A PASTA Couto tem poucos anos mais do que o homem que hoje gere esta que é uma das marcas históricas nacionais. Servia para combater os males das gengivas que a sífilis não poupava e foi registada no Porto em 1932 por Alberto Ferreira Couto, o tio de Alberto Gomes da Silva, herdeiro da fórmula que já andou «na boca de todos os portugueses». O rapaz, que queria ser engenheiro porque ser farmacêutico era para meninas, continua com o ritmo de sempre a supervisionar, com os seus três empregados, bisnaga a bisnaga, e frasco a frasco de outro produto ímpar: o restaurador Olex. A vida do homem que se confunde com a da pasta que vende: foi com pastas Couto que foi pago o anúncio do malabarista que rodopiava com uma cadeira presa nos dentes brancos.
Esta é uma marca com história ou faz parte da nossa história?
_Dizem que sim! Pelo menos, com 80 anos, há de haver alguma história!
E qual é a história desta marca?
_A história toda a gente sabe. Hoje em dia vai-se à internet, está lá o nosso site, está bem explicado.
Mas é muito mais do que isso, há histórias que só quem cá trabalha há anos, como o senhor, podem contar.
_Sim. Continuo a ver se mantenho a alma disto até à minha alma [risos].
Usa pasta Couto para lavar os dentes?
_Uso. Todos os dias, pelo menos uma vez. É logo a primeira coisa que faço quando me levanto. Às seis e meia já estou a lavar os dentes. Levanto-me às seis. Depois tomo o pequeno-almoço e logo a seguir é lavar os dentes novamente.
E foi uma pessoa com problemas de dentes?
_Por acaso fui, é de família… Disseram-me que ia até à terceira geração. Em 1950 tive uma pessoa de família que teve a sífilis e isso estraga os dentes de vez.
Foi por isso também que a pasta foi criada?
_A pasta estava já criada, mas a fórmula foi modificada através das ideias de um senhor doutor, anda para aí o nome, era dentista. Adicionou-se o clorato de potássio, que é um pozinho branco que se comprava na farmácia em 1910, 1920, até 1950. Vinha numa carteirinha, diluía-se em água e tinha de se bochechar com aquilo pelo menos três vezes ao dia, senão os dentes caíam porque as gengivas dilatavam-se com o tratamento para a sífilis er os dentes pingavam todos.
E quando esse ingrediente, chamemos-lhe assim, foi adicionado à pasta Couto, isso resolveu o problema?
_Resolveu o problema, exatamente. A história da pasta Couto nasceu com esse ingrediente. E foi o meu tio o inventor da ideia de criar uma pasta dentífrica. Na altura, em Portugal, havia uma pasta que foi a pioneira, mas aquilo acabou há não sei quantos anos já. E, de resto, não havia mais!
Como é que se lavavam os dentes? Eu lembro-me de ouvir a minha avó contar que se esfregava com carvão para ficarem brancos.
_Sim, esfregava-se com carvão, ou com um pau, como em África.
Quando era miúdo, lavava os dentes assim?
_Já não. Esfregava-se com o chamado pó para a loiça, sabe o que é?
Não, não sei.
_Era uma coisa da cozinha, para lavar a loiça de alumínio, que ganha aquele lixo. Era o pó de arear. Mas eu comecei logo a lavar os dentes desde miúdo com pasta, porque lá em casa já havia a pasta Couto, os meus pais lavavam e eu também lá tinha de esfregar os dentes.
Ia muitas vezes ao dentista?
_Não! Tinha uma alergia ao dentista que nem lhe conto!
Mas com pasta Couto também não precisava, ou precisava?!
_Na minha família a maioria era saudável da boca, mas eu não. Comecei para aí aos 20 anos. Tive logo de arrancar um dente porque estava furado e disse ao dentista «não quero tratar o dente, quero que mo tire que assim é solução para o resto da vida, não há mais conversa». Porque a técnica dos dentistas era ir andando, agora diz que já há uns implantes e essas coisas todas, mas antigamente não. Andava-se sempre ali a pôr remendos. Aquilo era um negócio para os dentistas e um mal para o doente, era uma vez por mês que pelo menos se tinha de ir ao dentista, ou mais!
Mas hoje não é ainda assim?!
_Para quem gosta de passar tempo… Agora até querem pôr os dentes brancos, parecem uns cadáveres vivos, porque os dentes não são brancos!
Mas a pasta Couto, com que sempre lavou os dentes, não o ajudou a não ter tantos problemas na boca?
_Na boca não tenho problemas nenhuns, nunca tive. Só nos dentes. Continuei a sofrer, mas era de comer mal: por exemplo, avelãs, mastigava e para tirar a casca partia os dentes!
Acha que hoje a pasta Couto é um produto de culto? As pessoas acham que é um produto gourmet, com glamour.
_Isso são palavras que já não são do meu tempo. Antigamente era lavar os dentes com pasta Couto e os dentes mantinham-se limpos e a boca sã. Agora se é gourmet, isso são termos de agora… Tem é qualidade.
Mas a pasta Couto está à venda nos sítios mais refinados, nos hotéis de luxo, nos quiosques da moda…
_É porque os clientes gostam mais de ir a essas casas de luxo e pedem lá pasta Couto. Eu não vendo para nenhum quiosque de luxo, vendo para armazenistas e depois, a partir daí, já me escapa.
Acha que hoje já não é preciso a pasta fazer um anúncio como aquele do malabarista com a cadeira na boca?
_Aquele anúncio foi de uma época. Aquilo partiu de uma visita a Moçambique e o homem lá fazia aquele malabarismo.
Com a cadeira nos dentes?
_Sim, com a cadeira. Já nem sei o nome do homem. E o meu tio perguntou-lhe: «Você com que pasta é que lava os dentes?» «Eu até nem lavo com pasta nenhuma, mas se me der pasta para lavar os dentes agradecia muito porque aqui em Moçambique é tudo muito pobrezinho, não gastamos dinheiro em pastas, gastamos dinheiro no que é essencial e para lavar os dentes é com um pau a raspar os dentes.» Era a moda da terra. Com umas folhas e com uns paus. E lá mandámos as pastas.
A pasta Couto, com este revivalismo de que lhe falava, melhorou as vendas?
_A pasta Couto teve o apogeu em vendas no ano 2000. Foi o ano em que se vendeu mais pastas. Mais de um milhão de pastas por ano, entre 1998-2002, foram os melhores anos.
E qual é a explicação?
_Nada de especial, nós fazemos uma publicidade diminuta nalguns jornais, televisão nem pensar, porque é cara. Talvez a reboque de outras publicidades, de outros dentífricos, chegavam à loja e viam pasta Couto e compravam! Depois tivemos uma quebra, que foi na época em que acabou o «medicinal».
Tiveram de retirar a palavra da marca por causa de uma imposição da União Europeia?
_É, agora diz que não há pastas medicinais. Tanta coisa medicinal que não faz nada a ninguém, nem bem nem mal, até os rebuçados medicinais que há para aí…. Mas nesse período de transição entre pasta medicinal e pasta dentífrica, tivemos de renovar as embalagens e demorou o seu tempo. Não se acaba o «medicinal» hoje e amanhã aparece «dentífrica». Demorou, entre litografias e fábrica das bisnagas, estivemos ali parados três meses. E para começar a ativar foi complicado.
Perderam muito dinheiro nesse tempo, com essa alteração?
_Perdemos. Durante três meses não vendemos nada, está a ver, uma fábrica parada três meses sem vender, perdemos muito dinheiro.
E o que é que acha que as pessoas sentiram quando perdeu o «medicinal»? Acharam que afinal a pasta não prestava?
_Não. Nunca tivemos essa relação nome/quantidade de vendas. Dos clientes, desde há vários anos para cá, só tenho felicitações, «ainda bem que a pasta Couto continua no mercado».
Quanto é que vende hoje em dia, em média?
_Vendo pouco mais de meio milhão. Por ano.
Para Portugal ou para o estrangeiro também?
_Dez por cento são para exportar. Tenho um agente em Itália, que compra também para a Áustria e a Alemanha. E depois vendo umas dúzias para o resto do mundo, porque tenho clientes em quase todo o lado. Aliás, onde há um português, há pasta Couto [risos]!
Em que sítios do mundo é que tem pasta Couto à venda?
_Desde a Califórnia, nos EUA, até à Rússia, e desde a Finlândia até à Austrália… Mandaram-me esta fotografia da Califórnia com felicitações a dizer «mesmo aqui no fim da América, do outro lado do mundo quase, encontrei pasta Couto, posso continuar a usar». Mas as vendas são praticamente, como se diz, insignificantes… Mas o que é certo é que há sempre lá uma ou duas bisnagas por aí espalhadas.
E em Portugal, para onde é que vende essencialmente esse meio milhão de bisnagas?
_Tenho seis armazéns que me compram. Dois aqui no Porto, ali mais para o Minho, em Lisboa está mais ou menos. Os homens que me compram mais pasta são os indianos! Há uns armazéns indianos ali para a zona ocidental de Lisboa, perto de Algés…
E eles compram e vendem depois nas lojas deles? Ou revendem?
_Vendem para aí em todo o lado!
E chineses, não? A pasta Couto que se vende nos chineses é verdadeira?
_Aqui não tenho nenhum cliente chinês, mas sei que há, porque ainda anteontem me mandaram para aqui uma carta de um senhor, de Lisboa, um bocado escandalizado porque encontrou pasta Couto num armazém chinês e perguntou-me se aquilo era feito na China! Eu disse «não, se é pasta Couto só é feita aqui em Gaia, aqui nesta casa, não temos nenhuma filial nem sucursal em parte nenhuma do mundo, muito menos na China».
E porque é que nunca fez nenhum acordo com um grande supermercado, por exemplo?
_Há duas ou três superfícies grandes, mas não Continente nem Pingo Doce. Intermarché, talvez Minipreço e essas casas Schlecker que há para aí agora têm pasta Couto! Para as grandes superfícies não vendo porque não tenho condições para vender.
Não tem produção suficiente?
_Tenho produção que dava para tapar todo o buraco em Portugal! Mas o que eles querem é o desconto todo e eu a trabalhar só para aquecer… Já não estou para isso. Um empregado foi há dois ou três anos ao Continente, que sim senhor, acharam muita graça, até julgavam que a pasta Couto nem obedecia aos requisitos de produção, julgavam que era feita num vão de escada. Mas só queriam era desconto, se era na prateleira, tanto, se era à frente, mais tanto, e eu disse não, não. Vendo qualidade, não vendo publicidade, é o que eu digo.
O que é que torna a pasta Couto tão diferente das outras é ter essa qualidade que diz?
_Compramos os artigos da melhor qualidade.
Dantes, segundo li, era tudo importado, e agora?
_E agora também é, porque em Portugal os nossos produtos não se fazem.
Que produtos é que tem a pasta Couto?
_Pelo menos, tem todos os que estão lá na fórmula escarrapachados. E nada disso se produz em Portugal.
Nem a hortelã-pimenta?
_Nada! Agentes que andam aí nas fábricas vêm cá visitar-me, têm gerações de empregados a virem cá, já vieram os pais, já vêm os filhos. E compro.
Quando o seu tio inventou esta pasta, as qualidades eram exatamente as mesmas de agora ou houve alterações ao longo do tempo?
_Não. As qualidades são idênticas. Alguns produtos melhoraram, fruto da tecnologia lá no estrangeiro, onde são comprados. Hoje em dia, toda a gente sabe que a produção tem melhorado em tudo, nos produtos químicos também. E a qualidade não está pior lá por ter oitenta anos, está melhor.
Quantas pessoas tem a produzir a pasta aqui na fábrica em Gaia?
_Três a produzir e uma a fazer o controlo de qualidade, uma doutora em Química. E chegam. Só trabalho em pasta 15 dias por mês, o resto tenho de fazer umas coisitas para entreter o pessoal. Faço o Olex…
Já lá vou, a outro produto histórico seu, o restaurador Olex…
_O Olex, e faço vaselina, água oxigenada…
Portanto, a produção do meio milhão de bisnagas é feita só durante 15 dias por mês?
_Sim, fazemos cinquenta-sessenta mil bisnagas por mês com essas três pessoas.
E ao todo quantas pessoas trabalham consigo?
_Três na produção, um no escritório, um no controlo de qualidade. Seis. Está tudo bem.
E são seus empregados há quantos anos?
_A mais recente é a doutora em Química que está cá há… nem tenho a certeza. O resto é tudo quase na idade da reforma!
Como é que feita a mistura dos produtos? É já automática ou manual e artesanal?
_Tudo automático, só a pesagem é que é manual. Pesar e medir tem de ser, como se diz, à antiga portuguesa. De resto, é tudo metido numa máquina… com vinte anos. A fazer a mistura, o pó e os líquidos, é uma hora. Depois, aquilo passa para uns depósitos, através de umas bombas, e está 48 horas em repouso. A partir daí, vê-se o controlo de qualidade novamente, se está ok, manda-se encher as bisnagas. Temos máquinas de encher e de embalar as bisnagas, saem prontas para o cliente. A mão humana só chega ao princípio, de resto, acabou.
E acha que tem mesmo caraterísticas medicinais?
_Acho que sim. A principal caraterística nem é fazer só bem aos dentes, é às gengivas! As gengivas é que é o fundamental. Quando houve a sífilis, que hoje em dia não há, há o VIH… é um nome mais pomposo. Agora ninguém diz que está com sífilis. Mudam assim os nomes, mas de resto as moscas são as mesmas. Mas nessa altura fomos fundamentais.
Porque é que nunca pensou, por exemplo, em pôr um dentista famoso a dizer «compre esta pasta» ou a voltar a apostar forte em publicidade?
_Quando nós fazíamos mais publicidade, os dentistas até não gostavam porque fazer publicidade a um produto que vão receitar é contranatura. Mas receitar pasta Couto é o mesmo que… aspirina, não é?
E alguma vez pensou mudar a imagem da embalagem? Ou frases antigas como «para tratar das infeções da boca»?
_Não! Aquela imagem que está nasce e morre assim, comigo pelo menos. É antiga mas está atual.
Os outros produtos, que importância têm na faturação da empresa? O restaurador Olex…
_No conjunto, talvez um terço.
O restaurador Olex ainda se vende?
_Neste momento não. Também tivemos um problema com a fórmula. O restaurador Olex conforme nasceu, há quase cinquenta anos, continha acetato de chumbo que foi proibido, e isso é que dava resultado para pôr os cabelos assim como os senhores gostam, escuros. Mas foi proibido e, a partir daí, tem de se andar aí à procura.
De um substituto?
_De um produto que resolva o problema sem incorporar o acetato de chumbo. Temos andado aí com testes e mais testes, pedimos já a colaboração de alguns laboratórios que fazem pesquisa destes artigos, mas até à data não se encontrou nada de jeito. Andarmos a fazer restaurador Olex sem funcionar bem não e mandei suspender a venda porque havia reclamações, e eu não gosto de reclamações. A pasta Couto nunca teve uma reclamação até hoje e o restaurador Olex já estava a ter. E, como tal, parou-se. Parece-me que agora tem aí uma fórmula, parece-me, ainda está em estudo, em experiência, temos feito uns ensaios, mas já me disseram que está bem. Vamos lá ver.
E a Couto, é barata ou é cara em relação aos outros produtos do mercado?
_Dizem-me que é barata e também me dizem que «podia ser mais barata» ou «o tubo podia ser maior, tornava-se mais económica». Para mim, acho que está barata em relação à qualidade, portanto… Neste momento só tenho em Portugal à venda o tubo de 60 gramas. Só temos três tamanhos: 25 gramas, 60 gramas, 120 gramas. Mas os outros não estão à venda em Portugal, só vendo para fora. O consumo era pouco, não sei porquê. E estar a fazer uma coisa só para ter tubos para vender, não me compensava.
Nunca pensou em fazer subprodutos, uma pasta para criança, um elixir?
_Já tivemos isso, mas não se vendia. As vendas era poucas.
O que é que a Couto ganhou em mudar-se das instalações tradicionais, no Porto, onde foi inventada, para aqui, nesta zona industrial de Gaia?
_Ganhou, pelo menos, em termos físicos. E em qualidade. Temos produtos mais bem armazenados, temos ar condicionado, mantém-se uma temperatura mais ou menos constante, enquanto no edifício antigo não tínhamos nada disso e era uma indústria na vertical, que hoje em dia não se usa. As indústrias são na horizontal.
Li que trabalha na fábrica desde os 17 anos. Como é que começou? Conte-me a sua história.
_Queria ser engenheiro mecânico, tinha a mania, com os carritos que arranjava lá em casa. Gostava imenso de ser engenheiro mecânico e o meu pai também dizia «tu tens muita queda para ser engenheiro mas tens de ir é tirar o curso de Farmácia». Tirar o curso de Farmácia? «Isso é para meninas, não é para meninos!», insistia eu. Naquela altura, há sessenta anos, farmacêuticos eram poucos, as meninas é que eram farmacêuticas. Quando procuramos um farmacêutico, normalmente, sai uma mulher. Ainda hoje em dia há mais mulheres formadas do que homens! Eu não queria e então disse ao meu pai: «Ai não é engenheiro? Então não estudo mais!» Pronto. Acabei o liceu com deficiência a Matemática, infelizmente. Queria ser engenheiro mas sem a matemática ainda por cima… desisti mesmo.
E foi trabalhar com o seu tio?
_Fui trabalhar com o meu tio e com o meu pai. Trabalhavam os dois na fábrica. O meu pai era licenciado em Economia e era o chefe de escritório, o economista da casa. O meu pai formou-se, foi trabalhar para a alfândega e depois como naquela altura era um horário das sete da manhã às quatro da tarde, à tarde já não tinha que fazer e ia lá para o escritório. Entretanto, pediu licença sem vencimento, porque precisávamos dele mais tempo na contabilidade. Eu aos 17 anos, como não acabei o liceu, comecei a trabalhar.
O que é que fazia?
_Comecei a conferir faturas!
E depois? Quando é que aprendeu qual era a mistura, qual era a pesagem para fazer a pasta?
_Aquilo, lá em casa, era uma farmácia no rés-do-chão e no primeiro andar era escritório. Comecei a ir subindo. Andava ali, empregado de farmácia, não tinha curso nenhum, mas naquela altura ainda se podia atender os clientes, hoje em dia é que só os doutores é que podem atender. Nem sei se ainda é assim ou se já serve qualquer marçano. Isto é um país muito esquisito. E tenho uma irmã cinco anos mais nova, ela é que se formou em farmacêutica.
Fez a vontade ao seu pai?
_Fez a vontade à família, nem foi ao meu pai. Foi à família toda, porque estava tudo «como é que vai ser a nossa sequência», porque a farmácia tinha de passar para um farmacêutico. Quando o meu tio comprou a farmácia, qualquer pessoa comprava. Depois é que saiu a legislação, a partir de 1936, por aí, em que as farmácias só podiam ser compradas por farmacêuticos. E agora parece que já não é preciso. Mas a Farmácia Couto ainda existe, está na posse da minha irmã.
Ela continua a trabalhar lá?
_Continua! Está aposentada, mas continua.
E depois, como é que foi subindo na hierarquia?
_Passei para o escritório. Entretanto, fui fazer aqueles cursos de guarda-livros, assim umas coisas ao fim do dia, parece que agora também já não há disso, o ensino agora é muito confuso. Naquele tempo era ou comércio ou liceu. Escolas comerciais ou industriais. Passei para uma escola comercial noturna. Começava-se às seis da tarde e acabava parece que às dez, quatro horas, já não me lembro bem. Sei que andei lá quase dois anos, com uns livrecos metidos numa caixa de cartão, como os guarda-livros, com dois elásticos, já viu isso? Umas folhas soltas [risos]…
E tornou-se gerente?
_Comecei a aprender mais umas coisas de escritório. E passei para o terceiro andar, era onde se fabricava a pasta, terceiro e quarto andar. Lá aprendi a fazer aquela mistela, na altura.
Tudo artesanal?
_Claro, tudo! Como em todas as farmácias, era feito à base do almofariz, misturava-se, passava-se de um recipiente para outro, e lá ficava a pasta feita. Depois comprámos uma maquineta, que ainda está aí, que era uma manual, metia-se a pasta lá em cima, saía um tubo de cada vez. Chegámos a ter trinta mulheres a trabalhar para fazer pasta Couto, nessa altura.
Com o seu jeito para a mecânica, nunca arranjou uma maquineta sua, nunca pensou inventar nada?
_Não. Inventei algumas modificações de maquinetas que se compraram, mas de raiz, nunca. Porque não tinha assim uma ideia firme de como é que havia de ser uma máquina para fazer bisnagas.
Acabou por ficar à frente da fábrica. Era a sucessão natural, ser alguém da família?
_Os meus tios não tinham filhos. Ou melhor, tiveram uma filha mas morreu com 14, 15 anos. Eu era o herdeiro natural.
Agora está com quase… 75?
_Vou fazer.
A quem é que vai passar a pasta?
_Já estou aposentado, como bom português, aos 65 anos aposentei-me. Mas continuo a trabalhar e possivelmente ainda trabalho mais agora. Pelo menos estou mais horas ao ativo do que antigamente, porque agora como tenho uma Fundação Couto, não sei se conhece…
Não conheço, mas ia perguntar-lhe.
_Foi a família que fez a doação da casa onde vivíamos, aqui em Gaia, na Avenida da República, e transformámos aquilo num infantário. Creche, infantário, agora temos mais um ATL para os miúdos. Temos lá uns quinhentos e poucos miúdos.
E é também o senhor que gere a fundação?
_Tem um conselho diretivo. Nos primeiros anos que fui para lá, era o único a mandar. Depois tentei pôr aquilo com conselho e agora tenho lá vogal e tesoureiro, essas coisas todas. Só lá vou assinar uns papéis.
Estava a dizer-me que ainda trabalha agora mais tempo do que antes.
_Não trabalho mais tempo, estou mais horas ocupado.
Quantas horas passa aqui? Como é o seu dia a dia?
_Chego às sete da manhã à Fundação Couto, estou lá até às dez e meia. Depois venho para aqui até à uma. Saio daqui, a pé, para a fundação, dão-me lá de almoço. Estou lá duas horas e venho para aqui fazer o fecho. Todos os dias. Nem que chova, como diz o outro!
E não há férias?
_Normalmente não faço férias, nunca fui muito dado a um mês de férias, como se usa, nunca estive um mês fora. Aproveitava aquelas pontes, que agora nos vão tirar, saía daqui à quinta-feira e regressava à segunda. Aqui no Porto não se usa muito ir para o Algarve, que é muito longe, vamos aqui mais para o Norte, para Vigo. Agora, desde que estamos aqui, faço férias um mês porque estamos fechados em agosto. Mas a fundação nunca fecha. E lá estou a tempo inteiro no mês de agosto.
Quem é que se lembrou de fazer a fundação?
_Foi um concílio familiar. Aquilo era uma moradia e as moradias, há cinquenta anos, deixaram de ter interesse económico, porque era preciso as chamadas sopeiras, o copeiro, tínhamos de ter três empregadas para tomar conta da casa. Hoje em dia isso é impraticável, ter duas empregadas, uma para fazer a comida, outra para servir à mesa e limpeza e ter um jardineiro era uma despesa imensa ao fim do mês. Estava em moda naquela altura era mudar para um apartamento. Mais pequeno ou maior, mas apartamentos. E era perigoso. A família teve um bocado de receio e mudámos para o Porto. O meu tio até fez um prédio na rua onde estou a viver. Sozinho, num sétimo andar, num T6 [risos].
Fiz-lhe a pergunta há pouco, não me respondeu diretamente. A quem é que vai passar a pasta? Não tem herdeiros?
_Não sei. Essa pergunta ainda não a respondi a ninguém porque não sei.
Mas há interessados na pasta Couto, em comprar a empresa?
_Já têm aparecido aqui interessados. Pelo menos um ainda me telefonou no princípio do ano a dizer: «Quando quiser alguma coisa lembre-se de mim, que eu estou… ainda só tenho 40 e poucos anos, ainda tenho muito para dar!»
E vai conseguir vender a pasta Couto?
_Enquanto tiver saúde, deixo-me estar cá. Se me der uma macacoa, como é normal às pessoas, tenho de despachar isto para alguém.
Vai custar-lhe muito?
_Claro que sim. Não tenho filhos, portanto, isto é o meu filho.
Não há ninguém na família que queira ficar à frente da Couto?
_Não, não tenho ninguém. A minha irmã é solteira, não teve filhos. Nunca tivemos filhos.
E não era importante vender agora e ficar à frente do negócio, resolver já o assunto? Ou é preferível esperar?
_Vender agora e ir para aí… às tantas era capaz de me dar a saudade do serviço que faço!
Mas podia negociar ficar à frente da empresa.
_Às vezes pode haver um choque de mentalidades. Quem adquirir isto, em princípio, deve ser uma pessoa muito mais nova do que eu, para velho já cá estou eu, não vem aqui comprar isto um homem de 70 ou 80 anos.
Não está a pensar vender por enquanto, então?
_Para já, concretamente, não. Só se tiver assim…
Uma oferta milionária?
_Uma oferta irrecusável. Mas para já… e agora neste país suponho que não há nenhum profeta que venha por aí abaixo, ou por aí acima, e traga a árvore das patacas para abanar de repente.
A crise tem afetado a empresa? Tem afetado também a venda de pasta?
_Não, as nossas vendas têm-se mantido, apesar desta crise tão forte. Até senti uma ligeira melhoria em relação ao ano passado. Muito pouco, mas… ainda me dou por contente.
Já houve festa dos 80 anos da pasta Couto ou ainda não?
_Isto não está para festas hoje em dia!
Nem uma festita pequenina?
_Fizemos aí só uma conversinha, entre seis pessoas, e mais nada.
Texto de Filomena Martins e fotografia de Pedro Granadeiro in http://www.jn.pt/revistas/nm/