CORRIA o ano de 2003 quando Ana Bacelo, que conta agora com 36 anos, decidiu recorrer à ajuda de um cão-guia para colmatar as dificuldades provocadas pela falta de visão.

Ana, natural de Espinho, dirigiu-se então a Chão de Vento, no concelho de Mortágua, local onde se situa a única escola do país dedicada à formação de cães, que pretendem dotar da capacidade de serem os olhos daqueles que não conseguem ver. Nessa altura trouxe Jiggy para casa, que durante nove anos lhe deu a “autonomia” e a “segurança” que uma bengala não consegue, já que permite desviar de todo o tipo de obstáculos que podem surgir pelo caminho.

Quinze anos depois já não é Jiggy o responsável por acompanhar Ana, mas sim Faruk (8 anos), que chegou à sua vida quando o seu primeiro cão, do qual cuidou até ao último momento, já não era capaz de a guiar. Alguns animais, quando não o conseguem mais fazer, voltam à escola que os formou, caso o dono, por alguma razão, não tenha possibilidade de os cuidar.

Para a espinhense, que sempre gostou e conviveu muito com cães, trocar a bengala por um acabou por ser um passo natural. Ao Correio do Porto, contou que a adaptação ao animal é realizada, pelo menos na escola portuguesa, através de um estágio de duas semanas. A primeira é passada com o cão na escola e, na segunda, o treinador do mesmo vai para a sua nova área de residência verificar os trajetos que são diariamente feitos e a acomodação do animal ao contexto familiar, social e pessoal do seu dono. O resto vem do convívio quotidiano, que melhora o desempenho do cão e o do próprio utilizador com ele.

Como qualquer outra pessoa, Ana, que trabalha no centro do Porto, nem sempre faz os mesmos percursos. Como o cão não tem GPS este podia ser um problema, mas a espinhense explicou que contorná-lo não é assim tão complicado, desde que o utilizador conheça minimamente os trajetos. O cão entende ordens como em frente, esquerda, direita, busca escadas e busca linhas (para a passadeira). Tudo comandos que se podem dar, se se souber minimamente para onde se quer ir. “Com o tempo, o animal vai memorizando os caminhos”, afirma. E acrescenta, “têm a capacidade de entre uma situação difícil, como existência de obras, ou um obstáculo inesperado, escolher o melhor caminho, de memorizar percursos, e conseguir encontrar, por exemplo, a saída de um local onde se encontra, a pedido do dono. Além disso, sendo capaz de raciocinar, muitas vezes o cão desempenha a desobediência inteligente, que consiste em contrariar uma ordem do dono se tal colocar este, ou a dupla cão-humano, em perigo, como por exemplo, se lhe for pedido que vá na direcção de uma linha de comboio, ou um precipício sem protecção, ou para atravessar uma rua em que esteja a aproximar-se um veículo.”

Ana Bacelo tem consciência de que os cães podem falhar, assim como as máquinas e as pessoas. “Falhar é humano e canídeo”, argumentou. Contudo, não acha que falhem mais do que qualquer pessoa, e que as poucas vezes em que se enganam sejam motivo para não confiar neles.

Questionada se a curta longevidade dos cães, quando comparada com a dos humanos, pode ser um fator para as pessoas não optarem por um para as ajudar a orientar-se, Ana respondeu achar que sim. “Perder um cão – um guia em particular” e “a adaptação a um novo animal é sempre doloroso”. Acredita, contudo, “que o benefício compensa as desvantagens”.

O diploma legal que permite a entrada de todo o tipo de cães de assistência em locais, transportes e estabelecimentos de acesso público, faz com que Ana possa usufruir do auxílio do seu ajudante de quatro patas sem receios, apesar de haver sempre pessoas com reticência à entrada do animal, que, como qualquer outro, tem as necessidades normais de “brincar, correr, serem acarinhados, alimentados e terem os cuidados veterinários em dia.” Alguns “cuidados só têm de ser levados mais a sério, na medida em que é um cão que anda sempre em todos os espaços públicos”.

A importância dos cães-guia – trabalhadores com direito a todas as regalias que o trabalho outorga, como o da reforma -, nem sempre é avaliada devidamente, o que origina problemas a quem deles carece. Um desses problemas assenta no facto da única escola em Portugal para os formar – cuja ideia de construção surgiu em 1995, altura em que o país lusitano era o único na Europa, para além do Luxemburgo, que não tinha esse apoio técnico – não ser capaz de “suprir as necessidades de todas as pessoas que gostariam de confiar a sua vida a um cão-guia”, lembra Ana. A solução, segundo a mesma, não passa, necessariamente, pela criação de mais nenhuma escola de cães-guia, mas talvez o crescimento da única existente em Chão de Vento pudesse ser suficiente para satisfazer os pedidos que surgem todos os anos, tanto mais que vai sendo necessário substituir os cães que deixam de trabalhar, como foi o caso do Jiggy. Quer numa hipótese, construção de nova escola, quer noutra, crescimento da actual, o certo é que vão precisar da solidariedade de todos nós.

SOBRE A AUTORA DO TEXTO: Patrícia Santos, natural de uma pequena aldeia do concelho de Santo Tirso, nasceu em 1997. Atualmente, estuda Ciências da Comunicação: Jornalismo, Assessoria e Multimédia, na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Realizou Erasmus em Tarragona durante um semestre. Começou a colaborar com o Correio do Porto em 2017.

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