ÁLVARO Domingues teme que desta tenha levado aos limites a sua propensão para a hipertextualidade, bem patente já nos seus outros dois grandes ensaios sobre o território, Rua da Estrada, (2009), e Vida no Campo (de 2012, ambos Dafne Editora). Agora, na sua estreia numa editora comercial, a Contraponto, do grupo Porto Editora, já viu, numa grande livraria, o seu livro na secção de Desporto e Tempos Livres (culpa da capa, com uma estátua de um ciclista), o que provoca sorrisos a este homem nascido em Melgaço há 58 anos. Afinal, o que se poderia esperar de alguém que cruza textos académicos com anúncios publicitários ou música pop, e que até assume que Volta a Portugal, em termos de bibliografia, resulta de uma “googlada”.
O que é este objecto, este Volta a Portugal?
[Ri prolongadamente] No outro dia, numa entrevista na RTP2, usei a imagem do poliedro. Para mim Portugal não é uma unidade. E isso é uma questão que já vem da formação de geógrafo, com o Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico [De Orlando Ribeiro, 1945], onde se aprende essa espécie de país-mosaico, que depois a evolução histórica, quer do tempo longo, quer do tempo recente, ainda torna mais opaco. Contrariamente ao discurso que habitualmente se faz de que o rectângulo é uma unidade. Este livro tinha esse desafio. Em tempos mais recuados ele era para ter sido feito com sobras de Vida no Campo, curiosamente. O raciocínio era quase directo: O Vida no Campo trata do fenómeno da desruralização, que não tem a mesma fisionomia porque o país é muito distinto. E agora num outro livro íamos fazer uma espécie de variação sobre o tema, como na música. Mas quando o comecei a escrever fui apanhado por uma espécie de vertigem. Se isto é um poliedro, vamos trabalhar assim. Ele vai rodando, vais fazendo as tuas viagens, e vão-se iluminando faces. Vamos aceitar o desafio de que qualquer imagem é ao mesmo tempo um documento e uma metáfora, e que o todo não existe. Ele insinua-se, em diferentes contextos, e isso é o país.
E esse país é sempre visto a partir de um ângulo qualquer, de onde não se abarca a sua totalidade. A nossa ideia é sempre condicionada pelo lado de onde se está a olhar?
Eu julgo que isso acontece com todos os temas. Nós temos aquela coisa, que se calhar nos vem do iluminismo, de querer apanhar o todo, de fazer uma produção de sentido, de causa e efeito, de ter as coisas todas encaixilhadas como se fossem um texto muito bem organizadinho. E isso é apenas uma fuga à realidade. Já que a realidade é tão tumultuosa e tão instável, nós preferimos olhar para ela de maneira mais ordenada, porque isso nos diminui a ansiedade.
Tomando este livro como um ensaio, ele é mais sobre o espaço, sobre a geografia humana, ou sobre as nossas representações sobre o território?
É mais sobre as representações. A geografia humana faz um discurso mais clássico, digamos assim, e procura uma via mais explicativa. E este livro não é explicativo. É a história do icebergue: ele tenta apanhar a realidade pelos seus afloramentos e depois tenta perceber o que há de mais profundo nessa realidade. Quando eu comecei, achei que, nos diferentes capítulos sobre as várias regiões, ia fazer uma introdução minha, mas depois decidi que não ia usar textos meus (excepto em dois ou três casos), fartei-me de deitar textos fora e depois viciei-me no texto dos outros. E porquê? Porque ir a uma fonte desconhecida, às vezes de um tempo longínquo – e aqui há textos do século XVI – me parecia um bom truque para procurar não propriamente um arquétipo, mas qualquer coisa ainda muito presente, que resiste por muitos trambolhões que o tempo dê.
Presente para o leitor?
Presente para o leitor, presente para a imagem que se tem do país. Por exemplo, no Alentejo, a discussão sobre o latifúndio e a secura está presente há muito tempo. O texto mais antigo que está no livro é sobre o Entre Douro e Minho e o que se diz lá existe: essa ideia de que é uma região fortemente povoada, que combina actividades económicas das mais diversas e que tem um clima que é comparado, às vezes, ao paraíso, e que tem uma elasticidade que vai dos cultivos subtropicais, das espécies trazidas de África ou da América Latina, à floresta nórdica, e um regime de chuvas muito bem distribuído. Eu andei à procura de alguns timbres que são constantes na produção do discurso sobre as regiões, e de outros que, ao contrário, desmentem as ideias feitas.
Essas ideias feitas foram-nos trazidas pelo roteiro turístico ou por discursos mais “profundos”, digamos assim, sobre o território?
Tanto quanto sei, são coisas do romantismo. Algumas são do século XVIII, da Real Academia das Ciências, que achava que o país arcaico e tacanho não tinha conhecimento de si, organizado pelas metodologias científicas, e que precisava de ser conhecido. E então organiza-se uma espécie de expedições. O Rei convida inclusivamente um italiano muito famoso, o [Domingos] Vandelli, para calcular a dimensão da Serra da Estrela. A coroa estava preocupadíssima com o regime hídrico do Mondego, com as constantes inundações, com aquele problema que explica por que é que o convento de Santa Clara está debaixo dos depósitos do rio, e contrata o homem para estudar a questão. E ele vai pelo Mondego acima, até às nascentes, faz umas medições para calcular o volume da serra e tira uma conclusão. A Serra da Estrela vai ser toda erodida pelo Mondego e o nível dos sedimentos vai subir ainda mais.
Quando fazemos viagens de turismo com guias na mão, somos confrontados com os clichés fotográficos que nos reproduzem uma suposta identidade paisagística de cada lugar. Este livro está carregado, mais ainda que os dois anteriores, de imagens, mas que seguem num sentido oposto.
São um anti-cliché.
Mesmo quando recorre a clichés que fazem parte dessa paisagem.
Sim, acontece isso na [fotografia] Puro-Ribatejo, por exemplo. Ali vemos uma política explícita de marcar as rotundas com signos de identidade: os touros, os forcados, e essa imagem, [um coração recortado, no interior, pela cabeça de um touro] no Porto Alto, onde estão concentrados os chineses, tem lá uma grande placa em chinês, ao lado. Isto serve para provar essa fragilidade dos clichés. Usa-se nas ciências sociais um conceito que é o do regime da visibilidade, que organiza a realidade e a estabiliza, e quase obriga uma pessoa a ver de determinada maneira. E no turismo é assim. Desde o Gran Tour, de séculos passados, em cujas gravuras da época se repetem os mesmos locais, as mesmas ruínas, às vezes até da mesma perspectiva, até à democratização do turismo, em que se alargam os pontos de visita e curiosidade, mas que na verdade é a mesma coisa, porque o regime de visibilidade vai-se renovando mas vai-se estabilizando também. E é isso que acontece mais tarde com os guias de Portugal, essa espécie de wikipédia que vai organizando tudo aquilo que chega sobretudo do século XIX, desde os monumentos a histórias de personagens locais, a indicações sobre como melhor subir a determinado local, como o Gerês, por exemplo, ou sobre a melhor vista da serra Algarvia. Tudo está codificado, criando esse tal regime de visibilidade. Eu procuro ao mesmo tempo perceber se esse modo de ver ainda é possível…
Vai olhar a partir desses lugares.
Não o faço de forma calculada. Conheço muito bem os guias de Portugal e, a dada altura, se estiver num determinado local que reconheça faço ali um bocado de meditação zen: Deixa cá ver se sinto isto? – E às vezes sinto. Outras vezes não sinto nada. E quando sinto, chego à conclusão que sinto porque já li aquilo não sei quantas vezes.
O regime de visibilidade resulta, então.
Resulta porque é humano. A realidade é muito confusa, é muito opaca. Ou te dão meia dúzia de coordenadas, tu abres a janela e consegues varrer tudo, ou então ficas ali a navegar. Por causa disso anulei as Beiras.
Essa era uma pergunta inevitável. Por que não estão as Beiras neste roteiro?
As Beiras, o grande mito das Beiras. Eu poderia ter feito um capítulo completamente desconstrutivo, a dizer que a Beira não existe. O Orlando Ribeiro escreveu sobre isso, analisando as fontes, sobretudo da primeira dinastia, a Beira é sempre algo que vai andando para Sul. E a certa altura pára no Tejo, que é um limite natural. E então no Entre Douro e Tejo fica a Beira. Se nós formos à procura de um padrão Ribeira/Montanha como existe no Minho, ou de uma homogeneidade como a do Alentejo, não os encontramos na Beira. A Ria de Aveiro é uma coisa, a Serra da Estrela é outra, a Cova da Beira é outra, as Terras do Demo, lá em cima, são ainda outra. Aquilo não corresponde a uma unidade. Mas por qualquer razão – e normalmente a razão tem sempre que ver com a cultura erudita – A Beira a certa altura é um alto lugar da nação, porque contém algumas das suas mitologias, como por exemplo o Viriato. E há a Serra da Estrela, por ser o ponto mais alto de Portugal, de onde se pode ler aquela região, e onde nascem os seus rios principais. Eu estava de facto aflito sobre como tratar a Beira.
Mas deixou-a de fora.
Pensei em várias formas de a abordar. Mas o livro também não é exaustivo, não é um guia de Portugal. As ilhas apareceram no fim porque, por razões profissionais, eu fui duas vezes à Madeira e uma aos Açores. No início pensei fazer as ilhas através do Google, só, misturando imagens do Street View com outras que aparecem frequentemente nas pesquisas.
Mas, ainda em relação às Beiras, acabou por fixar-se na Serra da Estrela, que é aliás o primeiro capítulo da viagem propriamente dita.
A Serra da Estrela era o maior divisor comum que eu encontrava da dita Beira e, ao mesmo tempo, servia-me para explicar como é que as imagens se constroem: O lugar alto, e os Alpes. A construção europeia dos Alpes começa com Rousseau, segue com os primeiros românticos alemães, vai por ali fora e nunca mais pára, até Davos, a cimeira do dinheiro. Aquilo que antes era um lugar a evitar, perigoso, onde se morria e que, segundo uma crença da Idade Média seria até habitada por dragões, de repente passa a ser o ar puro, a elevação, um sítio de cura, com as descobertas na área da tuberculose, um espaço para os desportos de Inverno, que era algo que não existia. E dali saíram determinadas coisas com difusão mundial, como o chalet suíço, que ainda no século XIX já estava na Califórnia. Os Alpes produzem um imaginário poderosíssimo, e depois cada país quer ter os seus Alpes. E por cá a Serra da Estrela adapta-se lindamente. De tal forma que eu no livro fiz um jogo perigosíssimo que foi usar fotografias da Serra da Estrela com textos sobre os Alpes.
“O país possível” – para usar um título do poeta Ruy Belo, que cita neste livro – é muito diferente do país imaginado?
Eu acho que é. O país imaginado normalmente tem como foco emissor principal Lisboa – e aqui refiro-me a toda a concentração de produção de informação, de imagens sobre o país, da sua difusão. As redes sociais explodiram esse monopólio, mas ele existiu, e de que maneira, no passado, de forma muito presente e muito constante. Como a maior parte das imagens que temos hoje são do passado – e basta ver do que é que as pessoas se lembram quando querem organizar um programa de televisão sobre as terras mais bonitas, por exemplo – geram-se problemas graves, a que os psicólogos chamam dissonância cognitiva. Tu vês coisas que, na tua cabeça, estão arrumadas de maneira diferente, e que por isso não deveriam estar ali, ou não fosse o passado a identidade e a genuinidade e o presente a estragação, o caos, etc. Eu ouço isso na reacção de pessoas às imagens que publico. Essas fotografias são muito curiosas, mas têm coisas muito feias. A evolução recente do país foi muito rápida e disruptiva, no sentido em que as presenças da pré-modernidade são fortíssimas, assim como a presença da globalização e da hipermodernidade actual. E elas por vezes estão lado a lado.
É a cultura do touro, celebrada na rotunda, ao lado do outdoor chinês, que nos mostra no Ribatejo.
Sim, e eu exploro muito isso no Alentejo. Aí a dissonância é incrível. O Alentejo vem desde o tempo dos Romanos do latifúndio, do sequeiro, e do trigo. O Alqueva, com a disponibilidade de água, alterou tudo isso, e agora à tua frente tens terra mais ou menos abandonada, ainda sem regadio, do lado esquerdo uma daquelas catedrais brancas da campanha do Trigo e do lado direito papoilas para a indústria dos opiáceos. E o que isto nos diz é que estamos a trabalhar em plena globalização, com a indústria farmacêutica, com plantas selecionadas por melhoria genética, sistemas de rega sofisticados e culturas controladas por drones. E do outro lado tens um museu do sequeiro, a desfazer-se. Estas coisas são muito típicas de Portugal.
E as pessoas não conseguem entender essa mistura?
As pessoas entendem a paisagem actual como uma espécie de perversão de coisas espantosas e lindíssimas que existiam lá.
É por isso que, a determinado momento, cita os Beatles, em Strawberry Fields Forever, onde se canta, “nothing is real”?
Essa letra acompanha um campo de morangos com tela plástica a cobrir o solo. Eu acho piada que as pessoas vêem os morangos muito bonitos no supermercado e depois vêem aquela foto e dizem: o que é isto? Acham que o plástico, por ser plástico e por ser negro, lhe transmite uma artificialidade absoluta, que é um dos medos dos tempos de hoje. E curiosamente, pelo contrário, a tela diminui a necessidade de uso de herbicidas naquelas culturas. Nós temos claramente um problema por resolver com esta intensidade tecnológica cada vez maior. Agora regamos olival e vinha, durante milénios o arquétipo era das culturas secas e não regadas. No tempo do Marquês, no Douro, quem regasse a vinha ia pr’ó degredo. E isso hoje em dia não é assim.
A viagem decorre por um país em mudança acelerada. O risco de a imagem se desencontrar com a realidade é cada vez maior, ou não?
Teria de acontecer, mais dia, menos dia. Precisamente pelo facto de o processo de modernização ter sido muito tardio, nós habituamo-nos a um cenário de estabilidade que ainda por cima foi mais exagerado quando se escrevia sobre ele. Quando diziam a Orlando Ribeiro que ele apostava numa geografia que às vezes fugia dos temas da contemporaneidade, como a urbanização ou a industrialização, ele respondia que ao geógrafo lhe interessa aquilo que permanece. Hoje os tempos apelam a uma maior atenção à mudança, até porque nos entraram pela porta os efeitos da globalização, um agitador de sossegos impressionante. A revolução, a entrada na União Europeia e a infraestruturação do país, as sucessivas levas de emigração levaram a que tenhamos situações de profunda mudança, e outras de quase congelamento do tempo, em regiões que por falta de proteína económica se vão desfazendo. E os incêndios são um indicador disto.
Hoje ainda faz sentido falar de Trás-os-Montes quando já temos um túnel a atravessar o Marão?
Trás-os-Montes é um estado de espírito. Ainda por cima, o túnel do Marão é como aqueles dispositivos dos filmes de ficção científica, que nos desmaterializa e transporta de um sítio para outro. É um ritual de passagem. Deixaste qualquer coisa para trás, e entraste noutra. Nesse capítulo socorri-me muito de um geógrafo transmontano que morreu jovem, o Virgílio Taborda [1906-1936], para perceber com ele, que recorreu aos provérbios populares, que aquele é um território muito contrastado, que vai desde aquelas mitologias do comunitarismo agro-pastoril das montanhas até às terras intensamente tocadas pela modernização, como a Veiga da Vilariça, ou a zona do Vinho do Porto, que na altura não estava autonomizada. Hoje o Alto Douro Vinhateiro tem mais ressonância do que Trás-os-Montes, e acredito que haja muito cristão que não saiba que um faz parte do outro. Esta foi a região da primeira revolução agrícola a sério do país, onde o vinho do Porto chegou a representar mais de metade das exportações antes da crise da filoxera, e estava enquadrada na economia mais global de então, que era a inglesa. A bolsa do vinho do Porto era a de Londres. O combate à filoxera traz para Portugal técnicas que hoje associaríamos à biotecnologia, mas ao mesmo tempo havia um Trás-os-Montes remoto, que parecia estar metido numa bolha, onde as casas ainda eram cobertas com colmo e estar a 50 quilómetros era longíssimo, porque os caminhos não existiam ou eram fracos. E esse retrato não tem nada que ver com a unidade geralmente atribuída à região.
Quando, fazendo uso dos clichés, olhamos para estas partes do país, fazêmo-lo com algum romantismo.
Só os que passaram pela miséria, pelo mau viver, é que não têm esse olhar romântico. Dá-lhes de vez em quando uma nostalgia, também a mim me dá, mas é só isso. E quando nós estamos a imaginar o passado às vezes inventamos coisas que nunca existiram. Quando alguém diz que naquele tempo a gente divertia-se muito, nas desfolhadas e nas romarias, perguntamo-nos como seria no resto dos dias. Eu acho que há hoje uma mistura um bocado tóxica entre saudosismo, nostalgia, que vai bem para coisas como o turismo rural ou como efeito placebo para engolir em seco quando se constata o que está a acontecer a essas regiões, que estão a desfazer-se. Eu não consigo deixar de ficar deprimido quando ando em Trás-os-Montes e vejo aquela constelação de aldeias onde, de todas as casas, as habitadas serão uns 10%. Uma parte deste país está suspenso. Na aldeia de uns amigos, quando pergunto sobre as casas, dizem-me que uma é de um casal que está na Suíça, a fazer contratos de trabalho curtos, que outra é de um médico de Chaves que vai lá ao fim-de-semana, e uma outra é de uns primos que vivem em Lisboa. Ouvimos isto constantemente mas vamos às fontes oficiais e esta realidade não está lá retratada. Qual é o mapa da população de uma semana de Agosto? E de uma semana em Janeiro? Essa flutuação existe no outro país que não este que está esvaziado, mas como ali há mais gente, ela não se nota. Vê-se sempre gente e actividade.
Como é que nós, com as nossas ideias feitas, encaixamos um Verão tão trágico, do ponto de vista humano e da floresta, como foi o de 2017?
O assunto incomoda. Se o assunto não incomodasse, aquilo seria mais entendido como coisa nossa. Há claramente uma sensação de desamparamento. O discurso está centrado nos temas da moda, como a cidade inteligente, a Web Summit, o Ronaldo, ou o Ronaldo das Finanças, e essa agenda é muito forte. O jornalismo só vai ao Portugal profundo se houver alguma desgraça ou algo de excepcional, mas nunca apanhou este processo a que se chama rarefação ou baixa densidade, que decorre da tal desruralização. Um conceito que nem é entendido, o que me irrita enquanto pedagogo. Normalmente a gente trabalha a dicotomia rural/urbano e fala da urbanização, e nunca da desruralização. Há pessoas que foram alimentar a urbanização em Paris ou Nova Iorque, e nas terras de onde saíram persiste esta situação de flutuação, em que ao mesmo tempo tens resquícios de uma cultura pré-moderna alimentada por uma população extremamente envelhecida, mas com desequilíbrios enormes. O Estado modernizou as vilas, as sedes de concelho, num sentido keynesiano, tentando atrair o investimento privado através da construção de escolas, auto-estradas, fibra óptica etc., mas o investimento privado não o acompanhou. Existe uma quantidade imensa de municípios – e esse estudo seria simples de fazer – que estão totalmente dependentes de uma economia assistida, em que a maior parte do emprego é do Estado, local ou central, e, do lado privado, uma parte do rendimento é de poupanças, de remessas, ou seja, é gerado exteriormente.
Nós olhamos para esses territórios e dizemos que as pessoas vivem do que o campo lhes dá. Qual quê! Onde é que isso vai. Não entendemos as circunstâncias complexas em que a vida se organiza nessas terras. Os incêndios são bons para apanhar o lado dramático da questão, e perceber esse desamparo, de que já se falou quando se começaram a fechar tribunais, quando os postos de saúde passaram a ficar muito longe, quando vemos a falta de apoio aos idosos, desde logo por desestruturação familiar. Quando temos uma situação limite, todas essas disfunções vêm ao de cima. Por muita organização que haja, as coisas começam a falhar. E cria-se uma espécie de ciclo vicioso, que torna tudo muito delicado. E é um assunto muito sério.
E estamos a olhar para o problema do ângulo certo?
A questão dos incêndios não é uma questão da floresta, ou só o é parcialmente. Os eucaliptais, de que se fala tanto, têm perdido preço, e vão perder mais ainda porque estão a ser plantados em outros países com terras muito mais planas, que se podem mecanizar mais facilmente. O eucalipto e o pinheiro bravo têm esse problema do baixo valor económico da árvore, que rapidamente entra em disfunção, porque nem sequer vale a pena ir lá cortá-la. E se o eucaliptal fica abandonado, a gente sabe o que acontece.
O eucalipto é predominante numa boa parte da paisagem, mas, curiosamente, não vale para a formação de identidades paisagísticas, territoriais?
Claro, porque é uma identidade negativa, e ninguém a quer. Só foi positiva quando, durante o salazarismo, se fizeram campanhas de plantação de eucalipto. O Plano Marshall dizia que Portugal ia ser um major da indústria da celulose. Mas, atenção que uma das majors da celulose está a plantar em Moçambique mais de metade do que existe aqui. E que vai acontecer? O Brasil está prestes a liderar [o mercado de produção de pasta de papel], já há eucalipto transgénico que em clima tropical em cinco anos está pronto para rolar e, sobretudo, o mercado global que está em crescimento é do outro lado, é a Índia, é a China.
Já o pinhal do Rei faz parte da identidade de uma região. E o nosso interesse por ele é tal que muita gente achava que aquilo ainda era o pinhal original plantado por Afonso III e D. Dinis.
É a mitologia. O Pinhal de Leiria está no Fernando Pessoa. A foto de abertura do livro [o homem rachando lenha na praia, frente a um mar alteroso] era para se chamar “O regresso das Caravelas”, como se elas tivessem vindo em tão mau estado, que só dessem para lenha. E os mitos são importantíssimos. Estão para lá da realidade, têm uma capacidade enorme de construir essa mesma realidade, de construir causas em torno deles. E estes incêndios podem alimentar o mito. Não me espantaria que uma das prioridades destas novas medidas para a floresta fosse a replantação do pinhal de Leiria.
Voltando a essa foto de abertura do livro. Temos ali esse Portugal pré-moderno, de que falava há pouco, o da geração que catava lenha na praia, há 50 anos.
A melhor que eu ouvi sobre essa foto foi de alguém que me disse: “pareço eu a jogar golfe”. Isto foi feito no Senhor da Pedra [Vila Nova de Gaia]. Mas ela funciona num duplo registo, enquanto documento e enquanto metáfora ou metonímia. Enquanto documento reflete uma realidade. Eu trabalhei para este homem, depois de o fotografar ele chamou-me e acabei a juntar lenha para ele, e na conversa percebi que não era por necessidade que o fazia. A mulher dele até tinha uma motoserra. Se eu puxasse pelo lado documental disto tinha de fugir do registo da miséria, de quem não tem nada e até vai catar lenha à praia, como acontecia há gerações. Interessa-me esta imagem pelo seu carácter mitológico, a ideia de um país à beira-mar, que vive entre esta heroicidade do domínio do mar bravo e toda essa fragilidade que lhe conhecemos.
O Álvaro Domingues convoca o que vê para dizer o que quer. E convoca também muitas vozes para este livro, que tem pouco texto próprio e no qual chega ter um texto, os Fados da Portugalidade, construído totalmente a partir de múltiplos autores, de várias épocas, misturados. É já um método, aqui levado ao extremo.
Esse foi um exercício complicado. É uma colagem onde não se diz quem fala onde [os autores são assinalados no fim] e não tem uma única palavra minha. Mas tem coisas incríveis, de uma actualidade impressionante. Mas geneticamente tem uma matriz hipercrítica e às vezes demasiado depressiva.
As vozes escolhidas, para este texto, ou para acompanhar as fotografias de cada região são muito diversas. Pode ser um geógrafo, um publicista, um propagandista, um poeta. Pode ser até a voz de um impessoal anúncio inglês a uma propriedade no Algarve.
No meio deste livro há uma vozearia ensurdecedora. Se esta rapaziada toda falasse…Este é o risco maior desta obra, que é levar ao limite a história do livro sem autor, do colar coisas, do ser muito centrífugo, assumidamente hipertextual e onde de vez em quando tens coisas que te chutam para o lado mais humorístico, para ficares distraído, para depois mergulhares outra vez. Descentra-nos do autor e leva ao limite a ideia do estilhaçamento. O sr. leitor ou a sr.ª leitora há-de procurar a sua unidade, e há-de fazê-la com as peças que entender. O que está aqui é uma caixa de legos, sem livros de instruções, tirando os textos iniciais, que às vezes são um pouco explicativos, mas não funcionam como modo de ler.
Do ponto de vista fotográfico, continua a procurar sempre o improvável, seja com um homem a rachar lenha na praia, seja mostrando galinhas a debicar o chão num campo de futebol. É já uma forma de olhar.
A imagem improvável é muito útil. As coisas supostamente improváveis não estão lá por acaso. Há uma imagem de caixas de correio [pág. 290] que nos diz muito sobre a desruralização, sobre o abandono. As caixas estão lá agrupadas, e se a fotografia fosse do lado oposto veríamos que metade estão vandalizadas. Estas dão um último ar de que as coisas estão organizadas. O que a fotografia não diz é o que isto representa: casas a esmo, espalhadas por ali, umas novas, outras velhas e outras a desfazerem-se.
E o leitor, com o qual passou a contactar recentemente também pelas redes sociais, percebe isso?
Nem sempre. Muitas vezes as pessoas fazem leituras muito directas, ou avaliam a fotografia por uma impressão estética. Noutra imagem mostro oliveiras podadas em topia, num horto, a versão contemporânea daquilo que é o maior artificialismo da ideia do jardim, que são as oliveiras arrancadas do Alqueva transplantadas um pouco por todo o país. Isto criou uma estética que não existia, desde logo porque as oliveiras nunca foram usadas como árvore ornamental, nem nunca se podaram assim. A oliveira era sagrada, produzia azeite para alumiar o senhor e para regar o bacalhau com batatas. Antes da plantação intensiva era, em muitas culturas, a própria representação da eternidade, e de repente é sujeita ao tratamento de um bonsai gigante. A ideia de que o jardim é artífício, não é natureza, não é nova, já a víamos em Versailles. Mas o que eu achei piada foi à velocidade com que isto se banalizou, atravessando a sociedade, desde os jardins ultra-sofisticados, como o de Serralves, à rua da Estrada [refere-se a uma das muitas estradas nacionais que percorreu para o livro A Rua da Estrada], onde vi uma oliveira podada em mais de 30 bolas.
Sobre esta vozearia aqui presente, como é que na universidade, na academia, se olha para um livro destes? Provocando, pergunto: há aqui Ciência?
Muita. Estes são os meus heterónimos. Tenho dias em que sou cientista, a fazer papers para aquelas pontuações; noutros sou professor, e tenho de passar um conhecimento de forma clara, sem os artifícios poéticos do ensaio; e este é o meu lado mais selvagem, mais genuíno. Gosto muito destes cruzamentos, de quebrar essas fronteiras que são sempre falsas, entre o campo científico, o campo literário, o senso comum, os média, etc.
E no campo das representações sobre o território, que é do que trata este livro, elas chegam-nos mais depressa de outras fontes do que da voz de um geógrafo, não?
Há uma coisa que eu gostava de perceber melhor, e que pratico às vezes sem perceber muito bem o que estou a fazer, que é o Google. Tudo o que está aqui, em termos de bibliografia, é Google. E as coincidências e as relações de sentido que se constroem pesquisando bibliografia no Google são completamente diferentes daquelas que eu seguia quando era estudante e ia para uma biblioteca. Às vezes faço jogos de tiro no escuro, procurando por “Alentejo, seca, pdf”. E aparecem-me as coisas mais incríveis que se possa imaginar, e isso é típico da linguagem hipertextual. Depois, obviamente, seleccionas. Mas pensas: em muitos casos, se não fosse esta ferramenta, isto não me ocorreria, ainda que vagamente se conheça o autor. Quando trabalhei o Algarve, não me ocorreria pegar no livro Quando a China Mandar no Mundo [Martin Jacques, 2009, edição portuguesa de 2012], que agora sei que é um best-seller e que encontrei ao fazer uma pesquisa sobre golfe. Já a obra do João Baptista da Silva, que foi um dos primeiros a fazerem um trabalho sobre a economia do Algarve, conhecia-a, não na sua totalidade, mas sabia que se precisasse de dados, iria lá ter.
Então este livro é uma “googlada”?
Sim. E eu gostava de dar mais dignidade à “googlada”. Às vezes converso sobre isso com os meus alunos, que fazem pesquisas sem terem instrumentos, peneiras. E na “googlada” tanto vem uma mentira, uma intrujice, como vem do melhor que há no repositório de uma universidade. Nunca a humanidade teve um instrumento tão poderoso. E os meninos ou arranjam um método e um truque para fazer verificação, ou então estamos fritos. Eu faço um exercício diário, quando estou a trabalhar determinado autor, que é cruzar pesquisas, mudando do francês para o inglês, direccionando do geral para o repositório de uma universidade, e comparando constantemente isso. É preciso muita semiologia na internet, e muitos métodos de cruzamento, para tentar purificar o resultado.
Texto de Abel Coentrão e fotografia de Nelson Garrido publicado in P2, caderno de domingo do PÚBLICO