1. O mundo de Daniel Faria é o mundo do símbolo, um mundo em que existe o tudo e onde tudo é lançado conjuntamente, um mundo onde há um centro para o qual convergem todos os sentidos: «Desejo o útero de tudo» (273) (*), escreve o Poeta, colocando-se na posição daquele caminha para esse centro. Nesse mundo, onde o sentido é concebido como absoluto, a escrita nasce da atenção e da escuta, que são atitudes daquele que está em silêncio, não daquele que fala ou escreve. Os poemas de Daniel Faria apontam muitas vezes para um tempo e uma experiência que lhes seriam anteriores: antes do poema, haveria esse silêncio meditativo e a escuta que ele propicia, haveria a condição daquele que ouve, ou vê, mas não fala; só depois viria o poema, que, ao resgatar do silêncio o saber daquele que ouviu, ou mais precisamente daquele que viu uma linguagem que excedia a palavra, resolveria a incompatibilidade entre a escuta e a fala. Por consequência, nos poemas, nós encontramos, então, as «Palavras do homem no lugar penetrante / De quem ouve. Palavras / De quem cai em êxtase, e se ergue pelo tato // […] Palavras de quem vê e derrama / Os olhos e os cântaros sobre si» (203).

«Aquele que sabe não fala, / aquele que fala não sabe», disse Lao Tse. «é verdade que acredito no homem / Que não fala (no homem que comunica / Com as mãos» (321), escreve Daniel Faria. E a sua poesia parece pressupor também a forma negativa desta sua asserção, ao mostrar-se igualmente como um discurso que não acredita naquele que fala sem ter escutado. Vinda do silêncio, a poesia de Daniel Faria procura fazê-lo ecoar, como se tornasse audível a voz das coisas que falam «para dentro de si mesm[as]» (49): «Assemelhei-me a um xilofone de silêncio, / A um estrondo muito forte que só se ouvia em silêncio» (145), lemos num poema de “Homens que São como Lugares mal Situados”. Os poemas de Daniel Faria apontam, muitas vezes, a anterioridade de uma meditação em que o silêncio é condição inalienável de uma aprendizagem que passa pela escuta, assim sugerindo que o poema transpõe o silêncio para uma forma que o torna legível. As suas imagens apresentam, ou revelam, esse lado de lá da linguagem, esse outro lugar onde não seria possível falar porque ele é o verbo absoluto.

Antecedido pela meditação que o gera, o poema ou é momento da partilha de um saber vindo da escuta, ou é a expressão desolada dos momentos de desencontro com o silêncio. A insistência das interpelações a um alocutário acentuam a importância da partilha, do mesmo modo que a repetição da ideia de «explicação», que estrutura o livro “Explicação das Arvores e de Outros Animais”, aponta para a anterioridade (pré-discursiva) do saber partilhado através da poesia. De resto, um dos poemas do mesmo livro coloca, explicitamente, o sujeito numa posição de desfasamento relativamente às palavras, posição essa que é essencial ter em consideração:

«Ando um pouco acima do chão
Nesse lugar onde costumam ser atingidos
Os pássaros
Um pouco acima dos pássaros
No lugar onde costumam inclinar-se
Para o voo
[…]

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

Ando humildemente nos arredores do verbo
Passageiro num degrau invisível sobre a terra
[…]» (39)

«Um pouco acima da transfusão do poema», isto é, entre as palavras do poema e o verbo absoluto que as dispensaria, Daniel Faria escreverá ainda: «Sei bem que não mereço um dia entrar no céu / Mas nem por isso escrevo a minha casa sobre a terra» (62), formulação que podemos aproximar das várias referências que faz à Escada de Jacob e aos degraus ligando o céu e a terra, pelos quais sugere um percurso de ascese, em estádios sucessivos.

Quando comecei por dizer que o mundo de Daniel Faria é o mundo do símbolo, tinha em mente algumas reflexões de Walter Benjamin e de Paul de Man e o modo como ambos distinguem o símbolo da alegoria. «No mundo do símbolo» — diz Paul de Man — «seria possível à imagem coincidir com a substância, visto que a substância e a sua representação não diferem na sua essência mas tão-somente na sua extensão: são respetivamente a parte e o todo do mesmo conjunto de categorias». Em Daniel Faria, aquilo que poderemos identificar como um universo de imagens, e concretamente o seu visionarismo, entronca num entendimento do mundo que é da ordem da hierofania, da encarnação e da revelação do sagrado. Os seus símbolos — a árvore, a videira, ou a casa, ou o pão, para dar alguns exemplos — encarnam e revelam o sagrado porque, como faz notar Mircea Eliade, reportando-se aos símbolos vegetais comuns a tantas religiões, significam alguma coisa diferente de si mesmos. Tendo em conta as múltiplas hierofanias vegetais, designadamente a árvore cósmica e a árvore da vida, Eliade afirma: «Uma árvore ou uma planta nunca são sagradas como árvore ou como planta, mas são-no pela sua participação numa realidade transcendente, são-no porque significam esta realidade transcendente». É precisamente esta dupla relação de participação e de significação, que está inscrita no símbolo, aquela que Daniel Faria surpreende nas coisas visíveis, pelo silêncio e pela escuta. E se a valorização que os românticos fizeram do símbolo, em detrimento da alegoria, se compreende pelo modo como, no contexto romântico, a poesia se assenhoreou do que antes fora do domínio do sagrado, abrindo caminho a sucessivos momentos de afirmação da condição epifânica da palavra poética — e estou a pensar nas muitas cumplicidades entre a metáfora e o símbolo —, no caso de Daniel Faria, o percurso parece ser o inverso, ou seja, parece ser o da restituição dessa tradição poética ao domínio do sagrado.

«A medida de tempo da experiência do símbolo», diz Walter Benjamin, «é o instante místico, no qual o símbolo absorve o sentido no âmago mais oculto, por assim dizer na floresta, da sua interioridade». Deste modo, Benjamin acentua a positividade do símbolo, a sua condição de motor da epifania — que se torna possível porquanto, como sublinhava Paul de Man no excerto que antes citei, nele, «a substância e a sua representação não diferem na sua essência mas tão-so-mente na sua extensão». O símbolo é símbolo porque participa do que representa. E outra coisa não nos diz Daniel Faria:

«Cruz, rosa
Dos ventos sem direção que não seja o centro. Coluna
Sustentada pelos braços como um amigo que chega. Rosa
De orvalho e sangue para o corpo trespassado de sede. Árvore
Que bebe do homem. Arvore
Em silêncio onde escutamos a palavra
Em carne viva. Verbo
Tão inteiro que se fez espelho.»
(191)

2.

É precisamente de uma árvore que nos fala um dos mais belos poemas de Daniel Faria, a sequência «Do ciclo das intempéries», que encerra o livro Dos Líquidos. Constituída por uma meditação em oito partes, toda essa sequência roda em torno de uma magnólia, expressamente diferenciada da que está presente no conhecido poema «A magnólia», de Luiza Neto Jorge. De acordo com o poema de Daniel Faria, a árvore de Luiza Neto Jorge seria apenas «uma magnólia pronunciada», enquanto a sua «É uma magnólia de verdade a todo o redor — maior / e mais bonita do que a palavra» (328).

Sem querer avançar numa explicação biográfica, não me parece irrelevante sabermos que o quarto ocupado por Daniel Faria no Mosteiro de Singeverga dava para o claustro e tinha, à altura da janela, a larga copa de uma magnólia branca. A sequência de «Do ciclo das intempéries» não refere expressamente este facto, no entanto, inclui estes versos: «A magnólia é pensativa como o homem / Que te olha por detrás da janela onde te escrevo». E continua: «No inverno os vidros vão embaciando — aproxima / A tua mão da paisagem que resta / Como se fora o lado do verbo que encarnou» (334).

Se essa magnólia, vista do lado de fora da janela, representa «o lado do verbo que encarnou», em que se distingue ela da magnólia de Luiza Neto Jorge, na qual é evidente um movimento unitivo entre a palavra e o mundo? Ou, dito de outra maneira: em que diverge Daniel Faria de Luiza Neto Jorge, para acentuar tão nitidamente que a magnólia do seu poema é outra, diferente? Mesmo se Daniel Faria sublinha a condição divergente da sequência «Do ciclo das intempéries» relativamente ao poema de Luiza Neto Jorge, e até por isso mesmo, não é difícil perceber que esse poema dialoga com aquele de que se distancia, quase como se o refizesse, ou corrigisse, não enquanto poema, mas enquanto mundividência. Pelo que encontramos em ambos núcleos semânticos comuns (a es­cuta, a tempestade, o mínimo), mas articulados de forma muito diferente.

Comecemos por recordar a magnólia de Neto Jorge, a «magnólia pronunciada», como lhe chama Daniel Faria:

«[…] A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,

um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.»

O que é mais fulgurante neste excerto é certamente a ambivalência com que o signo magnólia ora remete para si mesmo, enquanto signo que inclui um corpo fónico, ora remete para a árvore magnólia. Esse trânsito diz-nos que, «quando pronunciada», ou seja, quando trazida para o poema, é na própria árvore («nela»), que se desenvolve o som que «é um exaltado aroma /perdido na tempestade». Isto porque apenas no poema, e enquanto palavra, «mínimo ente», a magnólia a si mesma se excede e pode adquirir a dimensão sublime sugerida pelo uso de vocábulos como «relâmpagos», «tempestade». A condição ontologicamente exaltante da árvore magnólia é, deste modo, determinada pelo uso que o poema faz da palavra «magnólia» e decorre do processo de significância gerado no poema e pelo poema. Nos versos de Luiza Neto Jorge, a árvore não se separa da palavra, que «se elide / na matéria — na metáfora — / necessária, e leve, a cada um / onde se ecoa e resvala», sendo essa «inseparação absoluta» a sua condição exaltante.

As referências surrealizantes de Luiza Neto Jorge, a ênfase colocada pela sua poesia na imagem e na metáfora não são alheias a este entendimento que a situa numa linhagem de Modernidade que podemos fazer remontar ao Simbolismo, e a Rimbaud e Mallarmé. A ênfase que a tradição da poesia moderna, pós-baudelairiana, colocou na palavra poética e no modo como esta seria capaz de resgatar, em resposta a um mundo em falha, uma ontologia da presença são recuperados na década de 60 por poetas como Luiza Neto Jorge, que sublinha o papel da linguagem e particularmente a sua atualização no discurso da poesia. Sobre uma base filosófica materialista, a poesia de Neto Jorge enfatiza a relação de intrinsecidade entre a superfície significante do texto e a emergência de um sentido por fazer, ou por descobrir. É uma perspetiva que podemos radicar na­quela que Philippe Sollers descreve em Mallarmé, quando afirma: «Mallarmé equaciona, através da escrita, um princípio de interpretação ao mesmo tempo singular e universal — um sentido a fazer, ou seja, uma «coincidência entre produção e interpretação».

Se voltarmos a «Do ciclo das intempéries», poderemos observar que esse poema se move num universo de referências muito diferente, pois é a outro nível que o sentido permanece por fazer, e descobri-lo não depende do poema. Partilhá-lo, dizê-lo, sim, depende do poema, descobri-lo depende do silêncio e da escuta. O que confirma a dimensão mística que subjaz aos poemas de Daniel Faria. Como resume Gershom Sholem, «[e]m si mesma [a experiência mística] não apresenta expressão adequada; a experiência mística é basicamente amorfa. Quanto mais intensa e profundamente é experimentado o contato com Deus,» — continua Sholem — «tanto menos é ele suscetível de definição objetiva, pois sua própria na­tureza transcende as categorias de sujeito e objeto que toda a definição pressupõe». É por este motivo que Sholem defende que o misticismo, por muito revolucionária que seja a leitura que propõe, sempre se inscreve numa tradição já prescrita, que lhe faculta uma linguagem e, portanto, um modo de expressão. E Sholem diz ainda:

«No momento em que um místico tenta clarificar sua experiência por meio da reflexão, tenta formulá-la, e, especialmente, quando tenta comunicá-la a outros, não pode deixar de impor-lhe uma estrutura de símbolos e ideias convencionais. É inevitável que sempre haja uma parte que ele não possa expressar completa e adequadamente. Mas se tenta explicar sua experiência […] é obrigado a interpretá-la por meio de linguagem, imagens e conceitos previamente existentes.»

Como muitos outros textos de Daniel Faria, a sequência «Do ciclo das intempéries» começa com uma interpelação ao leitor — «Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página» —, apresentando-se logo a seguir como gesto de partilha de um saber já constituído, se bem que não verbalizado ainda (apenas visto ou entrevisto): «E aproveito o facto de teres chegado agora / Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia». Ao longo do poema, o leitor será conduzido (329), iniciado nesse saber: «Perscruta no que te digo o aroma premeditado / Procura-o esmagando uma a uma as pequenas sílabas — foi esmagando-me, acredita, / Que aprendi o que sei hoje: há uma diferença / Entre a magnólia que nos cresce fora / E aquela que regamos com o sangue.» (329)

As relações hipertextuais entre esta passagem e o poema de Luiza Neto Jorge são, creio eu, inegáveis: o «aroma», as «pequenas sílabas» provêm da «magnólia pronunciada» de Neto Jorge. E todavia, ressurgem transformadas, pois o «exaltado aroma» de Neto Jorge transforma-se no «aroma premeditado» (pré-meditado) de Daniel Faria, o «mínimo ente magnífico» de Neto Jorge é desvalorizado na indicação ao leitor de um caminho que passa por «esmaga[r] uma a uma as pequenas sílabas». Paralelamente, a magnólia funde-se, agora, com a simbologia bíblica da árvore da vida e «cresce como a videira testamentária», transformando-se no «eixo da casa» e mais adiante na «magnólia estelar» e na «pupila celeste».

O cruzamento entre referências que vêm da tradição bíblica e outras provenientes das obras de poetas contemporâneos intensamente imagéticos, como o são Luiza Neto Jorge, Eugénio de Andrade, ou Herberto Helder, configura a linguagem com que Daniel Faria se acerca da escuta e do silêncio:

«Se te puseres à escuta a magnólia pode ser uma árvore de fruto —
[…]
(330)

[…] Se puderes ficar em silêncio
Não te igualarás à magnólia, mas repousarás
Como o musgo que lhe cresce no tronco.»
(331)

E todavia, há grandes diferenças a assinalar entre Daniel Faria e esses poetas, pois, enquanto é no poema que a «magnólia pronunciada», de Luiza Neto Jorge, «sela juntamente o sentido e a letra», para usar aqui uma formulação de Der-rida, a magnólia tematizada no texto de Daniel Faria aponta o que já antes do poema estaria selado juntamente e que dele apenas precisa para se deixar traduzir em discurso: o mundo entendido como escrita simbólica, uma escrita que, ao ser o lado visível da transcendência, apenas pode ser entendida em função do visionarismo. E, de resto, à altura dessa visão que Daniel Faria procura fazer ascender a palavra poética:

«Escrevo do lado mais invisível das imagens
Na parede de dentro da escrita e penso
Erguer à altura da visão o candeeiro
Branco das palavras com as mãos

Como a paveia atrás do segador
Vejo os pés descalços dos que correm
E escrevo para os que morrem sem nunca terem provado o pão
Grito-lhes: imaginai o que nunca tivestes nas mãos

Correi. Como o segador seguindo o segador Numa ceifa terrestre, tombando. Digo:
Imaginai.»
(271)

O que este poema claramente estabelece é a existência de uma escrita com um lado de dentro (aquele onde se escreve) e um lado de fora (aquele onde o verbo encarnou), deixando muito claro que «o lado mais invisível das imagens» é precisamente aquele onde o sujeito se posiciona, já não para ver, mas para escrever, tentando aproximar a sua escrita do visionarismo que o conduzira à escrita.

É a tradição da poesia moderna que faculta a Daniel Faria uma linguagem onde inscrever e dar forma a um processo que a sua poesia descreve como místico. Mas, ao ser desviada no sentido de exprimir tal experiência, dada como pré-discursiva, essa tradição poética transforma-se noutra coisa, tanto mais que se associa ao misticismo cristão e à tradição bíblica. Nenhum dos autores cuja presença é mais notória na obra do Poeta, de Eugénio de Andrade a Luiza Neto Jorge, passando por Herberto Helder e mesmo Ruy Belo, consideraria a hipótese de «o lado do verbo que encarnou» ser o lado de lá do vidro onde se escreve (334), como é dito em «Do ciclo das intempéries», pois todos fariam coincidir a epifania com o poema. Não pensa assim Daniel Faria, e esta diferença confere à sua poesia não apenas uma inesperada originalidade, mas também a intensidade que nela reconhecemos: a de vir de um poeta que, como ele mesmo disse, «Ando [u] um pouco acima da transfusão do poema» porque «And[ava] humildemente nos arredores do verbo / Passageiro num degrau invisível sobre a terra» (34).

Sollers propõe um pequeno ajuste na leitura de Mallarmé feita por Paul Claudel, dizendo o seguinte:

Claudel reconheceu superficialmente em Mallarmé o primeiro escritor a colocar-se diante do exterior como perante um texto (e não perante um es­pectáculo) e a perguntar concientemente: «o que é que isto quer dizer?». Mas a questão não é essa: isto não «quer dizer», isto escreve-se.

Quando Daniel Faria se coloca diante do mundo como diante de um texto, ele passa tangencialmente pela poesia moderna, mantendo com ela aquele mesmo tipo de cumplicidade que justificou o fascínio de um moderno como Baudelaire por um místico como Swedenborg. Mas a diferença mantém-se, e é aquela que podemos sentir se compararmos o uso que Daniel Faria fez da imagem herbertiana do colar de pérolas com aquele que dela fizera Herberto Helder.

Em Photomaton & Vox, podemos ler:

«Há umas partes inflamáveis nas paisagens, as que regressam quando ve­mos a memória a mover-se de fora para dentro.
Ou então o poema vitaliza a vida se a toca nalguns pontos.
O poema gera uma vida nesses pontos tocados.
É um colar de pérolas, as pérolas todas juntas, circuito vibrante que se pode sentir à roda do pescoço com uma viveza autónoma de bicho.»

E em Daniel Faria:

«Procuro a ligação entre ti e a luz muito miudinha depois dos temporais
Entre a luz e os estilhaços nas ruas bombardeadas
Desconheço o colar onde unes tudo
[…]

Em ti encontro a pulsação
Que rebenta — uma artéria como nunca
Tinha jorrado. […]

Tu moves as agulhas, tu unes de novo
As minhas asas à curva do céu.»
(246)

Ao contrário de Herberto Helder, Daniel Faria não faz decorrer do poema a vibração do colar que une o que surge separado. Aquele que ele interpela, e a quem inteiramente se confia, transcende o texto, e o mundo como texto, porque é a própria transcendência, o verbo absoluto. E contudo, a poesia foi-lhe, como sabemos, indispensável, porque a viu como o lado de cá desse verbo, escutado em silêncio e como silêncio. Porque a viu como o único discurso no qual, como disse Ruy Belo, é possível usar a palavra árvore «como se [se] utilizasse uma verdadeira árvore, com os seus pássaros, as suas folhas, a sua sombra, a sua tristeza ou alegria». Só pela poesia poderia Daniel Faria conferir à sua magnólia, «maior / e mais bonita do que a palavra», a extensão dos símbolos que se fundem na substância do que simbolizam. Só pela poesia poderia dizê-la muito próxima, portanto, do «verbo que encarnou». A poesia era o único discurso que lhe permitia partilhar, com aqueles para quem escreveu, isso que sabia, mas sem forma. Assim, atravessou a poesia moderna porque nela reconheceu aquela ânsia de dar forma ao informe pela qual ela se assenhoreara do sagrado. Mas se o seu caminho foi idêntico, o sentido em que o percorreu foi o inverso, porque foi o de restituir a poesia ao domínio do sagrado. Isto, se faz de Daniel Faria um poeta improvável no seu tempo, ainda quando dialoga com a poesia contemporânea, também confere à sua obra poética a comovente verdade que nela reconhecemos. Daniel Faria precisou, genuinamente, de inventar uma linguagem para falar a partir de um lugar onde nenhuma linguagem havia. Não devemos subvalorizar os degraus da escada que subiu até esse lugar, pois deles provém a sua originalidade. E a sua veemência enquanto poeta.

* Todas as indicações de paginação remetem para o volume “Poesia”, Quasi Edições, 2003.

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

Rosa Maria Martelo in “A forma informe – Leituras de poesia”, ed. Assírio & Alvim in http://www.snpcultura.org/

§

A PALAVRA ABENÇOADA de Daniel Faria

Creio que há muitos poetas com talento, mas pouquíssimos têm realmente o dom. A originalidade de um autor desta estirpe cria sempre uma profunda impressão, porque está imunizada contra os modismos e arma as suas bases num espaço particular de permanência e universalidade. Daniel Faria publicou várias obras no início dos anos 90 – Uma Cidade com Muralha, Oxálida e A Casa dos Ceifeiros –, e os dois volumes aqui comentados2. Tudo o que o autor deixou publicado se resume a isto, e não é pouco.

A inscrição póstuma deste poeta tem um significado especial, porque, tendo vivido praticamente alheio ao circuito institucional, além de se ter dedicado à paróquia de Santa Maria de Fornos, em Marco de Canaveses, e aos estudos no Porto, era conhecido por um grupo restrito de leitores. Acresce que geriu a sua poesia de um modo peculiar, liberto da supremacia da ingenuidade que assoberba muito do que se produz hoje. Mantendo-se distante dos condicionamentos, das temáticas frugais, “dos logrogrifos e das logomaquias” de que falara Ernesto Sábato.

Face aos seus contemporâneos, Daniel Faria impôs-se silenciosamente com o poder do seu verbo, sem necessitar dos circuitos dos prémios e dos encontros literários para afirmar a sua voz. De facto, aquilo que este poeta publicou em vida bastou para lhe cativar um lugar precioso no panorama da poesia mais recente.

São poucos os poetas que consolidam uma estilística distintiva. A poesia deste autor é, simultaneamente, terna e clássica, violenta e espiritual:

“Encosto-me à morte sem amparo ou sombra
como o grão
abeiro-me da flor que virá e venho
à superfície do teu sonho
Como se acordasse a mão que semeia
No coração lavrado de quem faz a ceifa
Rebento no interior da morte como o trigo”3

Numa passagem de L’Espace Littéraire4, Maurice Blanchot assevera que “o poema está vinculado a uma fala que não se interrompe porque não fala, é(…) O poeta é aquele que ouviu esta fala, que transformou-se no intérprete desta fala e lhe impôs o silêncio ao pronunciá-la”. Há um sentido de posse a libertar-se desta poesia; posse da linguagem autêntica em que cada poema privilegia a distinção da voz, particulariza a expressão, o apelo do verbo quer fixar a sua morada:

“Voz no vento passando entre poeira
Edifício
Árvore noutro poema
Fico à sombra da vide e do esteio no Outono
Enxerto a luz
Em tudo o que nomeio”5

As imagens que percorrem o horizonte desta poesia disseminam-se na recorrência perceptiva do mundo rural, uma escala sugestiva intensifica a sua projecção:

“Muito pouco
Restará
Depois da fome o sabor do pão
Depois da sede o correr da água
O feixe de lenha à cabeça
Da mulher incendiando
O cair da tarde”6

A lírica de Daniel Faria organiza-se por intermédio da religiosidade. Num determinado momento o poeta desata o nó desta relação que eu chamaria “teopoética”, e acaba por ladear a apreensão sugestiva do mundo. Profundamente consciente do seu ofício, ele lê o mundo e interpreta-o segundo a representação ambígua e, às vezes, telúrica:

“Poisa devagar a enxada sobre o ombro
já cavou muito silêncio
Como punhal brilha em suas costas
A lâmina contra o cansaço”7

Enquanto muitos dos seus companheiros de geração estão naquele estágio em que, como diria Malherbe, “resta saber se os frutos corresponderão à promessa das flores”, Daniel Faria surgiu com uma voz madura, com a consciência poética susceptível de confrontar a si mesmo e aos seus pares. Não estou a incorrer em erro ao afirmar que era uma das maiores promessas da jovem poesia portuguesa.

Felizmente, a sua história está só a começar:

“Estou ligeiramente acima do que morre
Nessa encosta onde a palavra é como pão
Um pouco na palma da mão que divide
E não separo como o silêncio em meio do que
/escrevo

(…)

Ando ligeiro acima do que digo
E verto o sangue para dentro das palavras
Ando um pouco acima da transfusão do poema

(…)

Porque ando acima da força a saciar quem vive
E esmago o coração para o que desce sobre mim
E bebe”8

1 Homens que são como lugares mal situados, Porto, Fundação Manuel Leão, 1998; Explicação das Árvores e de outros animais, idem; publicado no jornal Expresso.
2 Após a publicação deste texto (01/07/2000), a obra de Daniel Faria ganhou uma enorme notoriedade e foi alvo de reedições sucessivas, que culminou com o volume onde se reuniu a sua produção poética, Poesia-Daniel Faria, Quasi Edições, 2003.
3 Op. Cit., p. 17
4 L’Espace Litteraire, Paris, Gallimard, 1985.
5 Op. Cit., p.18.
6 Idem, p. 90.
7 Ibidem, p. 77.
8 Ibidem, p. 15.
1 de Novembro de 2010

Por Jorge Henrique Basto in http://amargemdaletra.blogspot.com/

§

«é um dos nossos maiores poetas do século XX» por António Carlos Cortez  

§

Uma obra singular na poesia portuguesa contemporânea, segundo Pedro Mexia

Fotografia de Augusto Baptista

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