqui.
Vou ao encontro das telhas, atravesso teias de aranha, agarram-se com destreza e pó ao meu cabelo, à roupa.
Aqui é o sótão. E como em qualquer sótão de casa antiga, há pó (já o disse), livros, nódoas de infância da Teresa caídas nos brinquedos, caixotes; um televisor da realidade a preto e branco, cadeiras de madeira esquecidas do improvável restauro. E um homem. Um homem emaranhado, cabeça presa ao calor do telhado. O fantasma acha o exílio numa espécie de armação de caravela invertida. Teresa fecha a porta; roda duas vezes a chave. O escuro abocanha, de um só golpe, o espaço: como se fosse uma tangerina. Com o tempo, os olhos peneiram a escuridão, unem os caules finos de claridade. Nascerá a penumbra (:a sombra da luz) a restituir forma aos objectos.
As vozes, do lado de lá do portão, entram límpidas nos meus ouvidos. 0 Dali? Pressinto-o no meio do eido, quieto, focinho tatuado de sangue, infinda tristeza a enevoar-lhe os olhos. Fareja a morte. Fareja a morte, nem as vozes o acirram. Fareja a sua própria morte. Indefeso. Trágica serenidade.
29
É simples eliminar uma personagem. 0 ladrão apareceu para impedir a história, a história erótica que eu não prometi. Fez-se Ladrão. Incontrolável, surripia-me a palavra. Como se fosse verosímil, Teresa. Assim parece-me melhor: morto, sob o perfume doce dos limoeiros, nada dirá. A narrativa, Editor, a narrativa segue o curso normal das coisas.
Os olhos recolhem as hastes de luz. Trabalho de paciência, já se sabe. Tenho o tempo todo, debaixo da caravela invertida. Talvez, como miserável navegador, o escorbuto detecte as minhas gengivas e, devagar, devagar as intumesça de podridão. 0 escuro devora o tempo natural. 0 tempo que pressentes a emergir, cor de púrpura, da romãzeira. Uma vez disse-te, Teresa: felicidade é abrir a porta à manhã para ver a romã florida. Esse tempo secreto e laborioso perdi-o, Teresa. Não o posso viver, não o posso rever.
A ambulância e os seus gritos aproximam-se. Assustam as pombas: vibram asas sobre a casa.
E agora, Editor?
30
O pó é o idioma do silêncio. Não sei por que o digo com tamanha certeza: eu, zelador de dúvidas. 0 pó talvez seja uma espécie de excremento do abandono. Ninguém me leva a sério, vai escrever o Editor no contraforte da página. Um homem morto. Um homem no quintal, junto ao muro, velado por limoeiros cabisbaixos. Quanto vale um homem, um? Quase nada. Nada. Uma notícia breve: “Cão matou desempregado…”. E assim se sepulta o caso. 0 jornalismo fossilizou a realidade. 0 que terá levado um bicho, manso, a rasgar a garganta do Ladrão, do presumível ladrão… Pois, Editor, só eu e Teresa conhecemos o mastim. De raça estrangeira, insinuava o Ladrão. Falso.
E a senhora vive sozinha nesta casa?
Vivo.
O seu marido?
Abandonou-me…
Desculpe… 0 cão… como disse que se chamava o cão?
Nero.
Há-de aparecer, o Nero. A bem dizer, é a arma do crime. Animal manso, dizia a senhora…
Manso como olhar de boi.
Como quê! Bom, não interessa. Era manso. Mas o nome ajuda pouco…
O polícia profana o meu quarto. Por isso o oiço. Revista a casa, sem mandato de busca. Teresa dilui suspeitas. A rusga, por certo, alastrará ao sótão. E agora? Nunca imaginei ser visto assim por um polícia. Ele irá perguntar: Que presunto, a bem dizer, é aquele ali? E esboçará um sorriso, suspenso para te deter bruscamente. Polícia também vê televisão, Teresa: serás a primeira serial killer suburbana do país.
A ambulância parte, em silêncio veloz. Talvez haja réstia de vida no Ladrão. 0 Dali, decerto, espiou os homens da farda. Em breve dividiremos a solidão da caravela.
31
Junto fios de luz, como o pastor rês tresmalhada. Morrer na próxima Primavera parece-me improvável. Ainda é Verão, Teresa. Os homens do canil levaram o Dali. Rápida, a morte. A seringa gorda, a agulha curva, bico de íbis, a tenaz a cingir-lhe o pescoço… a picada rude a queda súbita. 0 veneno cumpre o destino.” (página 64 a 73)