MARIA Alice Silva nasceu em São Veríssimo, Barcelos, em 1936, mas vive na Póvoa de Varzim há mais de quatro décadas e tem quatro filhos de dois casamentos. Perdeu a mãe aos onze meses e o pai aos três anos de idade: “ficamos as três irmãs a cargo de dois tios maternos. Fome e pancada velha nunca faltaram.
Temos todas a 4ª classe. Vinha de São Veríssimo a pé para a escola que ficava à beira da Ponte de Barcelinhos. A professora era boa pessoa, batia menos que o padre para ensinar a doutrina”. E acrescenta: “levei uma vida muito ruim. Andava descalça e muito mal vestida. Não tinha cuecas, nem saia, nem blusa. Enfiava uma combinação de flanela com um cordão atado à cinta e já estava vestida.
Para ganhar a vida trepava os pinheiros para esgalhar as ganas e fazer molhos de lenha para vender. Às vezes apareciam os feitores e ficavam com a lenha. Nunca me fizeram mal mas apanhei muitos sustos e avisavam para não voltar. No dia seguinte lá estava eu novamente na bouça. Também andava a apanhar bosta para fazer estrume e vender aos agricultores. Tinha um carrinho de rolamentos, feito de madeira de caixotes de sabão e ia de São Veríssimo até ao Campo da Feira a Barcelos apanhar a bosta dos animais”.
Maria Alice recorda como muitas vezes matava a fome: “quando as peixeiras iam vender as sardinhas, viravam os caixotes do sal no chão. A nossa única refeição do dia era comer o sal das sardinhas. Outras vezes apanhava as cascas das laranjas do chão, ou ia roubar fruta às quintas do Sá Carneiro. Aos 14 anos fui trabalhar para a fábrica de malhas Tebe. Aos 28 anos, fiquei doente e reformaram-me. A fábrica era à beira do estádio do Gil Vicente. De manhã trazia os filhos para a creche da fábrica, um na barriga, outro no colo e um carreto à cabeça. Como raramente tinha comida para levar, ao meio dia vinha a casa fazer de conta e voltava com a barriga cheia de ar e vento”.
Os primeiros tempos fora de Barcelos não foram fáceis. “Como não tive sorte com o primeiro marido, aos 31 anos vim viver para Alto Pega, para o Verdinho, com os meus três filhos. Como tinha uma reforma de 400 escudos por mês (2 euros) e três filhos para criar, fui mulher-a-dias na limpeza de casas. Mais tarde fui cozinheira na Pastelaria Dias. Como saía noite dentro e não existia iluminação pública em muitas ruas, a minha filha mais velha vinha-me esperar. Quando uma mulher andava sozinha de noite aparecia logo um homem a dar à asa. Passei uma vida complicada em Alto Pega. Vim morar para a Póvoa e os medos acabaram. Um dia encontrei o homem que é hoje o meu marido, pai da minha filha mais nova. Com ele encontrei a felicidade”.
Maria Alice explica como se tornou aluna da Universidade Sénior da Póvoa de Varzim. “Num S. Martinho fui cantar o fado ao café da Bertinha. O Zé Maria da guitarra e os amigos gostaram de mim e inscreveram-me gratuitamente na Universidade Sénior. Gosto de lá estar. Sou a aluna mais pobre mas todos me estimam. Gosto muito de Psicologia. A professora é brasileira e torna a aula muito alegre. Falamos de tudo e representamos peças de teatro”. A cantora de fados revela-se: “quem canta seus males espanta, por isso sempre gostei de cantar enquanto trabalhava. A primeira vez que pisei um palco foi a convite da Universidade Sénior. Esta gente bonita já me levou a cantar no Instituto Maria da Paz Varzim, Diana Bar, Rates, Balasar e Matosinhos. Sei imensos fados e gosto muito de cantar Amália. Sou muito feliz com o carinho que recebo de toda a gente que frequenta a Universidade Sénior”.
Publicado in A VOZ DA PÓVOA