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Cheira bem, cheira a Paupério

Cheira bem, cheira a Paupério

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OS BISCOITOS têm fama e o povo de Valongo o proveito de respirar perfume de açúcar há quase 140 anos. A fábrica Paupério produz nas máquinas dos trisavós e está a entrar na sexta geração. A equipa que fez esta reportagem foi unida pela gula, com três repórteres (escrita, fotografia e vídeo) convocados pela memória do sabor que lhes estala na língua ao ouvir a palavra mágica: Paupério. «Vai ser fácil, é só seguir o cheiro», resumiu o fotojornalista Adelino Meireles, à porta do paraíso do qual conhecíamos apenas o bendito fruto – os biscoitos. Entre tonelada e tonelada e meia de sublimes, aromáticos e intensos biscoitos saem, por dia, daquela fábrica que é provavelmente o segredo mais bem guardado de Valongo, um subúrbio a dez quilómetros do Porto.

A terra não é conhecida por aí além, a não ser pelos que sabem da sua fama de terra de pão e lousa, dos abundantes montes onde se pratica BTT e escalada, e da bravura da sua equipa de hóquei em patins. Mas há mais de um século que os valonguenses têm por hábito o que para muitos será considerado privilégio: todos os dias são abençoados pelo aroma dos biscoitos Paupério a sair do forno.

No centro da antiga vila, que mantém o ar de vila, cheira bem, cheira a Paupério. Na pequena loja da fábrica, numa ladeira de paralelos que liga a rua central à igreja matriz, entram constantemente passantes seduzidos pelo cheiro doce e denso que alcança todo o quarteirão. «Ó mor, o que é que está a sair? Bota-me meio quilo.» E bota-se no saco daquilo que houver, que todos os dias se fazem biscoitos diferentes. Há quarenta variedades, vários tipos de sortido, bolo-rei e pão-de-ló na sua época e ainda marmelada e geleia. Há ainda o raleiro, um sortido indistinto de pedaços de biscoitos que saíram partidos do forno, que se vende a três euros o quilo.

Supõe-se chamar-se a fábrica Paupério por ser esse o apelido de um dos fundadores – António Melo de Sousa Paupério -, que estaria já no ramo da moagem e venda de farinhas, mantido com vários moinhos de água no rio Ferreira, na serra de Valongo. As robustas farinhas valonguenses chegaram a ser premiadas nos Estados Unidos, mas poucos anos depois da fundação a indústria passou a dedicar-se aos biscoitos e apenas com Joaquim Figueira ao leme. Pela ladeira da Rua de Sousa Paupério há sempre alguém que vai ao cheiro, e a promessa não desilude – não é à toa que, 139 anos depois de ter passado das farinhas aos biscoitos, a Paupério se mantém a vender de Trás-os-Montes ao Algarve.

Muitas coisas mudaram, o pavilhão de fabrico já não tem dezenas de trabalhadores, no catálogo já não há biscoitos chamados Mocidade ou Legionários, a acompanhar o toque do regime político, nem a empresa tem representações nas ex-colónias ultramarinas de Angola, Moçambique e Guiné. Dirigida pela quinta geração, a entrar na sexta, a Paupério está a conquistar o mercado gourmet , abriu dois pontos de venda, pondera uma loja no Porto e começa a pensar em exportação a sério. O que nunca mudou, nem há de mudar, é haver uma fábrica que emana cheiro a açúcar, na estreita ladeira de paralelos, a fazer biscoitos conforme manda o antigo livro de receitas dos finais do século xix .

O livro de receitas não está guardado a sete chaves, como seria de esperar, mas sim depositado no Arquivo Histórico Municipal, assim como outro espólio documental da empresa, onde existem melhores condições de conservação. «Qualquer pessoa o pode consultar», assinala Eduardo Sousa, o atual presidente da Paupério, fundada pelo seu trisavô, sem temer que alguém copie as receitas. «O meu avô dizia que isto se faz da mesma forma, toda a gente sabe que é farinha e açúcar, mas depois de estar tudo misturado, eu vou lá com uma varinha mágica e…», conta, esfregando os dedos como se deitasse pozinhos de perlimpimpim num caldeirão.

Não há de um nem de outros, desmistifica Eduardo. Os únicos pós que ali andam são farinha e fermento e o mais parecido com caldeirões que se encontram são as enormes tinas onde se batem as massas. E ainda as cubas das máquinas, algumas quase tão antigas como a fábrica, que obrigaram Bruno, encarregado de produção, 22 anos, a arregaçar as mangas e aprender a desempenar aqueles prodígios de ferro onde não há bitesbytes , mas muitas rodas dentadas. «Tirei um curso de Eletrónica, mas nestas máquinas antigas há muita mecânica. Quando surge algum problema, dá muita dor de cabeça perceber o ponto onde está a falhar. Já estou aqui há três anos, já me habituei, mas no início foi complicado dar conta de tudo», conta-nos o jovem sorridente e enfarinhado, que não precisa de usar perfume, porque sai do trabalho a cheirar a baunilha e a chocolate.

É nas mãos dele, que vemos a desempanar a máquina embaladora de wafers , que está uma parte do segredo. Outra parte está nas mãos de Marina, que começa às sete da manhã a partir dezenas de ovos e a pesar quilos de farinha, açúcar e manteiga para as massas que depois as mãos das colegas hão de trabalhar. E há mais quotas do segredo dos biscoitos Paupério a nomear: 26 para sermos específicos, tantos quantos os trabalhadores da fábrica. O segredo, assinala Eduardo, está nos biscoitos que são feitos por pessoas. A que ali trabalha há mais tempo é a embaladora Maria Júlia, de 55 anos, na casa desde os 14 anos. Pelas suas mãos, que aqui tudo passa pelas mãos de alguém, podem passar diariamente quatro mil pacotes de bolachas e biscoitos. É regra da fábrica que toda a produção do dia é embalada e, em média, fabrica-se ali uma tonelada de biscoitos em cada jornada, podendo chegar a tonelada e meia.

Dentro da fábrica, a alimentar de massa a barriga das máquinas antigas, as mulheres são a larga maioria. Estão muito concentradas, porque fazer bolacha Maria exige atenção total. É preciso pegar numa grande quantidade de massa amarelo-clara, enfarinhá-la constantemente enquanto se procura estendê-la na passadeira rolante da comprida máquina que tende a massa, recorta nela os círculos da bolacha e depois a eleva e deixa cair, como uma cortina cheia de buracos redondos, para que volte a ser amassada e se repita o processo. São precisas sete a oito pessoas na operação, desde a entrada da massa até à retirada dos tabuleiros com as bolachas a fumegar, do outro lado da enorme máquina, com vários metros de comprimento.

«São mais caras do que as Maria industriais, mas o sabor e a qualidade não têm comparação», assinala Eduardo. Vendem-nas em pacotinhos individuais, para abastecer escolas, assim como a bolachinha de cacau em forma de flores – a Princesa Negra -, que os miúdos adoram. Os miúdos e não só – é o biscoito mais vendido da Paupério. Foi por causa dos pacotinhos de 100 gramas de Princesa Negra que se fez um dos maiores investimentos em máquinas da era moderna da fábrica – uma embaladora automática, cujo revestimento a inox destoa do tom claro que domina a fábrica. Para felicidade do eletrotécnico Bruno, na máquina nova há um ecrã e um teclado, números luminosos, e manivelas nenhumas. A falta de precisão da quase centenária embaladora fazia que muitos pacotes levassem gramas a mais, pelo mesmo preço. «Ao fim de um ano, oferecíamos cinco a dez toneladas de Princesa Negra. Com o que se gastava em película de embalagem e com o que se perdia em biscoitos, deu para comprar uma máquina», explica Eduardo Sousa.

Uma outra máquina de inox destaca-se do charmoso ambiente centenário, mas perdoamos-lhe o contraste pelo bem que faz. Chama-se túnel do chocolate e lá dentro alguma magia acontece, com o abracadabra lançado pelos dedos velozes de Marlene, que ali deposita pequenos biscoitos cuja forma lembra fósseis marinhos. A dança que a risonha doceira executa está mesmo a pedir contexto musical, talvez algo ao estilo vaudeville , com bom humor e energia. Bruno, que já tinha avisado que «aqui dentro, todos fazemos um pouco de tudo», acabou de retirar película presa na embaladora das wafers e já está ali a deitar pepitas de chocolate com alto teor de cacau, que se derretem no jorro de chocolate que cobre os biscoitos. No final da passadeira, eis a magia: estão transformados em Lenas, que nasceram porque um dia alguém se lembrou de cobrir de chocolate os biscoitos mais tenros do cardápio, os Conventuais. Eduardo deixa-nos provar as Lenas, mornas, perfumadas e crocantes.

A produção é planeada semanalmente, tendo em conta o tempo que cada massa leva a fazer ou a cozer e o trabalho que cada biscoito dá, a ocupação das máquinas. «Numa unidade normal, podia pôr-se tudo isto em linha, mas aqui não é possível», assinala Eduardo, para demonstrar porque é tão importante planear cada semana. As massas vão das chamadas duras às líquidas, e cada tipo de massa se faz num dia próprio. Há depois outras variáveis, como o clima, que pode influenciar o tempo que as massas demoram a ligar, esclarece Marina, que sonhou ser secretária e cabeleireira e agora imagina-se doceira toda a vida.

Há biscoitos que são quase integralmente feitos de forma manual e exigem técnica apurada ou tempo de levedura. Os biscoitos de champanhe, que tanta fama tinham, foram descontinuados porque a pessoa que os fazia se reformou. «Não se podia fazer mais de quarenta quilos por dia», assinala Eduardo, que está empenhado em voltar a fabricar estes biscoitos, assim como algumas glórias do passado. Entre eles, as roscas de manteiga, que antigamente as mães davam aos bebés, esmagadas com leite, por serem considerados bons substitutos das papas.

Com a boca doce, procuramos absorver toda a magia de estar dentro de uma fábrica onde se faz biscoitos como se fazia há cem anos, sem perturbar os seus gestos, observando, encantados, a ritmada coreografia que estas mulheres de bata e touca branca fazem. Parece mesmo um filme, se os filmes cheirassem. Há um momento que ficamos apenas a desfrutar dos sentidos. É como se inspirássemos num minuto todo o cheiro a açúcar e a chocolate que cabe numa vida, como se estivéssemos diante da essência da gula. Depois, é o som antigo, um som mecânico que nos remexe na memória da infância, sem os apitos tecnológicos nem os piares dos botões, uma banda sonora limpa e calorosa, na qual podemos trincar os acordes.

Naquele mesmo pavilhão, chegaram a trabalhar mais de cem pessoas, quando a produção era ainda menos mecanizada e poucos tinham alvará para produzir bolo-rei. Na Paupério, chegava a trabalhar-se sem parar na altura das festas, em quatro turnos contínuos, com os enormes fornos de porta redonda e pesada, alimentados a carqueja, a cozer pão-de-ló e bolo-rei de dia e de noite. Nos anos de 1970, faziam trinta toneladas de bolo-rei 15 dias antes do Natal, a tempo de abrilhantarem as mesas transmontanas. «Chegavam lá já um bocadinho duros, mas as pessoas não se importavam», diz Eduardo. Agora, os mesmos fornos, de boca recortada a tijolos na parede, ligam-se pelo Natal e pela Páscoa e já não são alimentados a carqueja, mas a gás. Faz-se, no máximo, tonelada e meia de bolo-rei, que continua afamado nas terras em redor. A secção de embalamento era, nesses anos, uma sala cheia de gente; agora, é o reino de Maria Júlia e recebe reforços nas alturas de maior produção.

Quando Eduardo, o irmão e o tio herdaram a gestão da fábrica, havia 56 trabalhadores e uma contabilidade tremida. Ao trocar o emprego certo nas Finanças pela Paupério, a escolha mais difícil foi dispensar metade dos operários. Foram os que estavam mais perto da reforma, mas o gestor tinha quase tudo para fazer, depois de o avô Eduardo Joaquim – «que foi, como muitos do seu tempo, um homem do regime», define Eduardo -, ter travado o crescimento, com medo do que a democracia pudesse trazer. «Estagnou o investimento, não modernizou as máquinas. Morreu em 1987 e viveu 13 anos, depois do 25 de Abril, com medo de que lhe tirassem tudo. Expropriaram-lhe uma quinta para construir a escola secundária de Valongo e ele ainda com mais medo ficou. Manteve a empresa em ponto morto durante vinte anos», disse Eduardo Sousa, que assumiu a gestão a tempo inteiro em 1996.

«Éramos líderes de mercado, vendíamos de Trás-os-Montes ao Algarve, tínhamos um depósito em Lisboa. Mas nesses vinte anos nasceram novos concorrentes, que trabalhavam a todo o gás e nos foram ultrapassando. O meu pai sempre fez pressão para modernizar os processos de produção, mas enfrentou a resistência do meu avô», recorda Eduardo. Coube-lhe a tarefa difícil de partir um paradigma. «Tive de sanear financeiramente a empresa e andei muitos anos a amortizar esse investimento.» Às filhas, Ana Sofia, enfermeira, e Sara Carolina, estudante de Fotografia, de 26 e 21 anos, caberá iniciar a sexta geração com outra postura empresarial.

O marido de Ana Sofia, Hélio, deu o seu contributo à empresa. «Os engenheiros são gestores inquietos, com o meu genro começaram as ideias, os novos produtos, a nova maquinaria», diz Eduardo. A benjamim Sara lembrou-se, no Natal passado, de recuperar as antigas latas onde os biscoitos eram vendidos e lançar uma série de latas de sortido revivalistas. Eduardo ficou cético, mas as bonitas latas foram um êxito na época natalícia e continuam a vender-se bem. A ideia é lançar duas novas latas todos os anos, para coleção. A nova geração arrojou também no design , melhorando a imagem gráfica e criando novas embalagens, de inspiração rétro . Chegaram a tempo de entrar na passadeira vermelha da tendência gourmet . A Paupério abriu lojas em Ermesinde e Rio Tinto, mas ainda não tem ponto de venda próprio no Porto. «Andamos com muita vontade», refere Eduardo. Encontrar canais para exportar para o mercado da saudade é outro projeto. Atualmente, só se chega – e pouco – a França.

Além da lida empresarial, a família tem sonhos de outro calibre: criar um Museu da Bolacha e do Biscoito, no primeiro andar da fábrica, onde se recriem antigas zonas da fábrica, com os móveis, máquinas e outras peças que estão guardadas no armazém. Através de fotografias antigas das salas da administração e de embalamento, será possível recriar o ambiente da época. Já para os biscoitos, o projeto é mantê-los sempre tal e qual como sempre foram.

A tosta Rainha, o bolo-presidente ou como a Paupério viveu a história

D. Amélia de Orleães, a futura rainha D. Amélia, foi responsável pela criação de uma tosta doce que a Paupério fabrica até hoje. Chama-se tosta Rainha, mas começou por ser tosta princesa porque era ainda princesa – e duquesa de Bragança – a mulher do príncipe herdeiro D. Carlos quando o casal visitou o Porto, em 22 de maio de 1886. A visita foi celebrada com um banquete real, para o qual foi pedido à Fábrica Paupério que produzisse uma tosta doce, algo que a princesa, de origem francesa, apreciava muito. E assim nasceu a tosta Morena que mudou o nome para tosta Rainha quando D. Amélia subiu ao trono português, em 1889.

A tosta Rainha atravessou incólume a atribulada transição para a República, mas o bolo-rei não. Temendo represálias dos republicanos, o administrador da Paupério, Joaquim Carlos (filho do fundador e bisavô de Eduardo), mudou-lhe o nome para bolo-presidente. «Depois percebeu que eles pouco se importavam com o nome, queriam era comê-lo», conta Eduardo Sousa. Durante o Estado Novo, surgiram biscoitos com nomes inspirados pelo regime, como Mocidade, Legionários e Coloniais, que deixaram de ser fabricados.

Por Dora Mota in http://www.jn.pt/revistas/nm

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