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Mariana, a miserável

Mariana, a miserável

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O NOME apareceu por acaso mas serviu como uma luva. Ser miserável é saber que sou a pessoa com mais azar desta sala mas aceitá-lo (ao azar) como um amigo chato e celebrar isso com desenhos.

É o assumir os erros, a minha natureza desastrada e a minha falta de jeito para desenhar.

Ser miserável é poder ser outra pessoa, é poder dividir-me e ter a confortante sensação que estou passar o trabalho e as responsabilidades para outras mãos. Dá também origem a uma biografia inventada mais poética que a real mas sempre com um fundo de verdade na qual posso dizer coisas como “vendi o meu coração numa loja de souvenirs para pagar a conta da água” ou “acredito que deus é um senhor divorciado que não ouve bem”.

É não querer estar aqui agora, é estar com o estômago colado às costas, o coração a mil e acabar por fazer a minha primeira apresentação a ler, ao contrário do que toda a gente me aconselhou. Vejo outras conferências a serem tão fáceis para os outros e transformam-se à minha frente num bicho de sete cabeças.

Ser miserável é saber que o dom das palavras não nasceu comigo e por isso preferir sempre os desenhos.

É aquele estranho momento em que recebo um curriculum vitae de uma menina recém licenciada em design de comunicação à espera que lhe dê trabalho quando o meu atelier é a sala de estar da minha casa e o meu “ordenado” é quase imaginário.

Ser miserável é ficar admirada com as expectativas que os outros têm de mim.

É viver num 5º andar com a melhor varanda da baixa do Porto. É saber que estou a dez minutos a pé de qualquer sítio importante para mim e, no entanto, por vezes gostar de me fechar em casa dias a fio a desenhar. É encontrar quase sem querer, inspiração nos vizinhos das Fontainhas nas manhãs de feira da Vandoma e saber que quando preciso de ideias basta caminhar até ao supermercado.

É ter o hábito diário de descobrir, de me apaixonar e coleccionar projectos e ilustradores que me fazem sentir frustrada com o meu miserável portefólio mas, ao mesmo tempo, acabam por ter um efeito positivo ao inspirar-me e levar-me a querer trabalhar mais e fazer coisas novas.

É começar a trabalhar cedo todos os dias, levar isto muito a sério, ser a mais severa chefe do mundo e ter um pequeno salazar dentro da cabeça que me diz “vais mesmo desenhar isso?” ou “podias fazer melhor”. Há muitos desenhos que acabam por não ver a luz do dia por sua culpa e ainda bem.

É ter a pior memória de sempre e sentir a necessidade de escrever listas para tudo, supermercado, objectivos de vida, afazeres do dia, do mês, do ano. Tenho os mais desconcertantes cadernos de desenho de sempre, que me acompanham na mala e que, em vez de desenhos, são ocupados com palavras com setas e esquemas mentais. Neles também constam esboços feios que só eu percebo e que faço em pequenino imediatamente antes de seguir para a versão final de qualquer ilustração.

Ser miserável é ter o colesterol de um senhor de 65 anos porque a imaginação alimenta-se assim, com aquilo que sabe melhor. É ter dias menos bons, semanas más, bloqueios e brancas. É ter ideias lentas que precisam de marinar na cabeça durante muito tempo antes de se transformarem em desenhos.

É não querer esconder desenhos em gavetas porque sei que passado algum tempo deixam de fazer sentido para mim e já não gosto tanto deles. É gostar da partilha, querer ouvir o que os outros pensam, se perceberam o que quis dizer e importar-me com isso.

Ser miserável é decifrar e-mails com propostas de trabalho em espanhol. É saber que 99% das pessoas que conhecem o meu trabalho não tiveram oportunidade de o ver ao vivo. É ter de alimentar diariamente o facebook, o site, o blog, o flickr, o pinterest e o society6 porque estes são importantes para divulgar aquilo que faço ou o que ando a preparar e acabam por gerar mais propostas de trabalho ou parcerias com outros ilustradores.

É ir de férias ao Gerês e voltar com inspiração para o cartão de visita. É ter paciência e amor para recortar os cartões um a um à mão com esperança que elas (as banhistas) encontrem carteiras e bolsos de afortunados senhores e senhoras com uma pontinha de interesse por ilustração.

Ser miserável é ser solidária com “encharcadores” de almofadas, provadores de lágrimas, afogadores de mágoas, engolidores de soluços, ouvintes de música triste em loop, perdedores de duelos

É transformar a minha lamechisse natural e os desgostos amorosos em coisas fixes. É celebrar a ironia da vida, rir-me do azar e das expectativas frustradas.

É ser convidada para ilustrar a secção do consultório sentimental de um fanzine à conta desta fama de ser lamechas.

É também acreditar que a ilustração talvez seja a minha própria terapia porque nela exorcizo quase todos os meus males.

É não lavar os pincéis, ter apreço pela imperfeição, pelo traço rude e corpos de proporções estranhas. O trabalho nasce assim, feio e grotesco. Mas fala de coisas delicadas, muitas vezes de inspiração “telenovelesca”. Faço questão que haja sempre muito choro, muita baba, muito ranho e muito sarcasmo.

É crescer todos os dias um bocadinho, perder o medo das alturas, sentir mais responsabilidade de trabalho para trabalho, descobrir materiais e suportes novos, apostar nos pormenores, tentar evoluir e aprender com quem sabe. É fazer coisas por iniciativa própria, não ficar à espera de propostas e deixar de lamentar as portas que não se abriram.

Ser miserável é gostar de preparar exposições por serem elas que aceleram o método de trabalho e ajudam a contrariar a minha natureza é deixar tudo para a última da hora. Ensinam-me que as pessoas não mordem, obrigam-me a deixar os cantinhos e a habituar-me às conversas e ao ambiente das inaugurações.

É muitas vezes ter a oportunidade de não ver isto como uma coisa tão solitária e trabalhar em conjunto com outros ilustradores.

Durante estes dois últimos anos cruzei-me com muita gente, conheci novos sítios e aprendi coisas práticas como montar exposições, pintar paredes, desenhar em montras, janelas e murais.

Contrariamente às exposições, nas quais que tenho liberdade total, gosto de trabalhar nos projectos em que sou uma mera convidada, porque é muito mais desafiante, gosto das limitações, das imposições, aceito as críticas, faço melhor e tento corresponder às expectativas. Aguardo mais convites.

Ser miserável é escolher o que faço, é envolver-me apenas em projectos que gosto, receber muitos nãos e alguns sins e fazer tudo para que um dia seja possível viver disto. É ter conhecido grande parte dos meus amigos por causa dos desenhos, é ter convencido os meus pais que infelizmente não tenho vocação para a medicina e que isto é o que eu quero. É conhecer-me a mim e aos outros, chegar a cada vez mais pessoas e comunicar.

Esta foi a minha apresentação para o Wanted em Guimarães

Publicado in http://marianaamiseravel.blogspot.pt/

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