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Helder Pacheco, quase 81 anos

Helder Pacheco, quase 81 anos

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AOS olhos de um dos maiores pensadores e documentadores da cidade, o futuro do Porto é um campo aberto e pode ser radioso. Jorge Lopes foi ao encontro de Helder Pacheco em Lordelo do Ouro. Marco Duarte captou-o entre papéis.

As crónicas reunidas no Porto nos Dias do Meu Tempo vão de 2014 a meados deste ano. Começam assombradas pela troika e seguem por uma, digamos, tentativa de reerguer dos escombros. Foi dos períodos mais conturbados que viu o Porto e o país atravessarem?

Do ponto de vista das pessoas, sim. Primeiro, porque eu próprio sentia na pele a questão da chamada austeridade. Depois, como ando muito de transportes públicos, ouvia as queixas das pessoas e apercebia-me das dificuldades. Além disso, tinha amigos que ficavam insolventes, amigos com graves problemas por causa dos filhos desempregados, etc. Do ponto de vista da cidade, a verdade é que assistimos ao início da reabilitação urbana, que já vinha de trás mas que nos últimos cinco, seis anos avançou contra a corrente dos acontecimentos. É das tais contradições: nem todas as crises são negativas para todos os sectores.

A cidade foi, durante um período, como que um amortecedor para o ambiente de crise?

É. E a verdade é que este boom começa a desenhar-se nesse período.

Com o correr dos acontecimentos, as crónicas vão reflectindo a mudança da paisagem desde 2014 até 2017.

Reflecte. A partir de certa sinto que as pessoas começam a viver melhor. E a respirar melhor. E a pensar melhor. E a serem mais optimistas. E começo a sentir isso nos autocarros.

O autocarro é o transporte púbico onde melhor se sente o pulsar de quem faz a cidade?

É, porque o metro é muito impessoal. O ambiente do metro é completamento diferente. Fala-se pouco no metro. Embora o meu sistema de transportes favorito, o que está mais afectivamente ligado aos portuenses, seja o eléctrico. Só que o eléctrico foi praticamente destruído na vida da cidade. As linhas que ficaram foram um verdadeiro milagre. Porque houve uma fase de “Abaixo o Eléctrico”, e toca a retirar as linhas das ruas. Não estou convencido que uma linha marginal, do Infante a Matosinhos, não fosse uma linha altamente operacional num eléctrico mais rápido (os tradicionais ficavam para o turismo).

Uma das frases mais optimistas do livro é a que se refere a “uma cidade a que os românticos chamavam eterna e agora desatou a mudar a galope”. Sugere uma ruptura no modo de funcionamento do Porto.

E está-se a assistir a isso. Eu sou um falso tradicionalista. Porque sou um defensor das tradições, mas não de todas. A tradição do homem bater na mulher não me interessa nada; o cuspir para o chão ou andar descalço. Há certas tradições que são para mandar para o caixote do lixo, mas há outras que fazem parte da nossa identidade. A identidade da cidade é a nossa identidade.

O que a fez desatar a mudar a galope?

Assistimos à desindustrialização da cidade, mas isso era inevitável. O mesmo aconteceu na Europa e nos Estados Unidos.

Com consequências bem mais dramáticas em alguns casos.

Muito mais. Estive em Manchester em 80 e era uma coisa assustadora. Fui a Newcastle depois disso, quando fecharam as minas de carvão, e não queira saber o ambiente daquilo. A desindustrialização também atinge duramente o Porto: há bairros inteiros, sobretudo em Campanhã, Bonfim, Lordelo, em que a desindustrialização dá origem a ruínas. Significativamente, na zona ocidental as ruínas foram ultrapassadas pelo imobiliário. Na zona oriental, o processo é muito mais lento.

A desindustrialização explica tudo?

Há também a descomercialização, a morte do comércio numa cidade fundamentalmente comercial e de comerciantes. Assistimos ao fecho de centenas de pequenos comércios. A hecatombe que afectou a Baixa atinge cinemas, cafés, restaurantes e muito pequeno comércio. Basta passar ainda hoje em 31 de Janeiro, que era uma rua esfusiante de animação comercial e de classe, e que se transformou numa ruína.

A recuperação nas zonas circundantes tarda a chegar a uma artéria tão emblemática como a 31 de Janeiro.

Está a ser difícil. Na minha opinião, as ruas muito declivosas são mais complicadas do que as ruas planas.

Havia, ou há, planos para instalar uma escada rolante…

Na altura votei contra. Hoje não sei. Fazia parte de uma espécie de conselho consultivo que o Dr. Fernando Gomes tinha na Câmara, que reunia periodicamente e onde ele apresentava projectos. O projecto da escada rolante em 31 de Janeiro que ele apresentou foi muito criticado e praticamente rejeitado. (Como, aliás, a demolição das Moagens Harmonia foi rejeitada noutra reunião – mas essa, acho que foi uma boa decisão.) Hoje, sei que em algumas cidades europeias foram colocadas escadas rolantes, designadamente em cidades italianas antigas, mas em percursos pequenos. O problema [de 31 de Janeiro] é que é muito longo.

Já estamos num tempo de pós-desindustrialização e pós-descomercialização.

Estamos a assistir em quase toda a parte ao surgimento de empresários, sobretudo jovens, que estão a cobrir a cidade com uma rede finíssima de novos comércios, de alimentação mas não só (até penso que a maioria não o será), que está a trazer um novo conceito – um comércio muito mais moderno, mais cosmopolita, mais internacionalizado até. Em muitos aspectos contribuindo para ressurgir velhos produtos, designadamente artesanato (prefiro chamar-lhe artes e ofícios tradicionais, mas pronto). Tenho a impressão que nunca se vendeu tanto artesanato como neste momento.

É um novo comércio criativo.

Extremamente criativo. Quer o produto que vende, quer a forma como a apresenta. E é um comércio que promove produtos portugueses. Só podemos ter uma visão optimista sobre o futuro da cidade – desde que certas questões sejam resolvidas.

E que, no que ao turismo diz respeito, não se deite fora o bebé juntamente com a água do banho.

Exactamente.

No novo livro também escreve que, “apesar de tudo, o país e a cidade ainda valem a pena”.

Acho que sim. Eu não troco esta cidade por nenhuma e este país por nenhum. Como leitor compulsivo do Eça de Queirós, do Ramalho e do Camilo, reservo-me o direito de criticar o que considero que deve ser criticado, e de amar aquilo que deve ser amado.

É notório que o que mais deseja para a cidade é o seu repovoamento.

Claramente. Há amigos que dizem que os subúrbios tinham forçosamente que crescer e as pessoas tinham que ir para lá, mas não estou convencido disso. O Plano Auzelle [de Robert Auzelle, arquitecto e urbanista francês, autor em 1962 do Plano Director da Cidade do Porto, em vigor até 1993], de que sou crítico, resultou em muitos sítios na elevação dos edifícios – basta ir ao Marquês e ver, num friso de casas do século XIX, algumas com quatro e cinco andares a mais. Mas ele previa, no ano 2000, meio milhão de habitantes para o Porto. Pode-se dizer que não era possível mas em 1983 o Porto tinha 330.000.

Estava bem encaminhado para os 500.000.

Ramalde cresceu: hoje vamos lá e aquilo que eram campos está urbanizado, e em muitos sítios bem urbanizado, com boa arquitectura. Paranhos cresceu. Aldoar cresceu: a gente vê Aldoar de avião e o que era campos e pinhais é cidade. Para mim, campos e pinhais não são cidade, são campos e pinhais. Aos campos e pinhais, na cidade, prefiro grandes parques urbanos.

O que é que correu mal?

Esvaziaram o centro histórico e as freguesias centrais, Cedofeita e Santo Ildefonso. A hecatombe foi aí. Se tivessem seguido políticas de habitação social diferentes… Quando a banca ocupa o centro da cidade, o que é que acontece? A expulsão de actividades económicas de proximidade e de habitantes. O que se passou na cidade, na minha opinião, é erros acumulados de gestão. É possível identificá-los um a um.

Erros de gestão que são também experiências de engenharia social mal sucedidas ou abandonadas a meio?

A engenharia financeira é que correu mal. Estavam a pensar [em destinar] a Baixa para o terciário e a habitação social para a periferia. Em 1974 é lançado um projecto notável que se chama SAAL. O que pretendiam? Pegar nos bairros populares, operários, ilhas, degradados, e reabilitá-los, como fizeram em três e quatro sítios, mantendo a população lá. Isto tinha salvo a cidade da implosão de habitantes para a periferia.

É um projecto que acabou precocemente.

Foi completamente torpedeado. Possivelmente tinha associações de moradores a mais metidas no assunto. Mas o SAAL era o projecto ideal para a reabilitação das ilhas. Mas a questão que coloco agora é: as ilhas eram consideradas insalubres, imorais, violentas, etc., têm que ser demolidas e as pessoas vão-se embora para novos bairros na periferia. Agora, muitas delas estão a ser reabilitadas para o turismo. Então como é? Servem para o turismo e não servem para a habitação social?

Tomando o turismo como um primeiro passo para o “repovoamento”, embora passageiro e sazonal, da Baixa, qual é o passo seguinte?

Sou a favor do funcionamento do mercado. Ponto final. O mercado é uma peça fundamental numa sociedade democrática. Mas acho que o mercado deve seguir regras muito precisas. O mercado deve funcionar na Baixa mas não completamente só mercado. Sou a favor da cidade inclusiva, em que pobres, ricos e assim-assim estão juntos, vivem na mesma rua. A cidade inclusiva é a grande tradição do Porto e foi destruída, criando-se guetos na periferia. A Baixa deve ter habitação de luxo, tudo bem, quem puder pagar que pague; habitação para classe média; e na medida do possível criar habitação social.

Ou seja, não deixar o mercado em roda livre.

Exactamente.

Repovoa-se a cidade com pessoas novas ou também resgatando quem dela tem saído para Gaia, Matosinhos, Maia?

Os velhos moradores não voltam; ainda é sorte se vierem os filhos. Até porque não têm capacidade para comprar no Porto uma casa equivalente à qualidade a que foram comprar fora. Provavelmente vão ter que ser novos moradores, e se calhar vão ter que ser estrangeiros. Isso não me preocupa: o mundo moderno é um mundo de intercomunicação. E miscigenação.

O dossiê da união de Gaia ao Porto parece ter-se perdido. Fazia sentido para si?

Para mim fazia. Se a História vale alguma coisa, e acho que vale, a verdade é que até 1834 Gaia, Santa Marinha e Mafamude faziam parte da cidade do Porto. É com a vitória liberal que Gaia ganha autonomia. Se a lei do ex-doutor Miguel Relvas (que agora já é doutor outra vez) uniu freguesias, porque razão as cidades não se podem unir? Por outro lado, a minha convicção é que se Gaia e Porto fizessem parte da mesma entidade administrativa, o planeamento urbano e de actividades económicas e sociais tinha sido muito mais coerente. Conheço bem a realidade das áreas metropolitanas da Grande Manchester e da Grande Londres e houve uma altura que me entusiasmou, porque as administrações mantinham as suas identidades e especificidade mas estavam juntas, faziam parte de um todo.

O poder central alguma vez permitirá um Grande Porto nesses termos?

O centralismo é um cancro que corrói este país. Um cancro demolidor e, em muitos aspectos, incompetente. Há um centralismo super-desvairado que nos tolhe. Sou ferozmente anti-centralista. A força política não vem sobretudo da conversa ideológica mas sim da força económica e financeira, e uma associação Porto-Gaia-Matosinhos seria uma forte presença económica, financeira, administrativa, política e cultural na vida do país. Que é o que o governo central não quer, mas que vai acontecer no futuro. É inevitável.

Quem foi o melhor presidente da Câmara que a cidade teve?

O melhor foi provavelmente Francisco Pinto Bessa. Foi o presidente que esteve mais tempo no poder no século XIX [1866-78], e foi um homem que teve a visão avançada para lançar a Rotunda da Boavista, a marginal da [Rua Nova da] Alfândega. Ele não tem dúvidas que é preciso ligar o centro ao rio, construindo [a Rua de] Mouzinho da Silveira. A sua acção impressionou-me muito: construiu dois mercados, um oriental, outro ocidental, o Bolhão e o Anjo. [Pausa] Até distinguiria mais câmaras do que presidentes.

Como assim?

As câmaras logo após a implantação da República foram extremamente ambiciosas e corajosas. Digo câmaras porque foi um período de sete, oito anos em que tivemos vários presidentes com vereadores notáveis: Elísio de Melo; o Eduardo Santos Silva, que faz uma verdadeira revolução social, criando escolas, cantinas. É o período em que se tenta lançar os primeiros bairros sociais municipais. E abre-se a Avenida [dos Aliados]: arrasar o Bairro do Laranjal para construir uma grande avenida e suas laterais exigiu uma grande coragem, até em termos financeiros. Nunca percebi que engenharia financeira eles arranjaram para fazer aquilo.

A era das grandes obras termina aí?

Há períodos em que aparentemente a cidade estagnou mas, no entanto, há obras que são feitas. Veja-se o milagre que foi o Parque da Cidade aparecer. Como foi possível, com todos os apetites, sobretudo imobiliários, que havia para aquele espaço fantástico (chegou-se a pensar para lá a Exponor, um estádio de futebol, etc.)? [O projecto] atravessou vários ciclos municipais quer antes, quer depois do 25 de Abril, mas a verdade é que o Parque está lá.

Quais são os grandes desafios para a cidade neste momento?

Primeiro: controlar positivamente o turismo. Durante 12 anos fiz parte, com muito orgulho, do Conselho Consultivo da Sociedade de Reabilitação Urbana [SRU], onde estava, excluindo-me a mim, uma verdadeira elite intelectual e não só. A SRU previa, para 2015, três milhões de visitantes. Para 2015. Creio que ainda não chegamos aos três milhões. Só começo a preocupar-me seriamente quando o Porto receber seis milhões ou sete. Fui a Brugges, a expensas minhas, porque tinha curiosidade em saber como é que uma cidade do tamanho de Viana do Castelo recebe sete milhões. Gosto muito do Canadá, e fui com a minha mulher a Quebec City, a única cidade Património Mundial na América do Norte, que recebe oito milhões de visitantes.

Bastante longe dos números do Porto.

Não há turismo a mais, o que há é Porto a menos. Porque está tudo superconcentrado na Baixa e na Ribeira. Temos a Foz, temos Campanhã. Eu sou portista, mas não é preciso sê-lo para se ver que o Museu FC Porto tornou-se o primeiro de um clube de futebol a tornar-se membro de uma agência da ONU para o turismo. Já recebe 40% de estrangeiros. Não percebo como é que nunca se vê turistas na [igreja da ] Lapa quando lá tem o coração de D. Pedro IV. O rei Carlos Alberto, que ainda tem uma grande aceitação entre os italianos, viveu no Museu Romântico; ele é promovido em Itália? Há um Museu da Farmácia lindíssimo em Ramalde; nunca vi lá um estrangeiro. Era possível fazer uma espécie de eco-parque no Parque Oriental, com aquela paisagem do Vale de Campanhã, as quintas, etc.; em Azevedo temos tudo: a igreja, a aldeia, os moinhos, as pontes.

Há muito por fazer no Porto?

Está tudo por fazer. Reabilitação urbana. Repovoamento. Novas linhas de metro. O Salgueiros voltar à primeira divisão [risos].

PASSADO, PRESENTE E FUTURO

O que fez

Nasceu na freguesia da Vitória em 1937, num dia que muito lhe agrada (31 de Janeiro). Deu aulas no ensino secundário, conheceu e estudou cidades mundo afora, publicou dezenas de obras sobre história e património, sobretudo do Porto.

O que faz

Lecciona a disciplina de História Social e Cultural do Porto e Literatura do Porto no Instituto Cultural D. António Ferreira Gomes. Escreve crónicas para o Jornal de Notícias há quase 30 anos – os textos publicados entre 2014 e meados de 2017 foram recentemente compilados em Porto nos Dias do Meu Tempo.

O que vai fazer

Prepara livros para edição em 2018 e 2019. O primeiro compilará textos vários, das tabernas à reabilitação do arroz doce. Para 2019 prevê sair O Porto das Pequenas Coisas (“uma fechadura, uma porta, uma janela”), assente em fotografias.

Uma versão mais resumida desta entrevista foi originalmente publicada em Dezembro de 2017 na edição impressa da Time Out Porto

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