FOI difícil apanhar Carlos Tê para uma conversa que se queria longa. Não por má vontade do letrista, mas por culpa dos ensaios a propósito do espectáculo de hoje no CCB: “Carta Branca a Carlos Tê”, com Rui Veloso, Cristina Branco e Clã a cantar as letras de Tê. Fomos ter com ele à casa-estúdio de Rui Veloso, que até nos deixou assistir aos últimos minutos do ensaio, antes da pausa para almoço. Só ficou Carlos Tê, de ar sério, mais por timidez do que má disposição, que rapidamente perdeu. Contou-nos como escreveu uma carta ao realizador Stanley Kubrick e a Neil Young, de como já quase não ouve música e do seu amor irracional pelo Futebol Clube do Porto.
Chama-se, na verdade, Carlos Monteiro. De onde vem o Tê?
Tem a ver com a minha adolescência. Eu era muito enfronhado na música e tentava catequizar os meus amigos com as coisas que saíam, as novidades, os músicos, as tendências. Era um catequista da música pop. Dava–lhes secas e então chamavam–me Tarado Musical. Depois o ”M” caiu, ficou o ”T” e nunca mais me livrei dele, até hoje.
Comprava muitas revistas e jornais de música?
Comprava jornais ingleses, “New Musical Express”, “Sounds”, ia à Livraria Bertrand, que na altura era a única que os tinha. Era uma pessoa dentro do que se passava lá fora, o que também era uma maneira de viajar para o exterior sem nunca sair de cá. Eu e a maior parte dos jovens da minha geração sentíamo-nos um bocadinho nascidos no sítio errado.
E sempre foi um tarado por música ou houve alguma banda ou artista que o tenha despertado?
Foram as canções da rádio, o que traziam de inconformismo, revolta juvenil. O Portugal que eu conheci na minha adolescência era muito pobre e conformado. Tudo o que se aprendia era “faz sempre o que te dizem mesmo que seja mal, nunca respondas, sê bem-comportado”. Era um país absolutamente conformista. As canções de rock e pop tinham apelos de libertação e mudança.
Qual foi a primeira canção que escreveu, lembra-se?
Devia ter uns 15 anos e escrevi em inglês, um inglês muito macarrónico. Nem me lembro do que falava, mas devia ser uma coisa muito idiota. Acho que tinha qualquer coisa a ver com life, “oh life”, era uma coisa assim.
Gostava de ser músico?
Sim, o que eu gostava era de ser músico. Só que na altura não era fácil, para se ter uma guitarra era preciso dinheiro. Só consegui comprar uma para aí aos 17 anos e ainda por cima era daquelas mais baratas que empenou rapidamente e que se tornava impossível tocar nela. O meu sonho de músico esfumou–se muito cedo.
Vem de uma família modesta. Os seus pais queriam que tivesse um emprego estável e sem grandes ambições. Como é que isso o marcou, já que era tão inconformado?
Eu era inconformado espiritualmente. Criei um mundo interior de grande revolta, que se manifestava naquilo que lia, mas no resto da vida tinha de ser certinho, tinha de trabalhar, tinha de ser. Era fundamental à sobrevivência. E acho que as pessoas têm o dever, antes de mais, de assegurarem a sua subsistência. Eu pelo menos nunca consegui viver nesse fio da navalha, sem saber o que vou ter amanhã.
Tem a ver com essa educação que teve?
Tem a ver com a ausência de retaguarda. E se correr mal, como é que é? Tive de lidar um bocado com isso e esse espectro sempre me incomodou um bocado. E a independência: uma pessoa poder ter 20 escudos para ir ao cinema, comprar um disco ou um livro. Isso é liberdade e compra-se, com trabalho.
Qual foi o seu primeiro emprego? Que idade tinha?
Tinha 14 anos. Hoje é trabalho infantil, veja lá.
Deixou a escola por opção sua?
Depois do ciclo preparatório fui para uma daquelas vias profissionalizantes, industrial, não tinha nada a ver comigo, não dava mesmo, eu e os materiais somos incompatíveis. Fui para o curso de montador de serralheiro. O meu pai gostava que eu fosse para a indústria, porque ele trabalhava em automóveis, os meus tios todos também. Ao fim de um ano saí, não dava. Achei melhor ir trabalhar.
E qual foi o seu primeiro emprego?
Fui para um escritório de automóveis, lá está. Mas poupado da ferrugem! A minha mãe fazia questão, eu era uma espécie de menino protegido da minha mãe.
Um pequeno príncipe, portanto.
Exactamente. E elas, a minha mãe, avó e tia, acharam que eu devia ser poupado ao destino dos outros: a ferrugem. Este não vai para a ferrugem. O juízo feminino. E devo-lhes isso. O meu pai contrariado, lá aceitou. Elas fizeram uma barreira que ele não teve como dar a volta.
Em 1974 foi a Londres. Como é que foi ver uma realidade totalmente diferente da portuguesa?
Fui logo a seguir ao 25 de Abril, em Outubro de 74, duas semanas. Foi uma grande ansiedade e entusiasmo. E depois aquela coisa de chegar a uma cidade acabada de sair dos anos loucos, dos anos 60, e ser tudo como se imaginou, o que às vezes é difícil, as coisas corresponderem às expectativas. Andava por lá maravilhado. Parecia que estava numa série dos vingadores. E depois os concertos, os discos…
Comprou muitos discos?
Comprei imensos, na altura a libra estava baixa e o escudo era poderoso. Lembro-me perfeitamente de ter gasto 2 mil escudos com a viagem, com tudo, de ter trazido coisas, casacos daqueles esquisitos que não se compravam cá, flower power e não sei quê.
E foi sozinho. Quando voltou era o maior para os seus amigos, não?
Um bocado… Era “este gajo foi a Londres, tirou o certificado cosmopolita”. Mas Portugal também já estava diferente. Aquela atmosfera do pós-25 de Abril foi um momento único da história do país.
Era tudo novo e excitante?
Eram muitas coisas a acontecer, ricos a misturarem-se com pobres; os ricos queriam ser pobres; os pobres queriam ser ricos; toda a gente a misturar- -se, muitos espectáculos, teatro, música, cinema, ciclos, tudo o que estava para trás. Tudo o que não tinha acontecido antes, ao mesmo tempo. Um jogo brutal de informação. Foram anos irrepetíveis.
Esteve 16 anos no Banco de Portugal. O que fazia?
Trabalhava com letras, lideranças… A própria banca também mudou imenso, hoje em dia isso é um bocado obsoleto. Arqueologia da banca.
Nessa altura tirou o curso de Filosofia.
É verdade, tinha 24 anos. Aconteceu tudo ao mesmo tempo. Estava a entrar para Filosofia e o primeiro disco a sair. Eu gostava mais de História, já não me lembro porque é que fui para Filosofia. Acabei o curso e nunca fiz nada com ele. A única saída era dar aulas e isso nunca me passou pela cabeça.
Escreveu “Chico Fininho” para provar que rock e língua portuguesa não se davam?
É verdade. Escrevi aquilo em 77, a música e a letra, foi um bocado… era como uma chalaça. Aquilo cantava-se nas festas de anos e dava um grande sainete, as pessoa gostavam muito do “Chico Fininho”. Tinha uma série de elementos que lhe dava alguma graça, o ritmo de blues, as pessoas gostavam.
Saiu tudo ao contrário.
Foi porque na altura havia espaço para isso. Em português não havia nada assim. E pronto, funcionou. Estranho, mas é assim.
Mas ficou feliz, surpreendido?
Muito. Mas os tempos eram outros, hoje não sei se alguém repararia naquilo, é uma coisa mais banal. Na altura aquele tipo de música, com uma filiação anglo-saxónica, que de algum modo sintetizava o que várias gerações tinham ouvido, incluindo eu e o Rui. A única diferença é que era cantada em português.
Escreveu de uma vez e sem emenda as canções do “Ar de Rock”. Estava inspirado?
Zero de inspiração. Tinha a ver com coisas práticas. Alguém que disse “olha, é preciso escrever mais dez e os gajos gravam o disco”. Um disco, isso é incrível. Para mim o pensamento era: o que é que me pode acontecer? Nada. Vou escrever sobre quê? Seleccionei uma série de assuntos. “A Rapariguinha do Shopping” foi porque tinha acabado de inaugurar o primeiro shopping no Porto, ia tudo passear ao shopping. As coisas surgiam mentalmente. Escrevia à mão e depois passava à máquina. Nesse processo, alterava algumas coisas. Mas depois de estar na máquina não mexia mais.
E os seus pais, o que diziam?
Os meus pais nem sabiam, não faziam ideia. Acho que nem perceberam muito bem o que se estava a passar. Lembro-me da minha avó quando dei uma entrevista para o “Primeiro de Janeiro”. Ela via muito mal, era muito velhinha. “Já viste o teu neto no jornal?” Olhou para aquilo, pensou que eu era o Mário Soares. Ela nem queria acreditar: “Mas o que é que tu estás a fazer no jornal?” Tentei explicar mas desisti, dava muito trabalho.
Dá por si a pensar em formato de letra de canção?
Já houve um tempo em que pensei mais, de facto, agora já não penso tanto. Havia sempre qualquer coisa: talvez isto dê para fazer uma letra. Andava sempre com um periscópio, não só para captar a ideia mas também para a processar.
Desistiu das letras para canções?
Não, só que faço menos. Já fiz muita coisa. Hoje a indústria discográfica é outra coisa. As canções já não têm o mesmo papel que tinham. Hoje em dia os discos só servem para os artistas andarem em concertos a promover-se. São quase como cartões-de-visita. Vai para os iPods, os iPhones, para sincronizar novelas… uma série de coisas. Não me apetece estar a compor de propósito para isso. Sou da geração do álbum e isso perdeu–se um bocadinho.
Já escreveu três musicais. Como nasceu essa vontade?
É uma forma de me ligar às canções, não vão para disco, vão para ali. O primeiro foi o “Cabeças no Ar”, tem a ver com o universo da escola, abandono escolar; o segundo, “Amor Solúvel”, era um projecto antigo, um grupo imaginário que eu tinha criado, os Pepsonautas. Canções meio Kitsch, influenciadas por músicos como o Burt Bacharach, para o lado do easy listening, mas com alguma graça. Nunca fiz e as canções ficaram ali e achei que uma boa saída para elas seria um musical. E foi óptimo. Foi excelente. Divertidíssimo, as pessoas adoraram.
Para além disso já escreveu um romance. Dá-lhe prazer esse tipo de escrita?
Dá, muito, mas é muito mais trabalhoso. Ando com outro em mãos para aí há seis anos. Pego e digo “não dá”, depois volto e acho que está bestial, depois é “ai Jesus” [põe a mão na testa e abana a cabeça]. Vai haver um dia em que vou ter de me decidir. Um romance é um pequeno mundo que uma pessoa constrói, depois parece que até se tem dificuldade em ver-se livre dele. Por isso é que os grandes escritores têm os editores, “meu amigo, como é que é?” Eu como não tenho isso posso engonhar e engonhar.
Tem um livro dedicado ao Porto, com ilustrações de Manuela Bacelar, “Cimo de Vila”. O que é que o Porto tem para o trazer tão apaixonado?
Não tem nada de especial, é só a minha cidade. A ideia até partiu da Manuela. Ela tinha uma série de ilustrações sobre o Porto, muito bonitas, e desafiou-me a escrever. E eu pensei, lá vou eu reincidir e lá vão as pessoas dizer que tenho uma coisa com o Porto. Existe um bocado essa ideia só porque eu escrevi o “Porto Sentido”. Eu uso muitas vezes a cidade como local. Se eu escrever uma canção que tenha pessoas lá dentro, já agora dá-me jeito que tenha um local. Os americanos fazem o mesmo, o Springsteen fartou-se de escrever sobre Filadélfia, o Neil Young escrevia sobre Ontário, e os brasileiros também fazem isso. A música popular tem esse lado: dizem logo de onde vêm, não têm vergonha. Eu adoro isso. É uma tradição que eu apenas me limitei a tentar seguir.
O Carlos tem também um problema, que se chama FCP.
Exacto. Já tive mais. Problema era quando eu tinha 16 anos, porque era tão ferrenho como sou hoje e o Porto só perdia. Isso é que era um problema. Aquela coisa de entrar no estádio, jogar com o Benfica e pensar: quantos é que vão ser hoje? Agora é ao contrário.
E chorava e tudo?
Chorar não, mas ficava super-telhudo, que era quase sempre. Agora é só alegrias. Mas o futebol tem esse lado irracional que eu gostava de resolver. Quando fico alegre é mais normal, mas quando acordo ao outro dia, maldisposto, penso “mas o que é que está mal?” Depois lembro-me: perdemos ontem. É com o FC Porto e com a selecção.
E vai ao estádio?
Agora já não vou tanto, sou mais um espectador de sofá, mas nunca falho. E se não vir, gravo, que é ainda mais doentio, tenho consciência disso. E procuro não saber o resultado, claro. Mas se souber, vejo na mesma, para ver os lances e como é que aconteceu. Isto não tem explicação.
Escreveu uma carta a Neil Young. Que idade tinha?
Uns 15 anos, foi quando saiu o “After the Gold Rush”. Juntamente com o “Pearl”, da Janis Joplin, foram os primeiros vinis que comprei, adorados. E escrevi ao Neil Young, sobre as letras, porque havia ali qualquer coisa. Mas também escrevi uma carta, com um amigo, ao Stanley Kubrick por causa do álbum “Peregrinação”, do Fausto. Escrevemos a dizer que havia um grande disco português que dava um grande filme. Havia uns rumores que ele poderia estar interessado em fazer um filme sobre a “Peregrinação” do Fernão Mendes Pinto, então mandámos o vinil do Fausto, com as letras traduzidas e uma sinopse para ele perceber o que é que estava ali em causa, qualquer coisa de big, ele que se pusesse a pau, que aquilo valia a pena. Nessa altura acreditava que valia a pena dar um jeitinho ao destino.
Por Diana Garrido, publicado in http://www.ionline.pt/
§
Carlos Tê conta como escreve as letras que tantos cantam
15h-16h: uns dias antes de mostrar no CCB (parte d)a sua obra, Carlos Tê vem contar-nos como é que faz as letras que tantos cantam.
Não é, aliás, a primeira vez que letristas vêm ao programa explicar-nos esse fascinante processo de construção (Tiago Torres da Silva e Pedro Malaquias já cá estiveram). Carlos Tê será, provavelmente, o mais conhecido letrista português (além disso, é escritor e cantor)
Publicado por João Paulo Meneses publicado in http://www.tsf.pt/blogs/maiscedo/archive/