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Jacarandá de Francisco Duarte Mangas

Jacarandá de Francisco Duarte Mangas

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UMA história do medo, da clandestinidade política, de afetos e traições. Da tortura, da mais bárbara tortura e da perigosa arte do silêncio (não rachar) perante os torturadores. O romance parte de um facto real: o assassinato de um “proprietário e capitalista ”, dizem os jornais da época, na  Rua do Bonjardim, no Porto.  Crime mal esclarecido, que a polícia política se apressa a atribuir a  “grupo de malfeitores” comunistas e a três galegos, refugiados rojos da guerra civil de Espanha. Jaracandá decorre no início dos anos quarenta,  um dos  períodos de maior crueldade do fascismo português, respaldado numa sociedade apavorada, e num jornalismo subserviente, mentiroso, infame. Afinal, quem foram os autores do “Crime do Bonjardim”? Por que desapareceu o processo, julgado em Tribunal Militar Especial Político, do Arquivo Histórico Militar?  “Tu disseste: olha o jacarandá florido, fica  rente à felicidade. Um dia chegarás ao seu coração vegetal, apertado: achas a luz, a claridade das árvores bebida pela raiz –  limpidez  resgatada do âmago da terra”.

Edição Teodolito, junho de 2015.

§

E se fosses tu?

Os livros aparecem por acaso. Falo por mim. Esse acaso aplica-se ao Jacarandá, o último;  ou a Diário de Link, o inicial. Um romance ou  uma novela, na sua construção, é como o mais breve poema: há um momento que no vazio, na escuridão, surge a centelha. Ao certo, esse fragmento de fogo, não sei donde provem. Esse friccionar de pedras pode ser uma palavra apenas, uma conversa de café, uma memória incompleta. Ou seja,  a todo o momento pode saltar a faúlha – e a partir daí fica-se preso, a faúlha há-de ser labareda. Fogo vivo.

Certa vez, Germano Silva  falou-me de uma brévia num antigo mosteiro, algures na cidade do Porto. Dessa conversa, só uma palavra guardei. Brévia. Eu desconhecia a palavra,  nunca, por certo, a teria ouvido ou lido – mas, talvez pela proximidade a certas práticas beneditinas, era-me familiar. Tão familiar como mãe, como casa, como a sombra no verão. A repousante brévia transportava “o mecanismo do fogo”: em pouco dias, sempre a eito, como os camponeses antigo a evitar o sol inclemente, escrevi  Brévia. Um livrinho de poemas que distribuí por alguns amigos.

Com o Diário de Link, romance sobre a aldeia afogada de Vilarinho da Furna, a chispa da pederneira veio numa imagem. Um irmão meu trabalhava para empresa que construiu a barragem, e realçou a coragem de um dos habitantes: esse vilarinho recusou sair, ficou só, na sua casa, enquanto a água do rio impedido pelo paredão subia devagar:  a água atingiu o rés do chão, as cortes do gado, continuaria o movimento ascendente  como uma sombra a amarinhar na parede, e descobriu o homem, Profanou-lhe o espaço. Não sei se foi o resistente a pedir auxílio, ou se as autoridades tomaram a decisão de o desviar da morte. A imagem que eu fiquei (na altura teria 11,12 anos), a que guardava o fogo no meio do suave diluvio foi outra: quando o barco chegou para resgatar o homem, a mesa da cozinha boiava nas águas. Mesa é uma palavra muito forte, a tosca mesa de carvalho, onde a família desse pobre vilarinho repartira a penúria. Anos mais tarde, a imagem  da mesa cativa sobre as águas prisioneiras levar-me-ia à escrita de Diário de Link.

No final dos anos noventa, Adalberto Sampayo, artista plástico e antigo repórter gráfico de O Primeiro de Janeiro, falou-me vagamente da prisão, no Porto, de um grupo de refugiados espanhóis. Quis saber, abusando da sua memória de velho, mais do episódio. O meu amigo Sampayo lembrava-se de pouca coisa: teria sido algures nos anos quarenta, e os espanhóis pertenciam a um grupo clandestino que reunia numa garagem, na Rua de Santa Catarina. Na mesma rua onde O Janeiro, num belo palácio, hoje um centro comercial, estava instalado.

Na altura eu estava a preparar um trabalho sobre os cinquenta anos do massacre a refugiados republicanos da Guerra Civil de Espanha, praticado pela GNR e pela Guardia Civil, na aldeia de Cambedo,  Chaves. Haveria alguma relação entre Demétrio Alvarez, o único guerrilheiro sobrevivente de Cambedo, e os galegos presos no Porto? Talvez não. Tempos depois, num alfarrabista da cidade, encontrei Memórias de um Inspector da PIDE, e o seu autor, Fernando Gouveia, a dada passo, para dar consistência à tese de diabolização do Partido Comunista, faz emergir o caso dos “bandoleiros espanhóis” detidos no Porto, e precisa a data: Maio de 1940; num gesto  de distanciamento, toma como suas as palavras do Jornal de Notícias – que   destaca “o misterioso crime” ocorrido na Rua do Bonjardim. A partir daí, consultei as edições do  Jornal de Notícias e do Diário de Notícias da época. E  conheci um lado da história: o lado que a Ditadura permitiu sair, na imprensa, do assassinato do “misógino intransigente”, assim  retrata o JN a vítima – um velho proprietário e capitalista portuense.

A centelha irrompe, como disse, quando menos se espera. A sua tradução na escrita por vezes demora anos. Depois da consulta dos jornais, começava o trabalho do Jacarandá. Ouvi alguns antigos presos políticos, li as memórias de outros, reli uma das edições do tempo de clandestinidade de Se Fores Preso, Camarada, que o Jorge Sarabando me emprestou. A edição que eu li, datada de 1972, e tem como título Não Falar na Polícia – Dever Revolucionário. Reli “Mi Guerra Civil Española”, de George Orwell, talvez o mais lúcido dos autores que escreveram, ainda a quente, sobre o acontecimento.  Li (ou já tinha lido) outras obras relacionadas com a clandestinidade comunista, como Relatos da Clandestinidade – O PCP Visto por Dentro, de J.A. Silva Marques, que havia sido, descobri mais tarde, do Jorge Sarabando.

Como parece ser óbvio,  quis consultar o processo do julgamento do Caso Bonjardim. Os acusados, os  três galegos, os irmãos Alvela,  mais onze portugueses ligados ou próximos do Partido Comunista, foram julgados no Tribunal Militar Especial Político, no Porto, em Março de 1941. O processo deveria repousar no Arquivo Histórico Militar, em Lisboa. Não se encontrava aí, embora no mesmo arquivo estejam  processos anteriores em que aparecem os nomes de alguns dos acusados do Crime do Bonjardim. Só depois do livro escrito e publicado soube, através do meu amigo Bruno Monteiro,  que, afinal, o processo não estava perdido, ou agachado em casa particular.

Para espevitar a centelha, verdade seja dita, descarecia da consulta do processo,  as notícias dos jornais deram-me informação suficiente. Numa obra ficcional, a matéria informativa ou a falta dela é sempre suficiente. É isso que deveras me entusiasma na escrita, reinventar uma realidade a partir da palavra. A linguagem entra no domínio do “indizível” – para usar um vocábulo dos poetas dos anos oitenta – e partilha essa ‘descoberta’.

Para o Jacarandá, fui buscar os nomes do inspector da PVDE/PIDE e de outros torturadores a um antigo livro da malvadez portuguesa: Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto; no romance A Mãe,  de Máximo Gorki,  encontrei os nomes de outras personagens; outros, por fim, nasceram e cresceram já baptizados no decorrer do processo criativo. O imaginário jacarandá, que acaba por dar título à obra, surgiu de forma inesperada – alguma coisa terá acontecido, mas existem mistérios que ultrapassam o narrador. A ficção faz-se de muitas pequeninas coisas reais que nós vivemos, que outros viveram e nos contaram, e de outras que não vivemos e ninguém as terá contado. Como o Jacarandá, os jornalistas do anos 40 que aparecem no livro, imaginativos (mais imaginativos creio que os jornalistas de hoje), todos eles são uma invenção. Personagens reais só os irmãos Alvela, os três galegos, fugidos da Guerra Civil de Espanha, e no entanto deles apenas conhecia o nome e a pesada condenação que sofreram.

Chegado aqui, uma pergunta se impõe: o que me levou a escrever o livro? Ou, para manter a imagem da centelha,  por que soprei nas cinzas do Crime  do Bonjardim? Eu gostava de perceber o medo, se o medo iria ter tudo o não. Por isso, o medo aparece ao longo do livro como um animal. Um animal silencioso, um animal indefinido, de reacção imprevisível. E aqui, para se testar o animal, surge a tortura.

Quando cheguei à redacção do jornal O Primeiro de Janeiro, meados dos anos oitenta,  contaram-me uma história amarga de um jornalista mais velho, de quem me tornaria amigo. Ele teria (o teria é meu, quem me informava era afirmativo), ele teria rachado numa passagem pela Rua do Heroísmo, pela Pide,  e teria denunciado outro camarada de profissão – até me disseram o nome da “vítima”, Pedro Alvim. Nunca falei do assunto com o meu amigo, alegado delactor, que era do PCP e continuava quando o conheci. Ele também nunca aludiu a esse seu nebuloso passado. Mas vi nele um homem ferido pela amargura.

Que a animal é o medo?

A dada altura, em privado, o narrador pergunta: E se fosses tu? Suportarias a tortura, cumpririas o dever revolucionário de não falar na polícia? O medo, confessa Martí –, o controleiro nesta história, que rachouperante o cavalo marinho –, o medo irrompe “animal dominador. Julguei que o domava, abarbatou-me. O medo é um animal estranho. Protege e rouba a coragem, no seu lugar, no lugar da coragem, fica o vazio. Sou o homem mais infeliz à face  da terra, tenho vergonha de estar vivo”.

O outro camarada, que cumpria o dever revolucionário, suportando os mais duros suplícios, frente ao ex-controleiro, estando os dois presos na sede da Pide, pergunta:

“Torturam-te muito?
Muito. O medo apossou-se de mim.
E devorou-te.
Devorou-me, esse animal silencioso.
Que deste tu em troca?
A minha dignidade.”

Este livro é dedicado a quem ousou afrontar a ditadura. Um pequeno gesto de gratidão aos que foram brutalmente torturados e não cederam. E também a alguns que não suportaram a dor e involuntariamente terão traído. O  medo, afinal o medo não teve tudo.

Um jacarandá,  mesmo crescendo na parede da cela, apresenta sempre muito ramos. Falei-vos de um – há outros a descobrir.

* Texto lido na Universidade Popular do Porto, dia 20 de novembro, no debate “O medo não pode ter tudo” a partir do romance Jacarandá, com a participação de Cristina Nogueira e Bruno Monteiro.

Francisco Duarte Mangas (Rossas, 1960) foi professor três anos e jornalista durante quase três décadas. Autor de mais de duas dezenas de obras nos domínios da ficção, poesia e  literatura infanto-juvenil. O seu primeiro livro, Diário de Link, foi distinguido  com o Prémio Carlos de Oliveira. Geografia do medo, A morte do Dali , O coração transido dos mouros,  A rapariga dos lábios azuis e Jacarandá são alguns dos seus romances. No campo da poesia, publicou  Cavalo dentro da cabeçaEspécies cinegéticasPequeno livro da terra, Transumância,  Brévia e A Fome Apátrida das Aves. Na literatura para os mais novos começou com O elefantezinho verde;  contaria depois as histórias de O gato Karl,  O ladrão de palavras,  O noitibó a gralha e outros bichosA menina, Sílvio, domador de caracóis e O gato Karl- a palavraria. Com Augusto Baptista escreveu O Medo não podia ter tudo, e partilharia ainda a escrita de  Breviário do Sol e  Breviário da Água com João Pedro Mésseder.  Integrou a direção do Teatro Experimental do Porto-Círculo de Cultura Teatral, quando o TEP tinha sede na margem direita do Douro,  foi vice-presidente do Sindicato dos Jornalistas,  é o presidente da Associação dos Jornalistas e Homens de Letras do Porto.

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