NUM jornal de 1947 (O Século Ilustrado, edição de 19 de Abril), escreve-se:
“Toda aquela escarpa que a Calçada da Corticeira ladeia, exprime um não sei quê de amargo e pungente, de opressivo e dramático. Há “ilhas” sórdidas, casebres repelentes, muros agressivos. Um bafo de miséria exala-se daquele conjunto de coisas sujas em que a presença humana imprimiu o seu solo de dor. Da chaminé de uma oficina, sobranceira ao rio, sai, ininterruptamente, um vómito de fogo muito vermelho e denso que o céu pesado e baço deste Março de falsa e incongruente Primavera torna mais estranho e ameaçador. Fora à calçada da Corticeira de propósito para observar o suplício inumano das carquejeiras (…) bestas de carga”
Quase setenta anos depois, atravessando o rio para a outra margem, lê-se noutro jornal (Jornal de Negócios, edição de 15 de Março de 2016):
“Em entrevista ao Negócios, o empresário revela que está “a negociar a construção de um táxi aquático de Veneza, para que o mesmo possa fazer
transferes gratuitos entre a ribeira e o hotel”. O cinco estrelas Wine Lodge Hotel terá também “um restaurante panorâmico e um bar ‘lounge’, duas salas para reuniões ou eventos e uma piscina aquecida com vistas sobre o magnífico Douro”. Através da sua “holding” pessoal, a Mystic Invest, o dono da Douro Azul vai investir cerca de 15 milhões de euros na construção do Wine Lodge Hotel, que deverá criar cerca de 80 postos de trabalho.”
Tudo muda e por isso os jornais relatam a realidade de modo muito diferente. Também a capela do Senhor do Carvalhinho, pendurada na antiga Calçada da Corticeira, está mudada. Do outro lado, a capela do Senhor d’Além, não o está menos. De ambas, os seus senhores se foram para parte incerta deixando uma à pouca imaginação dos grafiteiros e à ganância dos vândalos, e esta à vertigem do abismo e dos caprichos dos céus. Está muito mística, muito lounge a capela do Senhor do Carvalhinho, muito azul, muito próximo de ser uma gôndola de pedra que José Saramago era capaz de levar pela barra do Douro para muito longe sem se afundar, sabe-se lá até Veneza ou mais além da Taprobana.
Se as carquejeiras do primeiro jornal vissem isto e as folias que se anunciam no segundo, confirmariam o pouco préstimo da sua vida de escravas a acarretar carqueja e suor para padeiros pagarem a preço de nada. Todas as bestas de carga deveriam merecer uma reparação, um wine hotel, uma piscina aquecida e muitos gelados. Todos os turistas, sobretudo aqueles que procuram o exotismo dos desportos radicais e as verdadeiras experiências de autenticidade e vivência do espírito dos lugares, deviam subir a Calçada das Carquejeiras com um táxi aquático às costas.
Perante tais prodígios, o Senhor d’Além – onde se farão os casamentos requintados do Wine Lodge e missas de acção de graças por um lugar no paraíso (fiscal) – e o Senhor do Carvalhinho voltariam a aparecer e fariam milagres nunca vistos. As margens do Douro ficariam transfiguradas, o rio a regurgitar cruzeiros e molhos de carqueja a boiar. Do granito das escarpas, perfeitos e iluminados, brotariam castelos da Bela Adormecida entretanto acordada com tamanha animação. Lol.
Por Álvaro Domingues autor de A Rua da Estrada.
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Sobre a história da última das carquejeiras ver texto de M.J. Marmelo e Augusto Baptista.