UMA afirmação de Agustina B-L no prefácio deste livro deixou-me agradada e surpreendida. Ela diz que A Rua do Paraíso é muito melhor do que o Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore.
Ora Cinema Paradiso é um filme de culto, talvez se lembrem, e relata a história de um realizador de cinema de sucesso, de Roma, que regressa depois de 30 anos à sua aldeia natal, na Sicília, digamos, onde tudo tinha começado, isto é, a sua paixão pelo cinema. Ele recorda o tempo de infância e de juventude, e aponta sobretudo a saudade que sente do Cinema Paradiso, o barracão onde acontecia todas as noites a magia do cinema, e onde ele assistia aos filmes do lugar do projectista seu amigo; via-os possivelmente antes de serem censurados etc etc… Não vou contar: o filme de 1988, de que há várias versões, chamou a atenção do mundo para o cinema italiano, foi um reviver da indústria cinematográfica em Itália, ganhou prémios um Oscar, um Globo de Ouro, o grande prémio do Festival de Cannes, prémios noutros festivais, é um clássico. Para mim, um filme encantador pós-modernista e nostálgico que não esquecerei.
Mas compreendo o que Agustina quer dizer: A Rua do Paraíso é “encontro das nossas próprias recordações e não limite da nossa fantasia”, diz, é por isso que é melhor. Encontro das nossas próprias recordações. E talvez fosse possível fazer bom cinema a partir daqui, considerei na ocasião da primeira apresentação.
E fui levar o livro a Manuel de Oliveira que estaria em Paris, como quase sempre, nessa época, com grandes projectos que realizou. Eu abandonei o sonho do nosso portuense Cinema Paraíso ou Paradiso. Penso que a rua perdeu e o burgo, principalmente.
Mas … Voltar ao assunto agora que a cidade medieval, renascentista, moderna, se transforma, se reinventa todos os dias e é procurada e descoberta pelos de fora… talvez seja ideia promissora. Além de que o passado é sempre exemplo para o futuro. A Rua era uma fonte inesgotável de pequenos acontecimentos curiosos e coloridos que se sucediam diariamente, seria um manancial para os criadores de histórias para contar – mesmo modernas histórias enigmáticas e misteriosas como as de Harry Potter – há ali muito material para explorar.
Por outro lado, de que me lembrei?, Das entrevistas de Anabela Mota Ribeiro feitas a Paula Rego um livro lançado há algumas semanas, neste lugar, recheado de reproduções muito boas de pinturas de P.R. de diversas épocas e foi a observá-las que pensei que as pessoas de quem falo, paraísenses de gema, têm alguma coisa a ver com as personagens que a artista desenha – nas suas atitudes, nas maneiras, na coragem e energia, no atrevimento, no grotesco, na crueldade risonha. Os desenhos são como ilustrações das histórias que podemos inventar ou recordar enquanto os observamos.
(Aqui faço aquela pergunta insidiosa: Que sucederia se eu pedisse à Dama Paula Rego para ilustrar A Rua do Paraíso? Ou a um jovem e talentoso cineasta para transformar o livro num belo filme como o de Tornatore?)
As minhas personagens, na verdade, pessoas reais e meus vizinhos do Paraíso, parecem-se um pouco com as figuras de alguns quadros de Paula Rego como A Dança ou A Filha do Polícia ou mesmo a Casa da Celestina e a Dama do Pé de Cabra mas são mais delicadas, surgem-me muito adoçadas pela distância no tempo e, sobretudo, pelo meu afecto por elas. Pela minha ternura em relação, nomeadamente, às que considerei inesquecíveis, figuras inesquecíveis.
Chamei PARAISENSES aos habitantes dessa zona, Rua do Paraíso e arredores, porque me pareceu que estavam organizados, legitimamente organizados, como uma comunidade de pessoas muito diferentes mas que compartilhavam interesses e normas. E valores, decerto…
…de maneira intensa: havia muita emoção e sentimento, muita paixão nas acções pessoais (lembra assim a tragédia grega clássica que continua a emocionar-nos dois mil e quinhentos anos depois de escrita e representada a primeira vez) e também uma admirável capacidade de se entenderem uns aos outros. É claro que havia gente boa e gente má, e gente assim-assim, ou boa e má simultaneamente, como em todo o lado.
No fim, entendiam-se: o que tornava fácil o relacionamento e a comunicação entre todos; era também muito interessante e curioso esse entrelaçar de vidas. Apetece-me dizer que as questões não se resolviam a tiro, como nos filmes de cow-boys ou nos actuais de investigação policial e criminal, mas com muito choro e arrepelar de cabelos, gritos e correrias, contendas e juramentos, bisbilhotices e clamores, carnavais, e tudo isso que era real constituía espectáculo para os vizinhos que não ficavam indiferentes. E a cena, qualquer cena, ficava a fazer parte também da vida dos outros, não era representação, não era arte, não era teatro. Era a vida real, a vida comum, simplesmente comum.
Havia tudo naquela rua, foi também por isso que lhe chamei comunidade: todos os serviços eram ou podiam ser ali prestados. Desde os da Igreja da Lapa onde governava o admirável Sr. Padre Luís, do hospital e do cemitério, do consultório médico do Dr. Azeredo Lobo, da padaria do Sr. Menezes, das inúmeras mercearias, das lojas de miudezas e fazendas, do carvoeiro, da casa do Povo, da farmácia do Sr. Tello da Fonseca, da funerária, da pichelaria, da oficina de automóveis, da fábrica de malhas de S. Brás do Sr. Queiroz, da esquadra da polícia, da bruxa, do curandeiro, da médium, do nudista… Do homem dos 7 instrumentos aos ceguinhos que tocavam violino, ao fotógrafo ambulante e às ciganas que liam a sina na palma da mão…aos espectáculos de rua – ao teatro de fantoches, o urso bailarino….não… não era preciso sair dali para coisa alguma de nenhuma ordem. Era um mundo – um estreito espaço entre o Bonjardim e a Lapa – que se abria apenas quando era muito preciso…
O que lhes conto não é ficção, falo de acontecimentos e informo sobre serviços que já se não prestam do mesmo modo. Não fantasiei histórias, ouvi contar e conto algumas, inteiramente baseadas na realidade, que a memória guarda, protagonizadas por pessoas reais transfiguradas aqui em personagens de histórias. Na verdade, de História.
Por isso, estas são páginas vivas da história portuense. É por essa razão que é ainda possível criar a partir delas – filmes, desenhos, pinturas… Ao lê-las, dar-se-ão conta das transformações materiais e de mentalidades que foram ocorrendo não apenas nesta rua. Sem dúvida, alguma coisa melhorou como o nível económico dos moradores, o que não é pouca coisa.
Uma reflexão sobre esta forma de viver, sobre esta realidade, pode ajudar-nos a construir uma realidade melhor e mais aceitável.
Porque o que se sente na vida de hoje e se lamenta é a falta de emoção, daquele sentimento que dava calor, expressividade e certa qualidade colorida à vida da gente naquele troço da cidade.
Quem me dera que Agustina, a quem continuo muito grata por aquele texto, estivesse aqui hoje para eu poder corresponder ao sorriso que sempre lhe vi.
À minha amiga Gabriela Gonçalves grande fotógrafa amadora, agradeço a excelente fotografia da Escola da Lapa que permitiu fazer da capa uma coisa bonita, graças também naturalmente ao arranjo gráfico da editora.
Para a Laurinda Alves, que todos conhecem como jornalista excepcional, escritora, professora universitária, grande amiga que tudo faz, quero dizer-lhe que… não esquecerei. A Laurinda é uma das 3 pessoas com quem estabeleci desde as primeiras palavras suas, ouvidas ou lidas, uma ligação de grande empatia – destinada a durar a vida toda. Aquele abraço veio nesse momento ou com esse momento e nunca mais se desatou.
Finalmente, é à Afrontamento e ao seu director Dr. José Ribeiro que devo os meus agradecimentos calorosos pelo interesse demonstrado e a paciência com que me aturou durante meses. E a todos que participaram com o seu trabalho neste trabalho, à Livraria Bertrand e aos amigos que vieram assistir a esta apresentação… muito obrigada.
Por Zilda Cardoso na apresentação da segunda edição do livro A Rua do Paraíso, na Livraria Bertrand, Porto, publicado in O fio de Ariadne