NASCIDO em Oliveira de Azeméis, em 1946, Augusto Baptista é um singular fotógrafo, um animador de projectos socioculturais ligados à expressão teatral e à valorização da Lusofonia, um designer gráfico, um desenhador e cartoonista – Humor das Multidões (2000), Opus 4 (2014) – mas sobretudo, a meu ver, é um escritor: Histórias de Coisa Nenhuma e Outras Pequenas Significâncias (2000), O Medo Não Podia Ter Tudo (2.ª ed. aumentada, 2014, com Francisco Duarte Mangas), O Caçador de Luas(2003), Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos (2004), entre outros títulos.
A escrita de Baptista tem-se desenvolvido num terreno de legitimação literária incerto em que convivem o conto, a micronarrativa e outras microcomposições em forma interrogativa, a que é dado o nome de «enigmas» – isto a par de textos no campo da reportagem, publicados em revistas e por vezes ilustrados com fotografias do próprio autor, durante anos fotojornalista de profissão. Peculiares são ainda os modos editoriais de circulação de alguma desta escrita – a de intenção literária – em edições de cuidada paratextualidade, quase integralmente concebidas, acabadas e difundidas pelo autor. Criador de livros de Tangram (uma das suas obras literárias mais belas e desafiantes, A Explicação dos Gatos com Figuras de Tangram, de 2016, é impressa num alfabeto de Tangram), Baptista revela-se um multifacetado artista, também visual, tendo por vezes como sombra tutelar outro criador nas margens do literário, Mário-Henrique Leiria. Navega assim nas águas de um humor negro que não desiste de denunciar um certo absurdo e não-sentido da existência humana. Contudo, interessará sempre, neste artista, analisar ainda os modos materiais que a sua escrita, muito elíptica, e aqui e acolá atraída pelas poéticas visuais, encontrou para chegar ao seu seleccionado público.
Consintam-se uns poucos destaques. Caracterizados por grande unidade compositiva, dado serem constituídos apenas por contos breves ou muito breves, O Caçador de Luas e o homem que propõem várias narrativas curtas, de assinalável beleza, não raro com muito de cinemático e sensorial, em que se acentua o lado poético-lírico, com os recursos expressivos que lhe são próprios, por exemplo no plano fónico-rítmico («Ouvido absoluto»; «Clausura»; «Génesis»; «Criação» e outras, no caso de O Caçador de Luas). Aliás trata-se de textos em que a fronteira entre conto breve e poema em prosa por vezes se dilui – e, deste estrito ponto de vista, pode-se dizer que a escrita do criador de Elucidário Oblíquo do Reino dos Bichos se aproxima da de outros autores, portugueses e estrangeiros, em que o mesmo acontece. Em «Silvilinguista», de O Caçador de Luas, enuncia-se, por outro lado, uma poética destes livros, ou pelo menos parte dela: «O texto parece-lhe ramalhudo. Corta as pernadas sem função, desbasta o excesso de folhagem, capa rebentos parasitas. Rigor perfeccionista, monda em volta. Na página, essencial, assoma a árvore.» (p. 65). Em «O homem que joga tangram» – de o homem que –, de alguma forma se alude uma vez mais a aspetos da mesma poética da depuração («E acha interessante o despojamento dos recursos, em contraste com a claridade de tanta silhueta engendrada com aquilo [: as peças de tangram].» (p. 67), além de se intuir certa dimensão autobiográfica no texto, comum a outras composições do segundo livro (por exemplo, «O homem que trabalha no jornal»).
Em certos momentos, o humor torna-se cáustico e cruel, o seu negrume atinge o limiar do trágico (rir ou chorar?) e vai crescendo o número de histórias breves que terminam com uma morte (num dos casos, o ponto de vista é o de um morto na urna durante os rituais fúnebres). Fica evidente o fascínio pelos bichos e por um aviltante transformismo surrealizante homem?animal (trazendo-nos à memória, mais uma vez, determinados contos de Mário-Henrique Leiria), como se a animalização caricatural da criatura humana fosse, no entanto, expressão de degradação interior. Perpassam questões como o declínio físico, o sobressalto do que se olha com estranheza num espelho, o absurdo do quotidiano, as miragens da sociedade de consumo e o seu reverso (lixo e pobreza), a deterioração das interações humanas, a tensa relação explorador/explorado, a memória do fascismo até, a violência sobre as pessoas, a solidão. Mas avultam também a necessidade de transformação do mundo, o livro e a leitura como paixão e viagem, a dimensão salvífica e criadora da arte, o onirismo, os prodígios da beleza feminina, da Natureza, da paisagem. Isto em composições cuja dimensão intertextual (relevantíssima na construção da leitura, como aliás quase sempre sucede nos textos literários muito breves) convoca, aqui e acolá, Camões, Jacob e Wilhelm Grimm (de «O Capuchinho Vermelho»), Raul Brandão, Afonso Lopes Vieira, a poesia de Carlos Drummond de Andrade, surpreendentemente, até, Agostinho Neto e o seu título Sagrada Esperança (1987) transportado para inesperado contexto.
Outro destaque: Gente do Porto (Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto, 2017), livro tocante e bem escrito, de alguém cujas convicções cívicas se inferem, desde logo, em subtis alusões políticas patentes, aqui e acolá, na prosa (e como não reler, nesta clave, outra obra: O Medo Não Podia Ter Tudo?). Enquadra-se num género pouco valorizado: entre reportagem, crónica e entrevista. Só que, em Baptista, há sempre um estilo, e uma reconhecível dimensão literária na escrita – que é viva, enxuta, precisa, tão imbuída de humor como de contido mas tocante lirismo. É difícil parar de ler Gente do Porto, não beber estes tipos humanos (vários ainda vivos), tornados memoráveis pelo traço escritural do autor. Compõe-se aqui uma galeria que abarca velhas figuras populares (da Ribeira, da Sé, da Baixa portuense), velhos ofícios, mas um ou outro novo, também: uma carquejeira das Fontainhas, um pedinte, um fotógrafo dos antigos, um tocador de trombone, um professor de anatomia, um apaixonado pelo fado (outros por gatos), um ardina, um ponto de teatro, um designer, uma pintora naïve, um especialista em medicina legal, um arquitecto inventor de prodigiosos objectos lúdicos, etc.. Há uma forte pulsão humanista e, ao mesmo tempo, social e até política no gesto de apresentar, descrever, conceder voz a esta gente. Muitas das figuras Baptista resgata-as, com indesmentível talento, do esquecimento, em toda a sua humanidade e pitoresco. Vai a tempo ainda de as salvar da desmemoriada voragem do «tsunami turístico», para recorrer à certeira expressão usada na nota prefacial. Restitui-nos, desse modo, um Porto de que ainda somos contemporâneos, mas um Porto sob ameaça de extinção.
Outro livro a distinguir é uma narrativa que representa uma incursão de Baptista no universo do livro para os mais novos. Estamos perante um homem de causas, e por isso não surpreende que a obra em apreço tenha constituído apoio importante à causa da construção do Hospital São João dos Pequeninos, o Joãozinho, como reclamado em 22 de Julho de 2018, na sessão de lançamento de O Lobo Mau no Hospital, editado pela Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto e pelo Centro Hospitalar de São João. Destinava-se o produto da venda a angariar fundos para a construção da nova Ala Pediátrica do Hospital.
O livro é de um encanto e de uma graça que nos comovem e divertem, tendo contado ainda com as ilustrações de Z. L. Darocha (1945-2016), conhecido pintor que ilustraria também livros para a infância. O seu registo caricatural, hiperbólico, bem-humorado e colorido constitui o complemento ideal da história escrita por Augusto Baptista, a qual parte, como se depreende do título, dos conhecidos contos de Charles Perrault e dos Irmãos Grimm, constituindo mais uma variação hipertextual da célebre narrativa da Menina do Capuchinho Vermelho (que outros, como Roald Dahl, Chico Buarque, M. A. Pina ou Luísa Ducla Soares também recriaram). Aqui, a floresta, por assim dizer, é o hospital de adultos, embora o Lobo Mau (nesta história, o paciente) comece por ser apresentado pela Menina ao Joãozinho, médico que representa o próprio hospital pediátrico. Não querendo resumir o enredo, apenas direi que o Lobo, a Avozinha e o Caçador terminam, com Joãozinho, em animada dança e cantoria, uma vez curado o primeiro. Os papéis tradicionais estão, claro está, parodicamente invertidos: Capuchinho é activa; o Lobo é quem está em carência. De salientar ainda a irrepreensível concepção gráfica de João Bicker, conhecido designer e professor universitário, que faz desta obra um belo objecto para todos os públicos, crianças ou adultos.
Eis, pois, alguns poucos exemplos de uma obra multifacetada, sobre a qual tive já ocasião de escrever o ensaio, mais desenvolvido, «Da escrita e da sua materialização: Augusto Baptista», publicado em Forma Breve, n.º 14 – O Conto: o cânone e as margens [1] – trabalho de que reutilizo no presente texto algumas passagens.
Mas não gostaria de concluir sem lembrar que Augusto Baptista é também um interessante artista da fotografia. E por isso comentarei quatro fotos suas, partilhadas em 2018, e que aqui designarei a partir do motivo central da imagem (utilizo negritos nessa designação). Comum a todas elas: a presença do Porto, cidade que Baptista adoptou como lugar principal de residência, e que tanto inspirou quer a sua obra visual quer a literária.
Do ponto de vista antropológico e psicológico, a mais expressiva dessas fotos é porventura a do homem só, de costas, descendo a rua na Sé – visualmente também muito especial, em seu jogo de luzes, cores e sombras. Mas a estátua do velho Arnaldo Gama, convertido em personagem de vinheta fotográfica, como numa banda desenhada (ou seja, transformado em personagem de história de ficção), cogitando abstraído, enquanto à volta o mundo todo passa para segundo plano, se apaga, ou antes, se esfuma, é também um caso singular. E com algum humor, para quem o queira ver.
Quanto à imagem da gaivota sobre o céu do Porto, quem lhe pode escapar? Nenhum fotógrafo. A arte é isolá-la, dar-lhe autonomia, liberdade, não a deixar apenas a mergulhar no abismo do velho Porto, mas a revelar a sua grandeza de ave-poeta no «confronto» com a velha cidade, situada em plano inferior. Curioso, porque a gaivota não está/não anda sempre em bando. Por vezes, isola-se e, na sua solidão, parece desfrutar do cenário, quer pousada numa ameia ou numa clarabóia quer em voo. Algo disso acontece também aqui. Por outro lado, desprende-se desta fotografia uma atmosfera de curiosa familiaridade ave/cidade (como quem se não cansasse de contemplar), familiaridade essa que não consigo, nem quero, explicar.
E, last but not the least, um Porto ao escurecer que quase poderia ser impressionista, mas não é, sem contudo deixar de ser uma belíssima aguarela (também as há assim escuras) em registo fotográfico, sublinhando o que existe de peso, leveza e mistério nesta cidade onde é um luxo viver, e ter o dom de ver e de escutar, como acontece com Augusto Baptista.
Quatro exemplos, em suma, de (im)pura beleza. (Im)pura, porque estas fotografias não são pura beleza visual, são também lirismo e inquietação, dor e enigma, e algo mais que não sei nem desejo – mais uma vez – explicar.
Por José António Gomes publicado in A Escola da Noite
Nota
[1] Forma Breve, n.º 14, Universidade de Aveiro, 2017, pp. 257-269. O ensaio em causa está disponível em: https://proa.ua.pt/index.php/formabreve/article/view/382