NÃO conhece palavras para se fazer explicar. Ou então são as palavras que não lhe entendem o peso no peito. Domingos Augusto Almeida faz uma pausa, respira como se respira a acalmar o coração. “Como hei-de lhe explicar?” E ao dizê-lo assim já não precisa de justificar tudo, cobertos de água que lhe ficaram os olhos. O Castelo morreu-lhe há dois meses. E ao sr. Almeida, como costumam chamar-lhe, ainda lhe custa falar sobre isso. Castelo era um cavalo, mas não era um cavalo. “Aquilo era um familiar. Falava para ele e ele só não me respondia mas sabia tudo o que eu queria.”
Quem mora pela Foz do Porto certamente já os viu por ali. Almeida e Castelo. “O último agricultor da Foz” e o seu cavalo. Há uns 30 anos que se tinham tornado inseparáveis. Castelo ajudava no campo, apoiava nas entregas porta a porta, carroça atrelada e carregada de legumes cultivados num campo fozeiro. Augusto Almeida jura que não tinha de lhe dizer quase nada, que se entendiam com pequenos gestos, hábitos de rotinas feitas afecto. “Chegava aos clientes e sabia onde devia parar no passeio. Sabia os caminhos. Quando vinha para o campo, desengatava [a carroça]. Já sabia que queria um bocadinho de farinha com água. Depois ia para o pasto e à noite pedia mais umas papinhas.”
Há uma ternura triste nas suas palavras. “Custou-me muito, ai se custou…”, vai dizendo, a aclarar as emoções: “Tinha 30 anos na minha mão, é uma vida”.
E mais não consegue dizer.
Talvez esteja na improbabilidade a razão do encanto que muitos sentiam pela dupla. Os moradores da Foz, clientes dos produtos agrícolas ou não, apreciavam-nos, quais ícones inverosímeis no lado mais enriquecido da cidade, onde a lógica urbana é rainha. Tanto apreciavam que, ao saber da morte do Castelo, se puseram a magicar forma de não perder aquela quase tradição.
Os donos de uma padaria em Gondarém pediram-lhe um dia o número da conta “para se quotizar qualquer coisinha” que o ajudasse a comprar um novo cavalo. Nas redes sociais, partilhava-se a notícia e a iniciativa solidária. Falava-se já com nostalgia de uma Foz onde cabia um agricultor e o seu cavalo, qual prova de sobrevivência de uma cidade humanizada em tempos do avesso. E foi “na Internet” que um sobrinho “encontrou um senhor com um cavalo para dar”, conta.
Pele feita morena e rija pelo campo, 77 anos que parecem menos dez, Augusto Almeida é agricultor daquele terreno cedido pela paróquia de Nevogilde há dois anos. Era já ele que, a pedido do padre, mantinha o silvado limpo há bastante tempo. Mas depois veio a proposta adicional e Augusto Almeida, que tinha perdido o seu maior solo de cultivo, agarrou a ideia.
Ali, com prédios como vizinhos e o mar bem perto, planta pencas, couve-galega, couve-coração, couve-nabiça, abóbora, feijão. Do terreno de casa, saem também alfaces, alho-francês, cenouras. E ainda ovos das suas galinhas. “É preciso ter muito gosto”, vai dizendo enquanto corta umas hortaliças para duas senhoras que apareceram para fazer compras. “As pessoas gostam de mim porque isto dantes era abandonado, havia assaltos, as silvas iam para a rua. Agora é uma limpeza.”
— Quanto lhe devo?
— 4 euros, dona.
— Tem troco de 20?
— Não tenho… Paga-me depois, não faz mal. Sabe que quem é moço não é patrão.
Negócio despachado. Por esta altura, Augusto Almeida, acelerado com o telefonema recebido minutos antes, já não pensa em mais nada. “Se vejo aqui o meu Rafa”, deixa sair entre dentes.
Rafa é o nome do novo cavalo. “É como o jogador do Benfica. Sou boavisteiro, por isso não me importo”, graceja. Nos olhos azuis de Augusto Almeida cabia ainda a tristeza da perda, mas bailava já a magia de um recomeço depois da chamada em que lhe deram o sinal verde. Tinha uma roulotte garantida para transportar o cavalo e já podia ir buscá-lo. “Hoje até durmo aqui com ele, às tantas até durmo aqui com ele…”
Do Porto a Valongo vai pouco tempo de viagem. O céu “põe-se para morrinhice”, sem passar da ameaça, e Augusto Almeida vai desfiando a história dele, com o pensamento em Rafa. Nasceu a 6 de Fevereiro de 1940, filho de agricultores da Foz num tempo em que a Foz estava pejada de lavradores. Eram cinco filhos, três rapazes e duas raparigas. E ele ajudava no campo, viciou-se no cheiro da terra.
Junto à Universidade Católica, onde tinham os terrenos, “era uma zona de trabalhadores, uns cinco ou seis agricultores” numa cidade “muito diferente” da de hoje. Não se enrolavam em disputas, apesar do negócio, havia “amizade e solidariedade”. Mas depois “foram morrendo” e com eles se enterrou aquele ofício. “Quando vou por aí fora e vejo uma quinta a monte, é dar-me uma facada na barriga”. É que não há nada comparável àquela felicidade dada pela terra, garante: “Dá-nos tudo o que a gente precisa. Planto, depois vem a chuvinha, germina. Adoro isto.”
Na Foz, como no outro extremo da cidade, no lado mais oriental de Campanhã, a mancha verde é ainda significativa. Mas os campos cultivados já escasseiam. Com aquela actividade, Augusto Domingos junta alguns trocos à reforma, mas a questão maior é outra: “Quando não fizer nada, estou morto.” Janta e deita-se cedo. Muitas vezes acorda pela meia-noite e depois “engatar outra velocidade” é o cabo dos trabalhos. “Puxo a roupa, mas a Mariazinha começa a reclamar que só me mexo. Eu digo: ‘= que queres? Já dormi que chegue…’”. E então levanta-se. Às vezes, são três da madrugada e já anda de enxada na mão.
Não há doença que lhe pegue. E se ameaçam, ele ignora: “Penso assim: ‘Dói-me a cabeça, há-de passar; doem-me os rins, há-de passar.’ Nunca tomo medicamentos.” É a prescrição do homem de quarta classe cumprida e estudos interrompidos por imposição: “A D. Filomena, minha professora na primária do Passeio Alegre, dizia que eu era um papagaio”, recorda. Gostava muito da escola, mas a família precisava de uma mão. E um cliente do pai ajeitou um emprego para o miúdo, “devia ter uns 14 anos”. Aprendeu “a arte” da mecânica, passou por várias empresas. No segundo, já ganhava 16 escudos. “Não era burro, ia saltando sempre em busca de algo melhor.”
Trabalhou na Base Naval de Leixões, na Sacor (agora Petrogal). “Mas depois a empresa deu o badagaio e a gente teve de se vir embora”, conta. Acabou por ser um acontecimento feliz: “Foi aí que comecei a dedicar-me à agricultura. Foi a melhor coisa que aconteceu”.
Valongo está já ali. E o Rafa volta à conversa: “Já o vim ver uma vez. É pequenino, mas tem coragem. Demo-nos logo bem”. O cavalo, seis anos completos, está preso por uma corda num grande quintal onde dezenas de cães ladram a pedir atenção. É preto, duas manchinhas brancas no focinho, “e ainda vai crescer”.
— Vais dar homem nas minhas mãos!
Augusto fala com Rafa como falava com Castelo: “Quando te vires no centro da cidade, até te vais enganar”. E ele, que era meio agricultor desde a partida do animal, parece já se sentir agricultor inteiro. Com promessas que são um tratado sobre o afecto. “Cumpre o teu dever que tens aqui um amigo para te ajudar…”
Por Mariana Correia Pinto publicado in PÚBLICO