O PRECONCEITO já foi, o filho melhorou as notas, a prótese dentária está a caminho. Sexta chega a água. Segunda vem a luz. Breve história de Andreea Ioana, a mulher franzina de Bucareste, perdão, Campanhã.
Quando, nos próximos dias, Andreea Ioana se mudar com a mãe e o filho para o Bairro do Monte da Bela, na freguesia de Campanhã, no Porto, ela não irá apenas abrir a porta de uma casa nova. Para a romena nascida em Bucareste há 31 anos será altura de habitar um novo tempo e, quem sabe, sorrir finalmente até às covinhas do rosto, agora que até a prótese dentária está bem encaminhada.
Do quarto andar de um T2 remodelado ela agora até poderá ver o Douro, ao longe. Mas melhor do que isso são os horizontes que se avizinham. “Nunca baixei os braços, mas também me ajudaram muito”.
Outros, na situação dela, talvez já tivessem acumulado desistências, desesperanças e rancores. “Ela não come e cala. Pergunta, exige respostas públicas”, conta Paula Cruz, professora no agrupamento de escolas do Cerco, sabedora do calvário dela junto de instituições e repartições. “Quando chegou a Portugal muitos disseram-lhe que ela já devia ficar satisfeita por cá estar. Não a conhecem”, acrescenta.
Andreea abandonou Bucareste aos 18 anos, mas não deixou apenas isso. Para trás, ficara um país com ar de fotografia desbotada, a morte do pai e a ilusão de tirar um curso de Direito. A mãe e o filho bebé, que também por lá ficaram, haveriam de se juntar a ela. Assim prometeu a si própria, entre lágrimas, quando partiu. Cumpriu.
Se alguém pensava que ela ia chegar a Portugal, em 2002, para se fazer de coitadinha, enganou-se. Entre Lisboa e Porto, acumulou limpezas, refeições de tostas mistas semanas a fio, quartos de pensão. O dinheiro das poupanças fugia e o submundo do tráfico de mulheres martelava-lhe a cabeça de histórias sórdidas, receios e tentações. Não se resignou. Quando a conhecemos, no ano passado, no âmbito de um trabalho para a revista XXI, da Fundação Francisco Manuel dos Santos, os 13 anos de sobrevivências não eram, de facto, um número de sorte. Andreea trabalhava – e ainda trabalha – como empregada de cozinha no agrupamento de escolas do Cerco a 2,5 euros à hora, mas até isso está em vias de mudar: a atitude e capacidades da cidadã romena foram de tal modo elogiadas que ela até poderá, em breve, melhorar a situação laboral naquele estabelecimento de ensino, começando a fazer fintas à sina da precariedade total. Para já, ganha 3,09 euros à hora. Não é ainda um recomeço. É apenas uns cêntimos dele.
Em breve, Andreea vai deixar de vestir o seu mundo à justa, pelo menos entre quatro paredes. Até agora, pagava uma renda grande (190 euros) numa casa mínima. Agora, pagará o que muitos gastam num almoço (cerca de 12 euros) por um lar com dois quartos. No resto, algo dificilmente mudará, pelo menos por agora. O seu dia-a-dia ainda é cimentado pedra a pedra, com parcos rendimentos, apoios da autarquia e somíticos complementos sociais. “Não quero coisas de mão beijada, nem gosto disso. Esforço-me. Cabemos cá todos, não?”, interrogava, no ano passado, embrulhando também a resposta. “Há romenos a dar má fama aos romenos que querem trabalhar e integrar-se, mas não somos todos iguais. Quando ouço que os de Leste vieram para roubar trabalho aos portugueses, salta-me a tampa. Quem quer fazer o que eu faço?”, questionara, de novo, desabafando. “Os piores momentos são quando precisas de orientação e não está ninguém”, explica. “Mas se acreditas naquilo de que és capaz, não tens medo: arriscas”. E ela gosta muito de acreditar que um dia acabará num restaurante, a servir sonhos arrumados a um canto.
É dela a responsabilidade de cuidar da mãe e atalhar caminhos para que o seu filho, de 13 anos, com necessidades educativas especiais, continue a fintar sentenças, sem pedir licença. “Temos ambos personalidades fortes”, admite. “Já fomos discriminados e ele até por situações de bullyng passou”. Gemma Dicu é uma criança hiperativa, com défice cognitivo, mas também ele já deu, no último ano, uma bofetada no destino. “Melhorou muito, já tira boas notas”, atesta a mãe, sem conter as emoções. “Depois de todo o apoio dado pela professora Elisa Alves, só falta à direção da escola compreender e aceitar melhor o menino especial que ele é”, pede a romena.
“A Andreea já está no meu caderninho de galhardetes”, garante, por outro lado, José António Pinto, assistente social na Junta de Freguesia de Campanhã, “Chalana” para os mais chegados. O dito caderno não é eufemismo. Quando o “doutor Pinto” consegue mudar uma vida a desengravatar burocracias, lá vai o rabisco de mais um brilharete para o seu guiness book privado. “A Andreea merece tudo de bom que lhe tem acontecido. É uma pessoa espetacular, vai sempre à luta. Já temos um plano de vida para ela, vamos ver como corre”, resume José António Pinto. Além da casa nova, e após as insistências de almas pouco dadas as resignações e ceticismos, foi ele quem desbravou terreno para conseguir a prótese dentária. “Quando o sistema falha, e, como se sabe, falha muitas vezes, recorro a uma secção doJornal de Notícias chamada «Todo o Homem é meu Irmão”. É a minha Segurança Social”, ironiza. Foi através daquela coluna histórica de solidariedade do matutino portuense que apareceu a Clínica Dentária da Avenida, em Gaia. “Quando me disseram que iam pagar tudo, nem queria acreditar”, reconhece. “Eu chorei!”, admite Andreea. “Não estava à espera. Foi uma emoção grande. No dia 14 tenho a prótese pronta”, revela.
Por estes dias, a romena anda numa azáfama, sem conter a excitação. O “doutor Pinto” já desenrascou uma carrinha para as mudanças, entre outras minudências. Na sexta, já tem água. A luz chega na segunda. Das caixilharias aparecerá alguém para tratar. Este não é ainda o final feliz das histórias da carochinha. Mas no Bairro do Monte da Bela, cuja reabilitação conta com milhões da Câmara do Porto, haverá, por estes dias, mais uma mulher feliz. Com lágrimas.