CHEGO às 12: 45, estão a chamar os das 11:30. A fila dá duas voltas à rua. O anseio da sombra faz com que haja grandes concentrações debaixo das árvores e vastos espaços de interregno no passeio. Quando chamam grupos, há grandes avanços e eu tenho sorte porque num desses solavancos paro no resguardo de uma árvore. Sento-me no chão a ler. A partir daí, calha-me esperar ao sol, recorro ao livro primeiro e depois ao casaco para proteger a cabeça.

Esta geração dos 40 e dalguns 50 é a que se fechou em casa com crianças e adolescentes, semanas a fio, desejando um pouco de terreno aberto e céu azul. E agora está aqui ao sol, suspirando por ar condicionado, nutrida do mesmo sentimento de estar a fazer a sua pequena parte.

Uma hora depois, entramos para o recinto do quartel. O que ninguém sabia, nem os repórteres no exterior noticiavam, era que a bicha lá dentro era bem mais extensa.

Quantas pessoas cabem em dois quilómetros de espera?

“Porque é que não sombrearam o caminho?”, a voz não é a minha porque não tenho companhia, estou só na longa espera. A impertinência, porém, pertence-me também.

A maior fila da minha vida para o maior desafio existencial do século.

O livro que trouxe não me prende a atenção. Oh, se tivesse sido um dos que me provocou a febre Ferrante das últimas semanas, as horas ao sol passariam com mais complacência!

Sento-me em todos os rebordos de canteiros, pedincho duas bolachas à pessoa atrás de mim. Estou apenas com o pequeno-almoço e já passa das três. Invejo os que conversam com quem já conheciam ou passaram a conhecer, mas só anseio silêncio.

O dever cívico e a sensação de estar a tentar conter uma hemorragia bebendo o sangue.

“Se soubesse que me esperava isto, não tinha ficado”, diz um homem quando já estamos divididos em duas filas: mulheres com menos de 50 para um lado, homens e mulheres mais velhas para outro. E se soubesse o que era o casamento, o que era educar um filho, o que era agarrar-se a uma carreira, teria permanecido?

Chega a minha vez, passa das quatro. Desejo um chocolate e um toque mais profundo do que o da agulha. Quem me dera dormir.

Na sala do recobro, contudo, a cascata de vozes é uma tortura. Nas mãos telemóveis. Nas minhas um livro que teimo em não ler. Deu-me para escrever isto.

A minha sombra no passeio lá fora. Alucinando, cumpro a minha parte?

Percorro a fila em sentido oposto. São quase cinco. Encontro o Jorge e conversamos um pouco, mas os olhos humedecem-se-me com a fome e a fraqueza. Ele está com um livro debaixo do braço e lembro-me de fazer a contabilidade: ao todo, na gigantesca serpentina, vi 10 livros. A Proteção Civil, que foi chamada ao local, fez outro tipo de contas e já anda a distribuir garrafas de água.

Milhares de pessoas aguentam ao sol.

Por falar em solidão, alguém viu o São João?

Por Daniela Costa

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