GRACIETA está no Porto há 26 anos. Veio de Moçambique por opção, para estudar e iniciar carreira, e por cá ficou. Já conhecia a cidade – na qual, de resto, residiam alguns conhecidos e amigos (“praticamente família”) – e, por isso, preferiu-a a Lisboa, fazendo fé na ideia, que não deixou de confirmar, de que o Porto era essa cidade “acolhedora, tanto na sua dimensão física como humana”, de que se acostumara a ouvir falar.
“Há uma ideia de que as pessoas do Porto são um pouco fechadas”, diz Gracieta, mas, “uma vez ultrapassado aquele obstáculo inicial” – uma espécie de “timidez”, clarifica a nossa entrevistada –, as pessoas são “muito acolhedoras”. Por isso, e também porque pôde contar com a proximidade e o apoio de alguns bons amigos, sentiu-se sempre “bastante integrada”. Conforme tinha inicialmente planeado, estudou e fez carreira. E viu a cidade mudar.
Há um quarto de século atrás, o Porto era bem diferente. “Não era essa cidade cosmopolita que é hoje”, avança Gracieta. “Quando eu estava a estudar, havia poucos estudantes estrangeiros, não havia tanta gente de tantas origens e nações diferentes como há hoje – isso nota-se na rua!”. A ponto de Gracieta duvidar da pertinência que hoje possa ter a noção de população “nativa” ou de portuense “típico”. “Os nativos, hoje, são tão diversos, de tantas origens nacionais e sociais…”. Talvez valha realmente a pena deixar cair estes termos…
Imagine-se, entretanto, um exercício de comparação com a realidade atual. Uma viagem de volta à década de 1980: o centro histórico do Porto como cenário, uma jovem mulher de origem africana acabada de formar-se em medicina como protagonista… Possível, mas nada provável, eis o início da história de Gracieta no Porto. Se fosse hoje, talvez a cena não parecesse tão inusitada. O Porto já não é a mesma cidade de outrora… Ou talvez tudo se passasse da mesma forma. Teremos realmente feito o caminho que julgamos ter feito? Terá o “cosmopolitismo” conseguido incrustar-se realmente na cidade? Por outro lado, terão as oportunidades das mulheres de origem africana em Portugal melhorado assim tanto?
De volta à cena original, é a vez de a protagonista se surpreender. Já não é a paciente que se admira com a diferença face ao que é habitual que encontra ao entrar no consultório, mas é a médica que se depara com a faceta menos visível da cidade. No centro histórico, Gracieta examina o lado mais frágil do Porto antigo, ausculta os medos e as carências dos seus residentes, diagnostica solidão e outros males. Ali, bem no centro, vê uma periferia que envelhece, mas onde, apesar de tudo, resistem velhos hábitos: as vizinhas que se acompanham na ida à médica, a avó que olha pela saúde dos netos, a mãe que faz o que pode para tocar a vida da família para a frente.
Desgraças e virtudes num quotidiano invariavelmente pontuado por mulheres. Gracieta tem a oportunidade de conhecer uma cidade diferente, uma cidade de que pouco se fala. A experiência marcou-a. Hoje, à distância de vários anos, recorda o que viu e questiona-se: se há cidade “nativa”, “típica”, ela está provavelmente ali – “ali está a alma da cidade”, sentencia Gracieta.
Por João Queirós in http://www.10pt.org/