JÁ lhe chamaram o maior pintor português de sempre. Aos 90 anos, Júlio Resende continua inquieto. Mais na cabeça do que na tela porque, para isso, as forças já não chegam. E as suas mãos já não são deste tempo.

No atelier de Júlio Resende não bate o sol. O pintor explica que a luz em excesso deturpa as cores na tela. O rio Douro não se vê – adivinha-se, ao fundo. O que se vê por uma parede envidraçada é um jardim com metros quadrados suficientes para albergar um diospireiro e um melro-preto. Não há sinais dele durante a conversa. Se calhar por ser demasiado cedo.

Júlio Resende sempre gostou das manhãs por causa da expectativa que estas lhe trazem. Cartoonista, autor de histórias aos quadradinhos e ilustrador, além de pintor, dobrou em Novembro a esquina dos 90 anos. Uma semana depois, deram-lhe como presente uma morada definitiva para a sua “Ribeira Negra”, que esteve anos a ganhar poeira num armazém. Agora, pode ser vista no edifício da Alfândega do Porto.

Agora sim, o homem a quem um acidente nas falangetas impediu de se tornar pianista, diz-se feliz. Ainda instintivo, ainda inquieto, gostava que a casa que construiu para si lhe servisse de epitáfio. E gostava, sobretudo, de ainda ter forças para pintar um quadro grande antes de concordar com a iminência da morte.

Duvida da pertinência da sua voz e não percebe porque teimam em pôr-lhe gravadores à frente. Homem dado a inverter a ordem estabelecida, é ele que arranca com a entrevista. “Não sei por que me querem entrevistar…”

Para o ouvir e para o dar a conhecer a mais gente.
A minha fala tem as vozes do círculo cromático.

Muitas vezes se diz que um pintor não deve falar, deve pintar. Acho que isso é verdade, mas também acho que a pintura, como a fala, é sempre uma transmissão de ideias.

À pintura está subjacente uma compreensão do mundo que pressupõe o pensamento.
Eu acho que não será só aquilo que se diz mas a maneira como se diz. Aí há toda aquela técnica que faz as pessoas estarem a ouvir outra durante uma hora sem se fatigarem. E isso só acontece quando a pessoa consegue dizer aquilo que sente verdadeiramente e demonstrá-lo, até pelos gestos que faz. O cinema também tem isso: mostrar o que se quer de maneira a criar um todo em que há silêncios, hesitações ou então o gesto de olhar por cima de óculos (tenho que pôr óculos e não me apetece pôr óculos, sobretudo óculos escuros. Tiram-me a luz).

Continua a gostar de se levantar cedo.
Gosto muito da manhã. É algo que ainda me faz crer que eventualmente vou chegar ao fim do dia com qualquer coisa para revelar e que me fez sentir que vivi.

A ideia de expectativa?
É. Às vezes chego ao fim do dia e penso: “Que diabo, hoje não tenho nada que acrescentar.” Mas quase sempre há qualquer coisa. Às vezes coisas nas menos visíveis é que está aquilo que me interessa. Acho graça à paisagem, mas não precisa de ser uma coisa enorme: um palmo de terra chega.

Já conseguiu pintar o canto do seu melro preto?
Já hoje andou por ali. Há animais que reconhecem as pessoas. Não o pintei, mas já tenho aplicado o preto. O pintor sabe que quando usa o preto na tela há logo uma exaltação das cores.O preto ou o branco.

Alguém escreveu que teve na arte portuguesa contemporânea a dimensão que Picasso teve na arte internacional do século XX.
Ui! Que semelhanças podem encontrar? O Picasso não procura, o Picasso encontra. Eu procuro, continuo à procura.

O que é que se procura aos 90 anos?
Eu nem sei o que é que procuro. O que sei é que procuro. Eu, normalmente, não gosto de certezas. Não posso. Tanto que um dia destes fui ao oftalmologista e disse-lhe: “Olhe, sou pintor e preciso de ver. Mas não me ponha a ver bem de mais.” Acho que as coisas têm de ter sempre um certo mistério, porque é isso que as torna fascinantes e as faz levantar inquietações que fazem sofrer um bocadinho. Bom, voltando ao Picasso, reconheço que é o maior pintor do século XX. Não gosto de tudo o que ele fez, mas suponho que não há nenhum pintor inquieto que tenha posto o Picasso de lado. Eu fi-lo, depois de ter estado em Paris. Na altura, e estive lá dois anos, assisti à retoma de liderança dos destinos no pós-guerra. E, quando voltei, decidi que não queria saber dos problemas dos outros mas de quem sou.

Descobrir a sua própria mão, a sua voz.
O estar no mundo faz-nos conhecer melhor a nós próprios. De maneira que estive lá um tempo, procurei a minha forma de procurar a verdade e não conseguiria fazê-lo se não me situasse geograficamente dentro da Europa, na Península Ibérica.

Foram essas incursões que o fizeram descobrir-se português?
Com certeza. O estar em contacto com coisas diferentes coloca-nos perante esse problema de tentar encontrar as razões. Nós aqui somos um país onde o sol e a luminosidade têm uma importância muito grande, marcando realmente o que se vê e o que não se vê, o que está escondido, o claro/escuro. E os espanhóis sempre foram grandes pintores do claro/escuro. E foi assim que, depois dessa estadia em Paris, estive dois anos no Alentejo trabalhando as estruturas. Hoje sou um pintor muito da cor, mas, na altura, estive muito no claro/escuro.

Dizia há pouco que é preciso criar inquietação às pessoas, não escancarar aquilo que se quer dizer. Isso explica a evolução que houve na sua pintura: de formas precisas e sombrias para contornos mais esbatidos e para o uso de mais cor?
Isso teve a ver com o clima, com muitas coisas… Quem está no Alentejo naturalmente está envolto numa atmosfera diferente da do Norte. Lá, há aquele rigor do desenho, da estrutura, com coisas muito gravadas, porque a luz era tão forte que a sombra também ficava forte, marcando tudo com acinte. Quando voltei ao Norte, senti que aquelas silhuetas que eu via muito definidas no Alentejo aqui por vezes desapareciam, envoltas em neblinas.

Mas o Norte, ao contrário do Alentejo, é mais escuro e sombrio. Para essa posterior vivacidade cromática contribuíram as viagens que fez à Índia, ao Brasil, a África também?
Eu fui viajando no mês que tinha de férias como professor. Mas tentei sempre ficar o maior tempo possível em cada lugar, porque uma viagem exige que se contacte com as pessoas em diferentes graus de intensidade, enfim, ver como elas reagem perante o calendário e perante o clima. No Brasil, já o tenho dito, as estruturas da minha pintura modificaram-se. Porque chega-se lá e sente-se que, ao contrário do que se passa na velha e venerável Europa, as oblíquas são muito importantes. Isso modificou a minha pintura. Na cor também, mas não acho que o Brasil seja um país com muita cor. Acho-o até um bocado dramático naquele aparente ritmo muito mexido.

Os brasileiros têm a capacidade de ir levando a vida no meio dos problemas. Já o ouvi dizer que não gosta da vida demasiado arrumada.
Bem, quando fui professor dizia umas coisas mas não era para levar muito a sério. Como aquela coisa de saber montar uma paleta de cores: eu sei como é que antigamente se montava uma paleta, onde é que se punha o branco, mas isso são coisas que é bom saber mas não é para aplicar. Mas as viagens para mim foram pretexto para eu rever a minha pintura, sempre no sentido de evoluir na minha maneira de ser. Agora não sou uma pessoa que tenha modificado o íntimo.

O meu íntimo pode é abrir-se a outras premissas, segundo aquilo que me dão a natureza e as pessoas.

O que é que o distingue?
Eu sou aquilo que faço e pinto. Sou expressionista. Uma pessoa é expressionista porquê? Porque exalta certas coisas e desinteressa-se por outras. Começo sempre a trabalhar sem saber muito bem aquilo que vou fazer. Gosto muito do meu instinto, daquilo que vem e que depois controlo. Naturalmente, não vou até ao fim nesse devaneio. Em devido tempo, a reflexão vem ao de cima.

Já fez algum auto-retrato?
Um retrato é sempre um auto-retrato. Já fiz alguns que me pediram para fazer e achei sempre que aquilo não atingia os objectivos.

É curioso, porque na pintura é como se andasse à procura de captar a essência das pessoas.
Ah sim. Mas não com retratos. Os meus quadros são tudo aquilo que integra o movimento do corpo em relação ao movimento das coisas que parecem estar paradas. É sempre o homem numa relação com a natureza.Para mim, isso tem sido útil porque a minha pintura resulta muito daquilo que os olhos viram e mandaram depois para o pensamento. Eu não sou um pintor… Vamos lá a ver, há pintores que gostam, por exemplo, de temas mitológicos, como Picasso. E sinto que há bons ilustradores, eu não serei um bom ilustrador. Antes de mais, porque ilustrar um texto é perigoso. Mas tenho-o feito. E até ganhei um prémio por isso.

Ainda pinta todos os dias com algum tipo de disciplina diária?
Para mim, pintar é respirar. Infelizmente, neste momento, com 90 anos, não é uma questão de paciência, mas é a impossibilidade… Sabe que eu ainda pinto a óleo, embora saiba que muitos pintores puseram o óleo de lado, gosto daquele cheiro e das possibilidades do óleo. Agora, os tubos da tinta já não consigo fechá-los. São incapacidades que limitam um bocadinho o meu fogo interior, o movimento das mãos.

Mas as inquietudes continuam aí?
E estão mais crescidas até. Mas eu queria fazer e não posso. Estou um pouco impedido, até pelo terapeuta com quem faço fisioterapia.

A velhice é isso? O corpo não acompanhar a mente?
O movimento do corpo é fundamental. Eu sou um pintor de gestos e o gesto é uma parte da questão, é o desenho, pode ser a cor… Com a velhice, há coisas que o querer não pode. Mas estou satisfeito. E depois também acho que o século XXI é para os pintores de agora. Eu sou do século XX. Se até os telemóveis me afligem, não tenho mãos para eles.

A idade também lhe trouxe alguma impaciência acrescida?
O que eu sinto é que as pessoas estão tão stressadas e se calhar até já nem se apercebem de que estão stressadas. Ora, eu recuso-me a perder tempo com coisas que não são problemas. Eu tenho um neto e acredito muito na juventude, mas é com eles. Eu não quero perder tempo e, como não posso sair como podia, tenho mesmo de aproveitar todos os instantes.

Devagar?
A correr também não poderia [risos]. O que eu queria era arrumar as coisas. Arrumar no sentido de dizer, sim senhor, acabou, posso-me deitar, adormecer, acabou, não me interessa, etc. Queria sentir isso porque seria sinal de que tinha feito tudo o que queria fazer. Mas eu ainda queria fazer um quadro muito grande.

Sobre quê?
Ainda não sei. Uma pessoa quando sabe exactamente o que vai fazer deixa de o fazer. Eu gosto muito das coisas que não se vêem todas, que não são totalmente perceptíveis.

O que acha que lhe vai sobreviver?
Que imagem gostava de deixar de si? Eu já ficava muito contente se dissessem: “O fulano foi um teimoso, pintou até ao fim.” Que dissessem que sou uma pessoa que acreditava nos outros, porque acredito. E por isso é que criei aqui este Lugar do Desenho. Para que as pessoas se possam inquietar um pouco com o dia-a-dia, falar uns com os outros, pôr as questões, sem se esquecerem que isso é uma questão de responsabilidade.

Essa foi a ideia que quis deixar.

Em que momento percebe que há-de ser pintor?
Sabe que, quando entrei para a Escola de Belas-Artes, era raríssima a pessoa que ia fazer um curso de Pintura. Era uma espécie de suicídio antecipado. Eu fui. E ainda hoje me irrita que as pessoas olhem para uma pintura e vejam euros.

Li que pelos 12 anos começou a publicar “cartoons” nos jornais, empenhado que estava em demonstrar ao seu pai que podia ganhar a vida sem ser atrás do balcão como ele.
E foi mesmo por aí que comecei. Eu, não é que tenha graça, mas tenho muito sentido de humor e isso ajudou-me nos “cartoons”. Durante muitos anos, pintava e simultaneamente ia fazendo os meus “cartoons”.

O seu pai fotografava e tocava piano.
E viola, que ensinou à minha mãe. Ela foi professora e compositora. O meu irmão também tocava muitos instrumentos. Tive sorte na família que tive, os meus pais, os irmãos. Não era muito frequente obrigar as pessoas a ter projectos. A minha era uma família sobretudo de músicos.

Como é que depois deriva para a pintura.
É que eu tive um acidente aos sete anos que me estragou as falangetas da mão esquerda. Fiquei sem poder tocar piano, não é? Daí a pintura, onde comecei muito cedo. Quando fui para a Escola de Belas-Artes, já pintava de forma clássica.

Já tinha frequentado um atelier.
Na Cedofeita, com um professor da velha guarda mas muito competente. Com ele aprendi banda desenhada, aprendi coisas que depois tive de esquecer, mas que se baseavam em razões muito fortes que ainda hoje me servem.

Os seus pais apoiavam essa escolha.
Sim, sim. Eles nunca me impediram, pelo contrário.

Isso foi um desenvolvimento natural do ambiente que se vivia lá em casa.

Que memórias tem da sua mãe?
A minha mãe era um vulcão. Tinha uma capacidade extraordinária. Mesmo quando estava por vezes acamada, continuava muito activa. Acho que ela terá sido precursora do ensino da música na época. Criou uma orquestra numa altura em que essas coisas não eram fáceis. O meu avô era uma pessoa curiosa que tinha uma oficina de encadernação. Era um homem de uma cultura grande e os escritores passavam muito tempo a falar com ele. Ele costumava, aliás, contar-me o encontro que teve com o Camilo [Castelo Branco]. Para mim foi uma referência.

Ia-se esbarrando lá com alguns escritores?
Eu tenho um relacionamento com escritores mais tarde. Com o Vergílio Ferreira, com o Eugénio [de Andrade], hoje sou amigo do Mário Cláudio. São como irmãos ou companheiros deste percurso do espírito.

Em que momento decide ir lá para fora, o que é que o leva?
A minha primeira exposição ocorreu em 1943 e, nessa altura, relacionei-me com um jovem inglês que olhou para as minhas coisas e gostou.

Tornámo-nos amigos. Um dia, passado um ano ou dois, ele escreveu-me a convidar-me para passar um tempo em Madrid, de cuja embaixada inglesa ele fazia parte. E eu fui passar 15 dias a Madrid a olhar para o Goya.

O que o prendia ao Goya?
Eu só conheci depois a vida dele. Na altura, o seu lado de sombras, aqueles violetas, aquelas formas… A fase negra dele para mim foi uma descoberta e fiquei preso ao Goya muito tempo.

Agora libertei-me um pouco, mas ainda tenho ali um Goya que pintei no Louvre. Eu aprendi a pintar a fazer cópias dos outros.

Mais tarde, quando regressa de Paris, Inglaterra, Itália, como é que se reencaixa no Portugal da ordem salazarista?
Enquanto estive fora, passaram-se aqui coisas um bocado estranhas. Uma delas foi a destruição de uma pintura que o [ Júlio] Pomar fez no Cinema Batalha. Isso foi um “handicap” muito grande para nós, a falta de conhecimento que tínhamos do que acontecia lá fora. Olhe, falávamos um pouco às escuras. O conhecimento de literatura ainda vá, mas, em termos de pintores, cá só chegavam os oficiais, os tais que pintavam naturezas mortas ou os pintores do gerúndio: a menina à janela esperando, voltando, agradecendo… Havia um grupo que se formou dentro da escola, onde estavam também o Nadir [Afonso], o [Fernando] Lanhas, que procurava quebrar essa barreira.

A política esteve espelhada no que pintou?
Na altura do neo-realismo, as minhas pinturas faziam sentido porque a temática me era cara.

Ainda hoje pinto as coisas mais simples.

Mas era a consciência política que o fazia ficar rente às pessoas simples?
Sabe por que é que eu gosto das pessoas simples? Porque são aquelas em que confio mais, por mostrarem exactamente o que são. É isso que me dá a rede, dão sempre a garantia de verdade.

Aí não gosta do oculto, do que se esconde. Aí gosta da verdade escancarada.
Parece um contra-senso… O Porto ainda é uma cidade expressionista. As pessoas não escondem o desabafo. Aquela Ribeira para mim ainda é das coisas…

A “Ribeira Negra”?Chamei-lhe negra porque tinha de dar um título e branca não podia ser.

É um homem feliz?
Sou, naturalmente que é uma felicidade que conhece o peso da infelicidade. Mas sou teimosamente feliz. E sou um optimista por natureza.

Um dia ouvi-o dizer que sempre foi muito feliz. Há quem associe a criação a uma certa angústia. No seu caso, o motor da criação não é o sofrimento?
É engraçado. É frequente eu e a minha mulher termos conversas que têm a ver com isso. Eu digo assim: “Hoje, não fiz nada de interessante, vou para o atelier.” E ela não quer, acha que estou a abusar, e diz: “Tu gostas disso…” Quer dizer, não é uma questão de gostar da angústia, desta dificuldade em encontrar a chave. É uma coisa que tem que ser.

E voltamos ao início: é como respirar. Não se pode deixar de o fazer.
É assim. As pessoas às vezes não entendem, mas é assim.

E a morte?
Cada vez me assusta menos. À medida que se aproxima, preocupa-me menos. Sabe, estou tão cheio de fazer coisas que me aborrecem: de pagar isto e aquilo, coisas que qualquer cidadão tem de fazer mas que me aborrecem de tal maneira que me fazem ficar cheio disto. É verdade que a morte cada vez me preocupa menos, mas não digo que a deseje. O que desejo é que as coisas se façam como deve ser e como estava previsto.

Há aí uma espécie de reconciliação com a ideia de morte.
Estou muito reconciliado, muito, muito. Mas também não a quero apressar [risos].

Entrevista de Natália Faria publicada na revista PÚBLICA em 10 de fevereiro de 2008 e republicada online in PÚBLICO  em 21 de Setembro de 2011

Partilha

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Please enter your name here