A Senhora Quitéria vivia numa das ilhas, mas sempre a conheci na esquina do Paraíso com Camões, enrolada no cobertor cinzento-escuro que lhe protegia um ombro e a panela das castanhas, um pouco para o seu lado esquerdo, fumegando. Cheirava a árvore e a terra quente e húmida depois de uma chuvada de Verão.
Soldada ao passeio como uma estátua magnífica, permanecia de pé o dia todo, apregoando quentes e boas. Comprava-lhe as famosas castanhas – acho que ela sempre me oferecia alguma, e recordo vê-la debruçar-se para mim com dificuldade por causa da panela presa ao peito.
A Senhora Quitéria parecia-me de considerável estatura e com certos poderes. Talvez fosse uma sacerdotisa, já que deusas, eu só as conhecia envoltas em véus transparentes, rosas perfumadas e pombos brancos, como Afrodite. E ela não se apresentava munida de qualquer destes acessórios.
Apreciava o seu esforço para se aproximar de mim, rente ao chão; fazia-o sorridente e com tal delicadeza que as suas castanhas me pareciam um manjar divino. E talvez fossem.[1]
Ainda hoje as prefiro cozidas, se bem que nenhumas tenham o excelente sabor das da minha fornecedora favorita e amiga, razão por que presumo que as cozinhasse com ervas de bruxedo bom – talvez as rosas e a murta da preferência da Deusa.
Texto de Zilda Cardoso publicado originalmente in A Rua do Paraíso, Edições Afrontamento, 2.ª edição, página 147, e ilustração de Renata Carneiro
[1] O que eu penso das castanhas da Srª Quitéria nada tem a ver com ciência no sentido antigo do termo, mas com um conhecimento que integra os “aspectos qualitativos da realidade”. Não tem nada de absurdo e eu só queria ter a certeza de que haveria no futuro castanhas tão boas como estas do passado e mesmo como as do presente.