Nas noites calmas e quentes de Verão, o seu rugido chegava-nos a Gaia, vindo dos lados do Palácio de Cristal.
Era o infeliz Sofala, enjaulado, cujas patas emprestadas à Esfinge o davam por vencido não por sansão nos vinhedos de Timná, mas pela estupidez humana, por uma pulsão carcerária.
Nessas noites, quanto veemente amor não tinha para a leoa que o chamava em vão. Tão soberano, luminoso apagado, tão solar cativo de jaula infecta e escura. Era admirável, mas insuportável sua prisão e tristeza, sua juba desgrenhada à quanto tempo não corria pela savana…
Não podia ser o leão errante que apaga o seu retrato com sua cauda, tal como Jesus que enviado pelo Pai, manteve ocultas as marcas da sua divindade.
Alguns escritos místicos viram no seu rugido a imagem da poderosa palavra Cristo, formidável voz que ressoa nas imensas extensões do deserto. Mas os sons que eu ouvia tinham uma origem e um sentido opostos.
Aquele que poderia ser uma divisa da verdade triunfante e livre, jazia fora de qualquer salvação simbólica.
Eu dizia ruge! Não o vi em liberdade, estive à sua frente em situação humilhante.
À entrada da porta de Micenas, lembrei-me dele.
Adelino Ínsua in Bestiário Íntimo, edições Húmus, 2024, página 60