JOSÉ da Cruz Santos, cuja Inova foi uma das mais relevantes editoras portuguesas nos anos 70, prossegue hoje o seu longo e acidentado percurso na Modo de Ler, onde se prepara para lançar uma antologia da poesia portuguesa. O seu maior prazer foi sempre o de imaginar livros que ainda não existem. A data que mais nitidamente divide em duas partes o percurso de José da Cruz Santos como editor é o 25 de Abril de 1974. Dado tratar-se de um dia em que todo o país mudou, não surpreende. O que é um tanto irónico é que um homem que nunca escondeu as suas simpatias comunistas tenha acabado por ser tramado – enquanto editor, entenda-se – pela Revolução dos Cravos. Mais adiante, ele próprio explica porquê.
A “mais antiga recordação” que Cruz Santos preserva é a de se “entreter com uns livrecos” em casa de “uma dessas senhoras a quem os pais deixavam os catraios num tempo em que não havia jardins-de-infância”. Depois chegou a época da revista Mosquito, que lhe terá servido de Cartilha Maternal. “Estou convencido de que foi aí que aprendi a ler”.
Tinha nascido o leitor, mas do leitor ao editor as coisas levaram o seu tempo, e o caminho não foi isento de curvas. Aos dez anos, começou a ajudar o pai no armazém de mercearia que este tinha no Porto. Passou depois por um depósito de vinhos, por uma casa de chapéus e até pelos electromésticos de Arnaldo Trindade.
O primeiro sinal premonitório do que iria ser a sua paixão de toda a vida surgiu em 1958. Colaborava à época com um familiar que trabalhava em artes gráficas e pediram-lhe que organizasse a edição de um livro de Alfredo Margarido: Poema para Uma Bailarina Negra. Tendo em conta que tinha 22 anos e não sabia nada de edição, fez obra asseada: uma capa sóbria, um papel bonito e, em extratexto, um desenho. Este último pormenor havia de se tornar uma imagem de marca. “Dos 300 e tal livros de poesia que publiquei, não há um único que não tenha algum tipo de intervenção artística”.
O seu gosto pelas artes plásticas tem duas origens óbvias: o convívio que cedo estabeleceu “com a malta da Escola de Belas-Artes” – um grupo que incluía os pintores Ângelo de Sousa, António Quadros e Armando Alves, que viria a ser, durante décadas, o responsável gráfico das suas edições – e “os muitos dias que passava metido no atelier” do seu tio António Cruz, com quem Manoel de Oliveira fez o documentário O Pintor e a Cidade (1956).
Por muito que, a posteriori, nos pareça que alguém esteve sempre destinado a fazer o que veio a fazer, quase todos os percursos profissionais nascem de uma primeira oportunidade. Cruz Santos deve a sua a Fernando Fernandes, o fundador da Livraria Divulgação, depois rebaptizada Leitura. Fernandes lembrou-se de o sugerir a Lyon de Castro, o proprietário das edições Europa-América, e Cruz Santos foi vê-lo a Lisboa. Fosse pela entrevista, fosse pela recomendação, ficou à experiência.
Poucos meses depois, Agostinho Fernandes convidava-o a assumir funções de responsabilidade na sua Portugália. “Já viu? Arriscar num rapaz de vinte e tal anos, quando pela Portugália tinham passado directores literários como Gaspar Simões, Jorge de Sena ou Augusto Costa Dias…”. Quando relembra as várias editoras pelas quais passou, incluindo as que ele próprio criou, Cruz Santos não tem dúvidas: “A minha saudade maior ainda hoje é a Portugália”.
Agostinho Fernandes, diz, “era um homem nitidamente de direita, com amizades no regime, mas que tinha uma grande abertura: basta ver que estavam na sua editora o Alves Redol ou o José Gomes Ferreira”. Cruz Santos sentia-se bem na Portugália, mas nunca deixara de “sonhar com a criação de uma editora no Porto”. E decidiu-se finalmente, depois de quatro ou cinco anos na capital, a voltar à sua cidade natal e fundar a Inova. “Hoje lamento ter regressado, porque as coisas teriam sido mais fáceis em Lisboa”, admite. “Não vale a pena dizer-se o contrário: o meio do Porto é muito acanhado e mesquinho”. Em Lisboa pôde organizar iniciativas em colaboração com outras editoras, como a comemoração do centenário de Romain Rolland, algo que, diz, “seria impensável no Porto, onde o individualismo é mais feroz”.
Em 1967 começa, então, a construir a Inova. “As pessoas não imaginam o que era constituir uma editora naquela altura: era necessária uma autorização, que vinha da Presidência do Conselho, e foi preciso meter uma cunha a um homem a quem chamavam “o Lápis de Salazar”, um tal Paulo Rodrigues”. O facto de, no início, a Portugália ter entrado como sócia da Inova facilitou as coisas. “Acho que quem conseguiu desbloquear o processo foi o Ruy Cinatti”.A obra que marca a sua transição da Portugália para a Inova, e que sai ainda com dupla chancela, é uma edição especial do romance Aparição, de Vergílio Ferreira, ilustrada por Júlio Pomar e destinada a comemorar os 25 anos de vida literária do autor. Acondicionada numa caixa própria, ganhou o primeiro prémio na Bienal de S. Paulo.
Mas a edição que verdadeiramente inaugura a Inova é a antologia de prosa e verso sobre o Porto organizada por Eugénio de Andrade: Daqui Houve Nome Portugal. Com grafismo de Armando Alves, o livro anuncia uma das principais características de Cruz Santos como editor: o gosto de imaginar livros que não existem e de conseguir quem os faça.
Com Armando Alves a garantir a “fisionomia muito própria” das edições e Óscar Lopes como director literário, a Inova rapidamente se tornou uma chancela de referência na edição literária. Pelas suas várias colecções de poesia, cujos nomes evocavam os autores que Cruz Santos admirava – Coroa da Terra (Jorge de Sena), Obscuro Domínio (Eugénio de Andrade), Ocupação do Espaço (Ramos Rosa), Aprendiz de Feiticeiro (Carlos de Oliveira)… –, passaram praticamente todos os poetas relevantes da época. Só os oitenta e tal números da famosa colecção de plaquettes cor-de-tijolo O Oiro do Dia inclui nomes como Jorge de Sena, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa, Fernando Guimarães, José Bento (também como tradutor de poetas espanhóis), Ruy Belo, Fernando Assis Pacheco, Fiama Hasse Pais Brandão, Armando Silva Carvalho, Gastão Cruz, Vasco Graça Moura, João Miguel Fernandes Jorge, Joaquim Manuel Magalhães, Nuno Júdice ou Fernando Guerreiro.
Na ficção, a Inova apostou mais em traduções, devendo-se-lhe, por exemplo, a publicação de A Obra ao Negro, de Yourcenar. Mas a colecção que teve mais impacto na época talvez tenha sido a Civilização Portuguesa, onde saíram obras como Inquisição e Cristãos-Novos, de António José Saraiva, Fernando Pessoa Revisitado, de Eduardo Lourenço, ou Ler e Depois e Modo de Ler, de Óscar Lopes.
“Editava seis ou sete livros por mês, o que hoje só era possível a uma editora de grande capacidade financeira”, diz. Mas recorda que, na altura, “os editores faziam 30 por cento de desconto aos livreiros, e agora fazem 60, é só o dobro”.
Apesar dos contratempos com o regime – “entre livros proibidos e apreendidos, foram cerca de 40 títulos” –, a Inova lá ia singrando, “mas paradoxalmente entra em decadência com o 25 de Abril”. Cruz Santos explica porquê. “Até aí, grande parte dos livros era escoada para África – mais de 60 por cento da tiragem, em algumas obras –, e no pós-25 de Abril não foi mais nenhum”.
Ainda prossegue a aventura na editora O Oiro do Dia, que desaparecerá no início dos anos 80. Prolonga depois algumas das suas colecções noutras editoras, como a D. Quixote ou a Campo das Letras, até que, em 1999, Américo Areal o convida para a ASA, onde ficará dez anos e lançará a sua última colecção de poesia: a Pequeno Formato.
Desde os tempos da Portugália que, a par das suas funções de editor, gosta de promover homenagens públicas a autores que aprecia. “Tenho este lado comemorativo”, reconhece. Entre os homenageados contam-se Eugénio de Andrade, Herberto Helder (que não apreciou a atenção e, conta Cruz Santos, escreveu um artigo no Jornal de Letras a distanciar-se dela), Mário Cláudio ou Vasco Graça Moura. E espera “ter vida e saúde” para ainda prestar o devido tributo a Jorge de Sena, já a título póstumo, e a Maria Helena Rocha Pereira. Outras duas figuras que admira – e às quais já dedicou edições especiais – são o padre Américo e Álvaro Cunhal. “Pelo despojamento, e porque quiseram ambos melhorar o mundo, ainda que por caminhos diferentes”.Nos últimos anos, trabalha de novo por conta própria, na editora Modo de Ler, especializada em edições de luxo, como o livro-caixa dedicado ao pintor Henrique Pousão ou o volume que associa 25 Obras-Primas da Poesia Portuguesa & 25 Obras-Primas da Pintura Portuguesa. Prontas a sair, tem as obras Os Mais Belos Poemas Portugueses Escolhidos por 25 Poetas e 21 Personalidade do Século XX Escolhem 21 Figuras Portuguesas do Milénio, com prefácio de Ramalho Eanes.
E há dois romances que ainda não desistiu de publicar. “São dois livros fundamentais na minha vida: um é O Monte dos Vendavais [de Emily Brontë] e outro, que não saberia explicar por que é que me apanhou a ponto de o ter lido para aí vinte vezes, é o C, de Maurice Baring”.
Por Luís Miguel Queirós publicado in http://www.publico.pt