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Lizarda e Manuel Pereira

Lizarda e Manuel Pereira

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LIZARDA e Manuel Pereira gostam de assistir a julgamentos e fazem-no quase diariamente pela adrenalina e pelos ensinamentos que retiram de cada sessão. Viram o julgamento de Gisberta. O de Pinto da Costa e Carolina Salgado, também. E o do bruxo, que burlava pessoas, é um dos casos preferidos. Manuel, 75 anos e Lizarda, 67, conhecem o tribunal de cor, estão familiarizados com as togas e todos os procedimentos. Porém, não são advogados nem juízes.

Para Lizarda a aventura pelo mundo da justiça começou por volta dos 30. Lembra-se de ter assistido ao julgamento do padre Mário da Lixa, o pároco que foi preso várias vezes pela PIDE-DGS quando exercia na paróquia de Macieira da Lixa, em Felgueiras, e depois se tornou jornalista e autor de obras polémicas. Corria o ano de 1973.

A partir daí, Lizarda tomou-lhe o gosto e não mais parou. “Comecei a ir com a mãe da minha cunhada. Tinha para aí 30 anos e desafiei-a porque não queria ir sozinha”, conta ao PÚBLICO, sentada no sofá da sua sala de estar.

A conversa vai avançada, Lizarda prossegue animada, num tom de voz ligeiramente agudo. “Tinha o sangue a correr-me nas veias, porque o meu bisavô era desembargador e tenho família de advogados.” Nas paredes há fotografias deles a preto e branco. “Está a ver, o próprio sangue me puxava para julgamentos”.

Puxava-a e ela e a dois irmãos que – depois de voltarem de Paredes, onde nasceram – passaram a acompanhá-la tanto no Tribunal Criminal de São João Novo, no Porto, como nos juízos criminais perto do Mercado do Bolhão.

Há quatro anos, Manuel – o marido – teve um AVC e Lizarda, em conjunto com o médico, aplicou-lhe uma terapia simples e eficaz: assistir a julgamentos. “É que há julgamentos que são tão interessantes e nos dão tanta adrenalina… Começámos a entusiasmar o meu marido para ir também. Notávamos que lhe fazia bem tentar julgar os casos que ouvia”, argumenta.

Aos poucos, Manuel deixou-se influenciar pelo fascínio de ouvir argumentos de defesa e de acusação dentro de uma sala de audiência. “E o médico achou que era uma maneira de ele exercitar o cérebro, não o deixa parar. Foi um curativo”, descreve.

No Verão, a irmã de Lizarda sofreu o mesmo problema e, por isso, o casal deixou de assistir a julgamentos. Porém, a vontade de regressar e as recordações aumentam de dia para dia. “Não íamos todos os dias, mas íamos muitas vezes. Por vezes, os julgamentos tornavam-se tão interessantes que queríamos ir às sessões todas”.

Casos para rir e para chorar

Ao longo dos anos, Lizarda já perdeu a conta aos julgamentos a que assistiu, sobretudo desde que deixou de trabalhar como secretária ou desde que o marido se reformou. Agora, pode não saber as datas de cor, nem exactamente qual o juiz que presidiu à sessão, mas lembra-se perfeitamente das histórias preferidas.

“Vi um julgamento sobre um bruxo brasileiro que achei o máximo. Aquele fulano correu praticamente Portugal inteiro e foi apanhado a embarcar para o Brasil. Veio nos jornais e tudo!”

Segundo a imprensa, trata-se de Diamantino Gimenez – ou “Mestre Dami” –, um bruxo que dizia quebrar feitiços, e que foi julgado em 2009.

“Era um indivíduo que dizia que punha tudo em paz e ordem, os problemas, quer físicos, quer espirituais e as pessoas aflitas recorriam a ele. A história resumiu-se nisto: ele dizia para levarem um género de um cofre com as notas lá dentro e as pessoas levavam – às vezes, 40 mil contos [200 mil euros] e mais! As pessoas empenhavam-se, porque não tinham dinheiro, mas a aflição era tanta que iam pedir ao banco. Quando chegavam, o bruxo dizia que tinham de dormir durante um certo tempo com a caixa debaixo da cama e depois tinham de lá voltar, mas nessa altura [pedia às pessoas para fecharem os olhos e rezarem e] trocava-a por uma caixa igual”.

O maior valor numa burla foi de 210 mil euros. Na nova caixa apareceu um coelho em decomposição. “E ele dizia que as pessoas tinham quebrado o feitiço e que o animal tinha comido o dinheiro e as pessoas ficavam sem nada”, resume Lizarda.

“Mestre Dami” foi condenado a três anos e dez meses de prisão efectiva por três crimes de burla agravada e obrigado a indemnizar as vítimas pelos danos morais causados.

De cada vez que sobe os degraus de pedra do tribunal, Lizarda sente-se como se voltasse à escola. As salas de audiência são como salas de aulas, onde se dão lições de vida. “Aprendemos como é que as pessoas nos burlam, ou como é que nos roubam. Até ficamos parvos como é que as pessoas se lembraram de fazer, aquilo que resolveram fazer. Por exemplo, eu não meto na minha casa qualquer pessoa. Mesmo trabalhadores, não gosto, porque fazem determinados truques que conseguem ajudá-los a roubar. Tiram-se grandes ensinamentos quando se está lá a ouvir”.

Subitamente, fica calada. Sorri. Este era o mote para se lembrar de mais um caso. Penteia o cabelo liso e endireita o lenço que traz ao pescoço. “Assisti a um julgamento de carjacking e aprendi tanto! Como é possível? Se nos aparece uma pessoa quando vamos com os netos atrás e nos travam o carro, como é? E nós aprendemos: por exemplo, se nos estiverem a seguir e nos derem uma panada, vamos mas é para a frente e não queremos saber da panada!”

Olha para a fotografia das netas pousada em cima da mesa. Fala depressa, à velocidade do entusiasmo. “Esse foi um julgamento engraçado, conseguíamos ver a reacção das pessoas. Porque o juiz perguntava: ‘Como é que ele [o réu] era?’ e a pessoa dizia: ‘Eu não vi a cara’. O juiz, então, dava a característica de um que estava lá sentado e, se por acaso dizia que era alto, forte ou não sei o quê, começávamos a ver os réus a escorregar pelo banco. E nós a pensar: ‘Aquele está comprometido!’ E era impossível não estar”.

Depois há os outros casos. Os mais sérios, que não lhe dão vontade de rir. Pelo contrário, impressionam-na e chegam a comovê-la. “Vi um julgamento acerca de maus tratos num lar e o dr. Grilo [João Amaral Grilo, juiz que conduziu o julgamento] mandava-lhe cada uma, muito bem ditas! E a fulana apanhou. Tratavam muito mal os velhinhos nesse lar”, recorda, deixando transparecer a indignação.

Movidos pela curiosidade

Adquirido o estatuto de assistentes frequentes, no Tribunal de São João Novo não há quem não conheça Lizarda e Manuel. De juízes a advogados, passando por funcionários e polícias, a presença do casal faz parte da rotina.

Ana Paula Pacheco é uma dessas pessoas. Sentada atrás de um computador numa das varas criminais, trabalha naquele tribunal há quatro anos.

“Sim, conheço-a bem. Até lhe chamávamos ‘a assistente’. Por vezes, vinha sozinha, outras com o marido.” Aponta o número de um processo numa folha de papel. Continua: “Já não os vejo há algum tempo. Será que o marido está doente? Espero que não, que esteja tudo bem. Às vezes telefonava antes de vir para saber o que havia, outras vezes via as notícias no jornal e depois vinha”, conta Ana Paula.

Manuel chega a casa e junta-se à conversa. Sorridente, fala num ritmo mais pausado do que a mulher, como se escolhesse as palavras mais correctas para dizer. “O mais interessante são as conjugações que podemos fazer quando assistimos aos julgamentos. Eu próprio cheguei a criar uma espécie de tribunal quando estive na tropa…” Lizarda não o deixa terminar: “Oh, mas isso foi a brincar, não era a sério. Ele esteve no ultramar em Angola”, remata.

Além das pessoas, passaram a conhecer bem o edifício do século XVI, que em 1863 passou de convento a tribunal e ali está na rua com o mesmo nome. Sabem onde fica cada vara e cada sala de audiência. Conhecem bem o jardim central e a fonte de pedra onde nadam alguns peixes vermelhos.

O som dos passos apressados e do esvoaçar das togas é-lhes igualmente familiar. Já se sentaram em quase todos os bancos de madeira dispostos nos corredores em forma de claustro e há muito que deixaram de sentir curiosidade pelos motivos florais dos azulejos que tapam a metade inferior dos muros de pedra.

Falam numa “casa de dignidade”, comparável a uma igreja onde é necessário ter compostura. Não abrandam sequer o passo ao aproximarem-se da janela com grades de ferro que, no primeiro andar, oferece a quem sobe – ou a quem desce – uma vista turística dos barcos rabelos atracados no cais de Gaia. “Conheço o edifício muito bem, é pena estar tão degradado. Conheço tudo. Aquilo tornou-se melhor do que ir a um psiquiatra. Enquanto estou lá distraio-me, ponho-me a pensar”, afirma Lizarda.

Fá-lo por gosto. Gosta de ouvir os juízes, gosta da adrenalina da resolução, da solenidade da cerimónia e da imponência dos trajes que se usam, mas tem dúvidas se gostaria de ter sido juíza. “É muito difícil julgar, admiro os juízes, mas, às vezes, ponho-me a pensar: ‘Quantas vezes eles devem estar sem dormir a pensar como hão-de dar o acórdão?’” Porém, se não estiver a gostar, não insiste. “Há uns [julgamentos] que não têm interesse nenhum. Nessas alturas, levanto-me, saio da sala e vou para outra”. É peremptória: “Se não gostar, vou-me embora.”

Outras tendências

Na maioria das vezes ficam para ouvir a sentença e é por isso que o juiz Elias Tomé também os conhece: “Às vezes aparecem outras pessoas como eles, mas não tão frequentemente. Geralmente são pessoas mais velhas. Mais novos há poucos, a não ser que estejam ligados ao Direito, como advogados estagiários”, conta o magistrado, minutos antes de entrar para a sala de audiência.

Daniela Bastos, 28 anos, está a estagiar numa sociedade de advogados. Há três anos que assiste a julgamentos no Tribunal de São João Novo, duas a três vezes por mês e, por isso, já vai conhecendo a perspicácia de cada advogado. “Costumo sentar-me junto do público em geral e procuro casos penais iguais àqueles com que estou a trabalhar. Gosto de ouvir os argumentos e tento aprender com isso”, conta.

Georgina Braz, 58 anos, trabalha há 15 na secretaria dos dois tribunais – São João Novo e juízos criminais – e fala noutra tendência. “Há pessoas que são notificadas para um julgamento e, como nunca foram a nenhum, vêm assistir para saberem como agir e não ficarem tão constrangidas”, conta a funcionária. “Há pessoas que caem aqui, mas não quer dizer que sejam más pessoas”, salienta.

Lizarda até os poderia ajudar, tantos os julgamentos a que já assistiu. “Foi uma das coisas da minha vida que mais gostei de fazer: assistir a julgamentos”. “Dá-me adrenalina. Porque, por exemplo, no cinema, vou para lá dormir. Enquanto o meu marido vê, eu não vejo. Acho que é deitar dinheiro fora, porque me dá sono.”

Texto de Marta Portocarrero e fotografia de Rui Farinha in http://www.publico.pt/

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