IRENE da Torre Soares nasceu em 1933 em Aver-o-Mar, onde fez o exame da 3ª classe na Escola dos Refojos. Em 1954, casou com Manuel Azevedo Ferreira e é mãe de dois casais. Como todas as meninas daquele tempo, Irene aprendeu cedo as lides domésticas: “as raparigas tinham que abandonar a escola para se tornarem em prendadas donas de casa. As ruas em terra enchiam-se de canalha com motas de pau, correrias de aro e arame, a jogar à estrancela ou ao pião. Brincadeiras e jogos que hoje desapareceram. Eu, como aprendi a costurar muito pequena, só gostava de brincar com os farrapos. Fazia as bonecas de trapo e as roupas, desde os lenços até às blusas e às saias. Era o guarda-roupa completo. Quando os meus filhos nasceram fiz as bonecas para as duas raparigas brincarem”.
Apesar dos tempos não serem de abundância, Irene Soares nunca passou por grandes privações: “nunca andei a servir porque o meu pai era carpinteiro mecânico e sempre ganhou para nos manter. Ele torneava madeiras na fábrica do Lima Caganito, em São Brás. Mas aos 11 anos fui com a minha irmã para Aguçadoura ajudar a afundar os campos para os fazer masseiras. Arrastava-se gigas de areia e gigotes à cabeça. Faziam-se os vales dos campos de cultivo para ficar abrigados das nortadas. Toda a gente cantava enquanto trabalhava e, no regresso, o Fernandinho das Moelas vinha todo o caminho a cantar ao desafio com a Rita do Gravatas”.
Os terreiros das igrejas eram os lugares escolhidos para namoriscar, revela Irene Soares: “aos domingos os moços vinham para o terreiro e metiam conversa com as raparigas. Eu não queria casar com um pedreiro porque a minha família era de carpinteiros. Os pedreiros passavam muitas necessidades porque não podiam trabalhar no Inverno. Mas a vida acontece e o coração obedece. Acabei por casar com um pedreiro que ia trabalhar para o Porto de bicicleta, enquanto eu ficava na agricultura. Tinha uma carroça e um burro para os afazeres do campo e para fazer as feiras. Comprava dois vitelos, criava-os e vendia. Também criava dois porcos, um para vender e outro para a salgadeira. Fui muitas vezes apanhar sargaço para as terras de renda. Semeava batatas e milho para cozer o pão. A gente vivia do que tinha, da mercearia só vinha o azeite, óleo e arroz. Se o ano fosse produtivo o dono do campo pedia mais dinheiro de renda. Mas havia lavradores sérios”.
Como quem casa quer casa, entre uma vida de trabalho sorriu alguma felicidade. “Os terrenos e as casas junto ao mar eram mais baratos. Ninguém queria morar muito perto do mar, só mesmo os pescadores. O mar às vezes vinha bater à porta e trazia os barcos para os campos. A minha família ficou toda a morar perto da igreja, mas eu comprei nas Fontes Novas, que era só campos. Da janela via o mar e as igrejas da Póvoa. Antigamente as pessoas eram muito agarradas ao berço e não queriam ver os mais novos partir para outros lugares, mesmo que fossem na mesma freguesia”.
Com quatro filhos para criar numa terra de fome, a opção foi emigrar para França. “Primeiro foi o meu marido, a salto, em 1966. Atravessou os Pirenéus a pé. Em França pagou dois contos (10 euros) a um português que lhe arranjou trabalho e papéis. Três anos depois conseguiu passaportes para mim e para os filhos e fomos todos para França, onde permaneci 11 anos. Em Tonnerre trabalhei sete anos na casa e na farmácia de um médico. Criei três filhos dos patrões e ao mesmo tempo os meus”.
A língua foi sempre uma dificuldade mas Irene Soares explica como comunicava nos primeiros tempos: “era a língua do dedo, apontava-se para as coisas que queríamos dizer ou comprar. Às vezes dava risota ou confusão, mas nunca vinha de mãos vazias. No início fui viver para Frennes, perto de Tonnerre, numa casa de lavoura. Tinha muitos animais, criava coelhos, patos e galinhas. Dava-lhe de todas as maneiras para juntar mais algum dinheiro. O meu marido nunca se deu com o frio e na região de Tonnerre era três meses de verão, três de inverno e seis de inferno. As saudades eram muitas, tínhamos a casa em Portugal fechada, fizemos obras e regressamos. Três dos filhos ficaram casados em França. O mais novo veio comigo, cresceu e pouco tempo depois de casar foi para a Suíça. Neste país não se vive, sobrevive-se”.
Publicado in A VOZ DA PÓVOA