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Manuel António Pina (1943-2012)

Manuel António Pina (1943-2012)

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HOJE Manuel António Pina (1943-2012) faria 74 anos. Um a um, três dos seus grandes amigos, chamemos-lhes parte do comité central, entram no restaurante Convívio, no Porto, terra onde Pina não nasceu mas que fez sua, depois do Sabugal. Primeiro chega João Luiz, fundador da companhia Pé de Vento, amigo de liceu do poeta que tantos textos dele levou e leva à cena, depois o jornalista Germano Silva, camarada de redação e de vida de Pina. “Vamos para o outro lado, não era para este que o Pina vinha”, diz. Vamos para o outro lado. Apertam as mãos a quem ali trabalha e apontam para a pintura de Luiz Darocha, onde figuram Germano e Pina ali mesmo, à porta do Convívio. Um pouco mais tarde, entra Álvaro Magalhães que, só conhecendo o poeta nos anos 1980, fez-se todavia seu amigo de infância e dele fez um tão cómico quanto ternurento retrato em O Senhor Pina (2013).

Os três são fundadores e parte do Clube dos Amigos à Espera do Pina. Estarão hoje, às 21.30 no Teatro da Vilarinha, para o lançamento de A Noite, peça de Pina encenada por João Luiz em 2001, e agora publicada pela Assírio & Alvim, com ilustração de Abigail Ascenso. O clube, esse, hoje conta com mais de 40 membros. O nome vem dos épicos atrasos de Manuel António Pina a qualquer encontro ou compromisso. Por outro lado, e não é preciso que o digam, há como que essa esperança quase espera de que o próprio poeta falou em “Carta a Mário Cesariny no dia da sua morte”: A gente vê-se um dia destes por Aí. Não se adivinhem, contudo, lamentos, que foram muitas as gargalhadas no traçar desta espécie de retrato do Prémio Camões de 2011, poeta, escritor para a infância, jornalista, cronista, sportinguista ferranho, condutor colérico, pioneiro nas letras, homem bom. “A gente tanto esperou que continuamos à espera”, lança num sorriso João Luiz.

Álvaro Magalhães diz que “ninguém consegue imitar” o Pina. “Ele era capaz de andar um mês para decidir sobre uma palavra, sobre um adjetivo.” Germano intervém: “Ele era hipocondríaco. Começava os poemas naquelas bulas [dos medicamentos]. Chegava ao jornal [Jornal de Notícias] passava aquilo, e deitava para o lixo. Eu apanhava e guardava. O Pina era uma pessoa singular…” Dizem que o poeta passava de um assunto para o outro a uma velocidade estonteante e num mesmo ritmo – a filha Sara diria mais à frente como o pai falava da mesma forma de Winnie the Pooh ou Jorge Luís Borges (um dos seus heróis literários, segundo o jornalista Luís Miguel Queirós) -, mas a falar dele também os seus amigos o fazem.

Germano, veterano do Jornal de Notícias que, volta e meia, pode ser visto com um megafone, seguido por mais de uma centena de pessoas a quem serve de guia pela cidade do Porto, conta que a certa altura Manuel António Pina conheceu um sem-abrigo que havia trabalhado num alfarrabista e era um grande leitor da sua obra. “Senhor Doutor, li o seu último livro”, ter-lhe-á gritado um dia. “O Pina ficou muito sensibilizado”. Ele que, para Germano Silva, foi “o grande jornalista de talento” que lhe passou pela frente. Ele que começou a escrever para o Jornal de Notícias ainda na tropa. “Inovou muita coisa no jornalismo e fez algumas reportagens célebres.” Num Natal, por exemplo, Pina foi para um reformatório, com miúdos condenados, “perguntar-lhes se sabiam quem era Jesus, o que era o Natal, a Estrela de Belém”.

E por falar em Jesus, João Luiz conta terem descoberto há pouco, nos arquivos da PIDE que estão na Torre do Tombo, que a história “O menino Jesus que não queria ser Deus” terá sido uma das responsáveis por, em 1974, pouco antes do 25 de abril, decorrer um abaixo-assinado de algumas mães de Aveiro que queriam mandar retirar o livro O País das Pessoas de Pernas para o Ar (1973).

“Não imagina a quantidade de vezes que eu ouvi outros autores dizer: “Se não fosse o Pina eu não estava aqui a fazer isto… Ele abriu um caminho”, afirma Álvaro Magalhães, com quem o poeta chegou a escrever séries para a televisão que insistia, contudo, em não assinar com o seu nome. “Ele dizia que há coisas que a gente faz para ganhar a vida, há outras que a gente faz para salvar a vida”.

As histórias que, dizem, Pina era especialista em contar, sucedem-se. Ora para testemunhar o seu agudo sentido de humor, ora o seu forte sentido de justiça ou a forma como sucessivamente se perdia. “Ele achava que perder-se era melhor do que aquilo que a gente ia fazer. Cismava que ia por um caminho. Parece que fazia de propósito. Tínhamos de estar lá às três, chegávamos de noite”, conta Álvaro. Era aí, porém, que as coisas, a vida, aconteciam. Quando, pelo contrário, cumpriam o combinado, e iam “às sessões” programadas, Manuel António Pina declarava, numa espécie de lamento estóico: “Bem, pelo menos não choveu, já foi uma grande proeza.” É uma coisa do Joanica-Puff“, explica Álvaro.

Germano conta que um dia Pina estava com Óscar Lopes e apareceu Eugénio de Andrade. Uma senhora dirigiu-se a este último para lhe oferecer o livro de poemas que tinha escrito, com uma dedicatória. “Tire-me isso daqui, tire-me isso daqui”, terá dito o poeta. “O Pina ficou incomodadíssimo, foi atrás dela, pegou no livro e depois pediu-me: Metemos lá numa página [do jornal]…” “Ele tinha esse lado de proteção, da justiça. Queria salvar daquela humilhação”, completa João Luiz.

Noutra vez, Pina, de carro (em que uma vez quis bater com um ferro a um enorme camionista), viu uma mulher com uma criança ao colo e acho que esta precisava de ir para o hospital. Rapidamente parou para que elas entrassem, ao que a senhora, conta Germano, grita: “Fuja que ele vem aí com uma espingarda!” Rapidamente se percebe porque é que a noite no Convívio durava até às portas fecharem. Dali, alguns deles seguiam para o Angola, para jogar bilhar.

Sara e Ana (quem não ouve imediatamente A Ana quer nunca ter saído da barriga da mãe?), as filhas de Pina com quem muitas vezes se terão cruzado aqueles que leram a sua obra, viam-no muitas vezes chegar a casa de manhã vindo do jornal, ou então da divisão ao lado, o escritório, onde escrevia. Às vezes tomava o pequeno-almoço com elas, depois elas seguiam para a escola, e ele ia dormir.

“Tive essa sorte de ter um pai que me ensinou imensas coisas com histórias. Até acontecimentos do dia, descobertas científicas, ele contava como se fosse uma história. Não tenho grande ideia de os meus pais nos lerem livros, como geralmente fazem os pais à noite. Era uma coisa, por exemplo, de ele ir levar-nos à escola, irmos no carro, irmos a algum lado no fim-de-semana, ou a caminho de casa dos meus avós, e ele contar coisas. Por outro lado, ele incentivava-nos muito a pensar de maneiras diferentes. E às vezes sugeria: e se agora fizéssemos uma coisa completamente diferente? E dava uma ideia estapafúrdia. Aquela coisa de pensar de pernas para o ar.” Sara – A Sara prefere entrar / nas palavras, nos desenhos, e ficar, escreveu ele em “Era uma vez” – lembra-se de ter sido castigada na pré-primária “porque insistia em pintar o sol de azul, e gostava de pôr a relva a crescer ao contrário.”

Lembra-se, ainda, do pai com “milhares de papelinhos e Moleskines”, e de brincar às caricas enquanto os pais participavam em tertúlias políticas, depois do 25 de abril, durante tardes no Piolho.

Não é longe desse café, que na verdade se chama Âncora d”Ouro mas que todos conhecem assim, que encontramos Ana Luísa Amaral, poeta amiga desse outro poeta, ausente neste dia no Porto. Conheceu-o pelos livros infantis, só depois a poesia, eixo da sua obra. Recorda a sua “bondade, o grande sentido de humor, a inteligência rápida”. Lembra-o a falar de um dos seus filmes preferidos, Some Came Running (Deus sabe quanto amei), de Vincent Minelli, que, garantia, não era capaz de ver sem chorar. Lembra-o a contar anedotas. E depois conta, também ela, uma história.

“Quando conheceu a minha filha, a Rita, ela disse-lhe que tinha perdido o avô. E ele: “Deixa lá que eu vou ser o teu avô adotivo.” Ela tem uma serie de livros assinados por ele e dizem: “Do seu avô adotivo, Manuel.”” Conhecido pela relação próxima com gatos, foi a Pina que Ana Luísa ligou quando precisou de ajuda para resolver a mudança súbita de comportamento da sua gata quando uma outra entrou em casa. “Olha lá, tu gostavas de ser trocada? Fazes favor agora dás-lhe muita atenção, muitos mimos”, disse-lhe Pina.

Uma personagem invulgar

“Há um conto do Borges, “Aproximação a Almotásim”, é a história de uns tipos que procuram outro e conseguem descobri-lo através da influência que ele foi deixando nas pessoas com quem contactou. O Pina tem isso, à medida que falas com pessoas que o conheceram. Faz uma falta incrível. Talvez o que mostra melhor o que ele era é como faz falta a muita gente, e a muitos tipos de pessoas, e de formas diferentes. Era uma personagem totalmente invulgar”, diz Luís Miguel Queirós, jornalista do Público, seu amigo a quem, conta Germano Silva, Pina ligava sempre que estava a escrever um livro. “Disse-me uma coisa que acho muito significativa quando o entrevistei depois de ele ter ganho o Prémio Camões: que tinha receio de ter feito batota. Isso é muito dele. Ao mesmo tempo que não se levava a sério, levava-se totalmente a serio.”

Se muitos cantam palavras que Pina escreveu, tal deve-se a Suzana Ralha, fundadora do Bando dos Gambozinos, a escola para crianças que é simultaneamente um grupo que deu voz a muitos poemas dele, como de autores que vão de José Mário Branco a Jorge Sousa Braga. À entrada da escola, quase camuflada na rua de Francos, está uma placa de metal com os versos de Pina gravados (os mesmos que João Luiz citou de cor quando lhe dissemos para onde iríamos): Nós somos os gambozinos / que quando éreis meninos / esperastes com um saco / à saída de um buraco.

Suzana conta que muitas das personagens criadas pelo poeta, do papão à bruxa, continuam muito presentes no imaginário daquelas crianças, assim como as suas palavras. E diz que hoje continuamente se apercebe como cita frases de Pina no dia-a-dia. Por exemplo, quando uma pessoa regressa e diz estar cheia de saudades, ela diz, com Pina: “A gente gosta sempre de estar num sítio onde o sinaleiro nos diz: Passe, passe, senhor arquiteto.” Pessoas como ele, afirma, “fazem muita falta”, e “esqueceram-se de dizer o que é que ia acontecer aos outros quando eles se fossem embora”. Mas pelo menos não chovia, já foi uma grande proeza.

Por Mariana Pereira publicado in Diário de Notícias

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