MANUEL Figueiredo da Silva, mais conhecido por “Bodas”, nasceu em Aver-o-Mar em 1942. Filho de uma família numerosa, nove irmãos, a vida nunca libertou tempo para a brincadeira: “fui criado no campo. As gigas serviam de berço aos filhos dos seareiros. Muitas vezes íamos de madrugada para o campo e vínhamos noite dentro. A escola era o único lugar onde sobrava um tempinho para as brincadeiras, como jogar à bola ou ao pião. Ainda fiz a 4ª classe, de resto era campo escola e escola campo. Era um tempo de escravatura. Os pobres saiam da escola e nunca mais pegavam num lápis nem liam nada. Só voltei a ler e a escrever na tropa. Tinha tempo, aperfeiçoei a letra e avivei a memória. Escrevi muitas cartas para a minha namorada, actual mulher”.
Manuel Bodas recorda o tempo de namoro: “havia muito respeito e honestidade. Na minha juventude, aos domingos, as moças sentavam-se nos muros da estrada velha, do cruzeiro até à Igreja e a gente ia gatinhando na conversa até sair dali namoro. Um beijo durava meses, dar as mãos na rua às vezes anos e o resto vinha com o casamento. Também se iniciava o amor nas desfolhadas, onde quem encontrasse uma espiga vermelha podia dar um beijo na face da sua amada. Hoje em dia é às descaradas, na rua ou no café. No meu tempo os jovens nem sequer frequentavam as tascas, só depois de casar. Em 1966 eu casei com Geraldina Flores, a mãe do meu único filho”.
Aver-o-Mar ficou conhecida pela terra dos agricultores-pescadores, uma dupla profissão que Manuel Bodas abraçou desde muito jovem. “Trabalhei toda a vida no campo e no mar. O meu pai tinha um barco à vela e a remos (uma Catraia). Ainda adolescente, já ia pescar faneca ou peixe-espada para o mar de Apúlia. Saíamos a remos ou à vela se houvesse vento, quase sempre noite prego, duas ou três horas da madrugada. Às vezes mal dava para comer, outras ainda se vendia um peixito. Também fui ao mar com o meu sogro. Quando o mar dava sargaço ou pilado carregávamos o barco até ficar raso com a água, depois remava-se com mil cuidados até à costa. O pilado apanhava-se com redes de cerco e era posto no areal a secar. Naquele tempo respeitava-se quem trabalha, agora tomaram conta dos areais, privatizaram aquilo que era de todos e já nem há espaço para estender sargaço”. E acrescenta: “quando vim do ultramar continuei a ir ao mar pescar para comer. Depois dos 50 anos, entreguei-me à terra a tempo inteiro”.
O serviço militar levou Manuel Bodas para Angola, onde esteve entre 1963/65. “Fui como atirador especial mas o cozinheiro, o Triz, apanhou uma doença, e teve que regressar a Portugal. O plutão foi a votos, coisa rara, e tocou-me a mim substituir o cozinheiro. Mal sabia fritar um ovo mas acabei por aprender a cozinhar com um negro que trabalhava na cozinha do quartel. Tornei-me num bom cozinheiro e acabei por receber um louvor. Estive em Bessa Monteiro e no Caxito, onde tivemos algumas emboscadas. Os militares iam para a Sanzala quebrar o galho com a sua negra. E em vez de deixar a língua no quartel, contavam às mulheres a picada no mato do dia seguinte. Alguns pagaram com a vida”.
O regresso trouxe o mar e a terra de volta, recorda Manuel Bodas: “o campo não dava dinheiro e viver era o cabo dos trabalhos. Cavei muita terra com enxada e força de braço. Depois passei a lavrar com um cavalo. Os alugueres dos campos eram muito caros. As rendas eram pagas entre Junho e Julho. Mas havia anos que a terra nem para comer dava. Cheguei a vender um monte de sargaço para pagar uma renda. Os proprietários honestos permitiam que se pagasse aos bocados, os outros hipotecavam a casa das pessoas e enriqueciam à custa da desgraça dos pobres. Agora esse papel é feito pelos bancos”. E conclui: “eu e a minha mulher tivemos uma vida escrava, mas sempre comemos daquilo que semeamos. Em toda a minha vida tenho criado galinhas e sempre soube o que estava a comer. Enquanto puder assim será. O futuro a Deus pertence”.
Publicado in A VOZ DA PÓVOA