“TEMOS muita dificuldade em lidar com as nossas chagas. Procuramos tapá-las ou mostrá-las, como sinal de heroísmo. Eu, raramente, (me) falo da minha passagem por África. Mas também ninguém me pergunta. Não se fazem perguntas sobre isso. É como se fosse de facto alguma coisa da qual, com consciência ou sem ela, nós nos envergonhamos”, diz, em entrevista ao Negócios, este escritor portuense, vencedor do Prémio D. Diniz 2017.
Nasceu no Porto e é no Porto que vive. E foi no Porto que conversámos. O que não será tão comum assim. “Muitas vezes, quando me pedem uma entrevista, tenho de ir a Lisboa. O poeta António Nobre definia a capital como a secretaria do país. Ainda hoje é um pouco assim”, diz este escritor imbuído de geografia e defensor de uma eventual regionalização. “É perfeitamente inteligível a existência de duas regiões, uma a norte do Mondego e outra a sul.”
Mas há um risco neste debate. Que é o risco de transformar tudo num bairrismo extremo, alerta. Nascido numa família da burguesia portuense e baptizado com o nome de Rui Manuel Pinto Barbot Costa, Mário Cláudio licenciou-se em Direito, mas cedo percebeu que era um homem das letras e dos livros. Foi distinguido com vários prémios. Nos seus escritos, tem a preocupação de recriar um ambiente da mentalidade portuguesa. Isso acontece, por exemplo, no livro “Os Naufrágios de Camões” (2016) ou em “Astronomia” (2015), obra que recebeu o Prémio D. Diniz 2017.
É apontado por vezes como um investigador da portugalidade. Revê-se dessa forma?
Depende muito daquilo que se entender por portugalidade. Não sou um antropólogo, não sou um sociólogo nem sou um politólogo, mas é evidente que, por razões de ordem biográfica, presto mais atenção àquilo que sou como português e à realidade que me rodeia. Mas tenho muito mais a preocupação de criar um ambiente da mentalidade portuguesa do que em fazer uma análise científica dessa mentalidade. A vertente biográfica é muito importante no meu trabalho e, através de algumas figuras, posso contribuir para desenhar o perfil daquilo que somos. Posso abeirar-me daquilo a que genericamente podemos chamar o espírito do país.
Entre essas figuras, quais é que representam melhor esse espírito do país?
Acho que quase todas, não só aquelas que foram figuras reais – estou a lembrar-me do Amadeo de Souza-Cardoso, da Rosa Ramalho e de escritores como o Eça e o Camilo que, de alguma forma, estão presentes no meu trabalho –, mas também algumas figuras inventadas, ainda que incrustadas num contexto histórico legível e identificável. Por exemplo, há um grumete na frota do Vasco da Gama na viagem de descoberta do caminho marítimo para a Índia que, de alguma maneira, ilustra as preocupações de ordem religiosa da época, a confrontação entre o judaísmo e o cristianismo, e também o que esse Portugal, que ainda nos marca como uma entidade fantasmática, poderá ter a dizer-nos hoje em dia.
E o que nos diz esse Portugal?
Que é um país muito preocupado com a sua identidade. Estamos constantemente a interrogarmo-nos.
E isso é mau ou bom?
Não sei, tem aspectos positivos e aspectos negativos. Essa indagação da nossa natureza, da nossa índole, daquilo que de facto somos, por vezes acusa algum défice de segurança. Só nos interrogamos sobre a nossa identidade quando essa identidade está em risco ou é pouco nítida. E isso acontece com povos que viveram na dependência de outros povos, às vezes numa situação de subordinação. Durante muito tempo, sofremos uma ameaça de outros países – estivemos vários séculos na dependência de Espanha, perdemos a nossa independência, e perdemo-la não só para Espanha como, mais tarde, perdemo-la quando nos transformámos numa espécie de protectorado da Grã-Bretanha. E, sendo um território muito sangrado pela emigração, Portugal tem sido um país em permanente despedida. Tivemos sempre relações complexas num império em que nos revemos sempre muito mal. As colónias de África foram votadas ao abandono durante séculos. Depois fizemos uma guerra, que foi a última guerra colonial, para não as perdermos. Andámos sempre a tactear, a tactear inclusivamente aquilo que era o nosso próprio território. Tanto que, quando se dizia que Portugal era um país com um território descontínuo, ficávamos sempre aflitos para definir esse território. Afinal, éramos isto ou aquilo? Éramos portugueses? Éramos brasileiros? O que nos identificava era a vocação atlântica ou era a vocação africana? Andámos sempre assim.
Ainda hoje não sabemos muito bem quem somos?
Ainda hoje não sabemos. Mesmo num país tão pequeno como o nosso, temos um Norte, que aponta para o Norte da Europa, e um Sul, que é mediterrânico ou que aponta para o Norte de África. Não somos um país fácil em termos de auto-identidade. Somos uma encruzilhada de muitos valores, temos uma forte tradição judaico-cristã, provavelmente temos outros ingredientes de carácter celta que nos transformam, por exemplo, em irmãos mais próximos da Galiza do que do Alentejo. Logo aí, há problemas, cisões.
Essas cisões têm necessariamente de ser problemas?
Depende da maneira como são vividas. Por exemplo, ainda não assumimos completamente essa fraternidade galaico-portuguesa, porque há uma fronteira e nós vivemos de costas voltadas. Há mais vontade da parte de lá em estabelecer pontes com aquilo que nós somos do que o contrário. Por exemplo, existe uma preocupação em estudar os autores portugueses. Nós não temos tanto interesse em conhecer os autores galegos. Uma das grandes figuras da ficção ibérica do século XIX é a romancista Emilia Pardo Bazán, ela é enorme, ao nível de um Camilo, com quem de resto se correspondeu. Está escassamente traduzida em português e, no entanto, o Eça de Queiroz e o Camilo Castelo Branco estão traduzidos em castelhano e em galego.
Existem cisões dentro de Portugal, mas jamais poderiam acontecer fracturas como as que existem em Espanha, certo?
Isso não, em princípio, não. O problema da Madeira existe, mas é outro. Mas podemos discutir uma eventual regionalização do país. É perfeitamente inteligível a existência de duas regiões, uma região a norte do Mondego e uma região a sul. Há uma vocação autonomista, pelo menos em termos sentimentais, muito maior a norte do que a sul. O António Nobre definia Lisboa como a secretaria do país. Nós tínhamos de ir sempre lá abaixo para resolver algum problema. Os algarvios e os alentejanos não se queixam disso, nem os ribatejanos. É mais a norte do Mondego que a queixa se formula. Há uma tensão, que se manifesta, por exemplo, na área desportiva e também na área cultural, entre o protagonismo do Norte e o protagonismo do Sul. Assiste-se agora a uma preocupação em sublinhar a importância que o Porto e a região Norte têm em termos turísticos, às vezes em detrimento do Sul, insistindo que a qualidade de vida aqui é muito superior à de Lisboa, e que Lisboa é uma declinação da América Latina e do terceiro mundo… E que aqui estamos num contexto mais europeizado – existem vozes nesse sentido.
E concorda com essas vozes?
Com algumas sim, com outras não. Há o risco de transformar tudo num bairrismo extremo.
“Portugal é Lisboa e o resto é paisagem.” Ainda é assim?
Não se pode dizer isso. Por exemplo, a concentração de riqueza, individual ou de família, é muito maior a norte do que a sul. Os detentores do capital estão mais a norte, basta pensar nos Amorins, nos Belmiros e nessas famílias. O mesmo se verifica em Itália, por exemplo, com a riqueza concentrada a norte, e é um país que já hoje, de forma muito frontal, começa a discutir a separação do Norte e do Sul, exactamente como acontece entre a Escócia e Inglaterra.
Far-lhe-ia sentido esse debate mais vincado em Portugal?
Em termos de independência, não, mas em termos de regionalização poderia ser interessante. O que acontece no século XIX é muito indiciário disto mesmo, o grande desenvolvimento acontece a norte. Mesmo do ponto de vista político, é a norte que emergem as grandes ideias: o liberalismo, a revolução liberal e depois o romantismo. A maior parte das grandes figuras da literatura portuguesa do século XIX nasceram a norte ou viveram sobretudo a norte. O Eça de Queiroz nasceu no Norte, o Camilo Castelo Branco nasceu em Lisboa, mas fez quase toda a sua vida no Norte, e depois temos aquelas figuras que definem o básico da nossa mentalidade, como o Antero de Quental, o António Nobre, e mesmo o Oliveira Martins, que estiveram muito ligados ao Norte. Havia a ideia de que o Sul era, no fundo, duas coisas: os corredores de São Bento – o que representava um risco de desregionalização, uma vez que as pessoas que iam para lá defender os interesses do Norte, passado pouco tempo, como ainda acontece hoje, perdiam o seu norte. Eram trucidadas por aquela partidarite galopante e pelos jogos de corredor – ou, então, o Chiado.
Há pouco falava no perigo do bairrismo.
Sim, mas o bairrismo também existe lá (no Sul). A redução do país à capital é uma coisa que fizemos constantemente. Continuamos a fazê-lo.
A tragédia dos fogos deste Verão reflecte esse afunilamento?
Acho que sim, de alguma forma reflecte o peso da secretaria, ou os vícios da tal secretaria do António Nobre, em confronto com aquilo que é a realidade do país. Reflecte a incapacidade de dar resposta a uma situação que é uma situação nacional.
Há pouco tempo, numa entrevista ao Negócios, o filósofo José Gil dizia: “As pessoas do interior são pessoas esquecidas, elas não existem, e elas sabem que não existem e que não contam para o Estado.” Concorda?
Ele tem razão. E o curioso é que o interior de Portugal está a escassos quilómetros da costa! Mas andamos 20 ou 30 quilómetros e notamos uma diferença enorme em termos de mentalidade. Se formos daqui até à Régua, não encontramos uma livraria decente. Quem diz Régua, diz outras cidades, muitas. Encontramos grandes superfícies, mas não encontramos uma grande livraria. Há uma diferença cronológica entre o litoral e o interior. Em muitas áreas, o interior está parado, e nós estamos 40 ou 50 anos à frente dele. São questões de mentalidade.
Como olha para os portugueses, somos mais cosmopolitas ou nunca o seremos?
Esse cosmopolitismo nunca existiu. Mesmo no Porto, e mesmo numa altura em que era uma cidade muito rica, como no século XIX, com a presença dos ingleses e do comércio de vinho do Porto, a cidade não conseguiu criar uma alta burguesia culta. Em Lisboa, havia um pouco, e acho que em parte era devido à presença de algumas famílias judaicas, como os Burnay e os Abecassis. Mas é curioso que, por outro lado, era mais frequente as pessoas do Norte irem a Paris, que era um centro nevrálgico cultural, do que as pessoas de Lisboa, que iam para Sevilha ou Madrid… Mas eu não sei a que é que hoje se pode chamar cosmopolitismo. Vivi em Londres e, na altura, era uma cidade cosmopolita. Hoje não posso dizer que Londres é uma cidade cosmopolita. É uma cidade globalizada.
Cosmopolitismo e globalização são conceitos que podem entrar em choque?
Ser cosmopolita é ser um foco de irradiação cultural, como foi por exemplo Viena no princípio do século XX, antes da I Grande Guerra, como foi depois Paris, como já tinha sido Roma, no fim do século XIX, como foi depois Londres e Nova Iorque, como foi também Milão. Hoje, essa noção da cidade cosmopolita perdeu-se um pouco com a globalização.
Voltando à questão da nossa identidade. Diz que somos inseguros. Será por causa disso mesmo que, de alguma forma, poderemos ter a tendência para romantizar o passado – nós, os descobridores, nós, os bons colonizadores?
Acho que sim, mas da mesma forma que os ingleses fazem em relação à Grã-Bretanha. Essa melancolia, essa nostalgia, existe em todos os países.
Completamente. Temos dificuldade em vomitar os nossos fantasmas, ao contrário, por exemplo, dos EUA, que estão constantemente em autocrítica, daí que a guerra do Vietname tenha sido objecto de uma série de reflexões, grande parte delas contra o próprio país. No nosso caso, isso não tem existido, porque ainda há sensibilidades um bocado primárias – eu estive no Ultramar, na Guiné, e sei que se se fizer uma observação na internet contra a guerra colonial, não faltarão ex-combatentes a ficar perturbados afligidos ou que inclusivamente me consideram uma espécie de traidor. Há relativamente pouco tempo, publiquei um conjunto de afirmações sobre um militar que foi muito condecorado pelo regime salazarista e que era um autêntico criminoso de guerra, um facínora da pior espécie, toda a gente sabia disso, mas teve a Medalha da Cruz de Guerra. Houve logo uma quantidade de pessoas que se rebelaram contra mim.
Em “Astronomia” podemos ler: “Sentado à mesa metálica da sua burocrática função, analisa processos e processos que se ocupam de desastres e, serviço, violação de nativas, orgias homossexuais, e actos de insubordinação, e que propõem para as mais altas condecorações da pátria heróis que esmagam a cabeça dos meninos no capot do Unimog ou que espetam a faca de mato na barriga das grávidas.” Isto é muito forte…
Eu vi isso, isso aconteceu, e não era ocasionalmente. Foram situações trágicas que nós nunca conseguimos vomitar, compreende? Nunca conseguimos. Acho que se deveria falar mais nisso, embora o falar muito tenha um risco, que é a banalização das coisas. A insistência no tema torna o assunto banal. Sabemos o que aconteceu com o Holocausto. Deixou de ser um horror para passar a ser um documentário que absorvemos à hora das refeições. Esse é o perigo de falar muito. De qualquer forma, nós não conseguimos fazê-lo. Tivemos sempre muita dificuldade em lidar com as nossas chagas. Procurámos tapá-las ou mostrá-las como sinal de heroísmo.
Numa entrevista recente, a artista e psicanalista Grada Kilomba, nascida em Portugal, falava nas diversas fases de um trauma – culpa, negação, vergonha, reconhecimento e reparação – e defendia que Portugal ainda estava na negação completa em relação à guerra colonial.
Sim, ainda estamos muito aí. Mas isso é algo que muitas vezes tem uma dimensão individual, não apenas colectiva. Eu raramente (me) falo da minha passagem por África, são coisas que emergem em sonhos ou em escritos. Mas também ninguém me pergunta. Não se fazem perguntas sobre isso. É como se fosse de facto alguma coisa da qual, com consciência ou sem ela, nós nos envergonhamos.
Ai, sim, acho que os portugueses são racistas e o racismo tem muitas caras, tem muitos rostos. Há um racismo económico muito nítido. Portugal é dos países mais estratificados da Europa. E os fenómenos de alpinismo social são absolutamente confrangedores, basta ler as revistas do coração. Não conheço nada de equivalente. Se pegar, por exemplo, na espanhola Hola, tudo ali se passa ao nível das cabeças coroadas. Aqui, é a festa do Zezé Camarinha. E quem vai à festa e quem não vai à festa, e quem estava “in” e quem não estava. E as velhas tias da linha do Estoril… Esta coisa toda espelha o provincianismo português, é uma das suas expressões mais grotescas. E isso constitui o consumo habitual de todas as classes, que se revêem naquelas figuras como arquétipos a que gostariam de ascender. Tudo isto é trágico.
A estratificação é antiga. A mobilidade social continua a ser muito difícil em Portugal?
É muito difícil. Admito que haja uma mobilidade social que se faz com custos grandes e que é muitas vezes acompanhada por um défice cultural. Dei aulas na Escola Superior de Jornalismo, muitos dos meus alunos viviam na periferia do Porto e eram segunda ou terceira geração de gente vinda do interior. Esses meninos e meninas, que ainda tinham uma avó no campo com um lenço na cabeça e vestida de luto perpétuo, muitas vezes não eram capazes de identificar uma oliveira, um castanheiro, um sobreiro… as árvores! Tinham perdido as suas raízes culturais – estamos a falar de cultura – e não as tinham substituído por outras. A alternativa era o centro comercial. Gente que veio para a cidade passou a ser um produto híbrido, nem citadino nem urbano, mas suburbano, e a suburbanidade tem muito vincada essa característica de perda de identidade cultural.
Politicamente, nunca foi muito interventivo, pelo menos no campo partidário. E até terá sido criticado por isso. No livro “Astronomia”, que é em parte uma autobiografia, critica “a chamada ‘consciência política’ exigida pelo respeitável contexto universitário, manifestando-se no enfeudamento activista, e na entrega a uma causa”.
As pessoas tinham de se sentir em festa e nem sempre o clima era festivo. Hoje acho que não se pode negar que houve um período de algum terror, que atingiu alguns dos mais próximos do regime, que tiveram de emigrar e sair. E esse terror era muitas vezes incutido e explorado por aquilo que é sempre o pior lado de todas as revoluções, que é a chamada “canalha” ou “ralé” – provavelmente porque tinha mais queixas –, mas também eram muitos os camuflados, pessoas que tinham vivido à custa do regime anterior e que mudaram para um partido de esquerda. Muitas entraram para o Partido Comunista, as suas portas abriram-se, escancararam-se, entrava quem queria. E isso inspirava simultaneamente repugnância e medo, mas quem era de esquerda, e eu era de esquerda, não podia acusar essa repugnância e esse medo. Acusar isso era estar contra a revolução. Tinha de se fechar os olhos e fingir que tudo era festa, e às vezes essa festa, que por acaso não degenerou, tornava-se muito ameaçadora. Sentia-se que, de um momento para o outro, a festa podia desandar e transformar-se numa coisa terrível. Por duas ou três vezes, podia ter acontecido, como no 11 de Março, no 25 de Novembro. Mas mesmo nessas alturas tinha de se preservar uma atitude de implacabilidade de esquerda. Por exemplo, um dia eu estava em casa de um amigo, contaram uma anedota anti-revolucionária, ri-me à gargalhada, e esse meu amigo ficou indignado, achava que eu estava a ter uma atitude reaccionária…
Estudou na Faculdade de Direito em Lisboa, assistiu aos movimentos estudantis e sentiu-se quase obrigado a aderir…
Era uma obrigação aderir a tudo o que viesse da contestação ao regime, e havia aspectos da contestação ao regime que eram muito reaccionários. Isso viria a viver-se mais tarde, na dimensão daquilo a que se chama disciplina partidária.
Revê-se em algum partido?
Nunca me revi em partido nenhum. Acho que aquilo a que se chama esquerda passou por vários partidos. Encontramos mentalidades absolutamente direitistas em partidos de esquerda e havia partidos de direita que tinham figuras de esquerda. Não havia uma leitura de direita e de esquerda tão nítida quanto isso. Um homem como o Adriano Moreira, que foi um alicerce do regime anterior, só pela sua cultura era muito mais de esquerda do que muitos de esquerda que estão em partidos de esquerda. Foi sempre aquilo que talvez nunca tenha deixado de ser, um liberal, que se associou com algum pé atrás ao regime anterior, e que continua a ser uma voz civilizada, ao contrário de outras, que berram coisas que já não se podem ouvir.
A esquerda hoje continua a estar mais em pessoas do que em partidos?
Está muito mais em pessoas. Durante muito tempo, senti-me muito próximo do Partido Socialista, mas hoje não posso dizer que tenha mais simpatia pelo PS do que tenho por algumas posições do Bloco de Esquerda, porque vejo que há ali uma vitalidade, uma juventude e uma necessidade de recriar as coisas, caindo por vezes em ridículos inacreditáveis… É fácil um partido com toda aquela frescura cair algumas vezes no ridículo. Mas o outro partido a que eu me referia não é só no ridículo que cai, cai na inoperância e na desonestidade.
A sociedade portuguesa é tendencialmente conservadora, mas ao mesmo tempo parece dar mostras de abertura relativamente a comportamentos minoritários. Qual a sua opinião?
Ora, como é que hei-de pôr isso? Não sei se essa tolerância, muitas vezes, não será antes uma indiferença. Um não querer pensar na situação. Mas é melhor assim do que uma intolerância a cem por cento. Se calhar, a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo aconteceu em Portugal não porque tenha havido, por parte da população, uma adesão à ideia, aconteceu porque a população esteve-se nas tintas.
Porque é que acha isso?
Mais uma vez, por défice cultural, porque as pessoas preferem não pensar nisso, ou são capazes de utilizar uma máscara para uma situação x, mas sem saber exactamente porque é que estão a afivelar a máscara para essa situação. Uma coisa é dizer “eu não tenho nada contra os ‘gays’” num contexto em que haja “gays”, outra coisa é dizer “eu não tenho nada contra os ‘gays’” num contexto de casais heterossexuais.
Não se aceita assim tão bem a diferença, então?
Continuo a achar que o grande vício da mentalidade portuguesa é o sectarismo. É o Porto-Benfica, é o assim ou assado. De vez em quando, sentam-se à mesma mesa, festejam, são muito amigos, depois ratam uns nos outros quando estão fora.
Há a ideia de que após uma tragédia, juntamo-nos e mobilizamo-nos, como aconteceu depois dos fogos, mas depois voltamos à nossa vida. E voltamos a dizer mal do vizinho…
Não acho que isso seja um fenómeno tipicamente português. Mas a cultura política da grande massa da população portuguesa é muito baixa, é preciso dizê-lo, tenho a certeza de que a grande percentagem das pessoas que votam o fazem por questões de ordem afectiva ou por puro clubismo e não porque apoiam as ideias de a, b ou c. De resto, devo dizer, os políticos fazem todos os possíveis para que essas ideias não fiquem claras. Ou fazem promessas absolutamente irrealizáveis. Ou falam numa linguagem que ninguém entende.
A educação tem aqui um papel fundamental, como se tem dito e repetido.
A educação é outra área que está em crise há décadas. Vou muitas vezes a escolas e, na maior parte dos casos, encontro muito mais curiosidade e argúcia nas perguntas dos alunos do que dos professores. Os professores já foram alunos de professores desinteressados. Falo sobretudo na área da literatura, aquela que conheço. Não se pode ser um bom professor de literatura se não se tiver hábitos de leitura, se não se gostar de ler. A maior parte dos professores de literatura cumpre um programa, e cumpre-o a custo. Como é que podem dinamizar os alunos? Há excepções extraordinárias, mas a paisagem é deprimente! A escola em Portugal nunca foi um horizonte luminoso em termos de criação de mentalidades, porque sempre foi muito rotineira. É muito maior a preocupação com o cumprimento do programa do que com o cumprimento de um programa individual de estímulo. Burocratizámos excessivamente o ensino.
Teve uma educação religiosa e hoje afirma-se como um “católico herético. Sou um católico de formação, vocação, etc., mas com umas pinceladas de heresia.” Falámos de tolerância, a Igreja Católica tem acompanhado alguma abertura da sociedade?
A Igreja Católica lida com problemas globais, como a questão dos refugiados e do terrorismo, mas houve um tempo em que existiam problemáticas típicas portuguesas – não nos esqueçamos que houve uma Igreja claramente de esquerda, chamavam-se mesmo os católicos de esquerda. Agora há um vazio, a Igreja não tem objectivos portugueses. E eu acho que há uma Igreja portuguesa que alimenta a discrepância entre o interior e o litoral.
Como assim?
Há uma Igreja que tem uma retórica exclusivamente utilizável nas terras onde está implantada. Falo de terras do interior que, em relação ao exterior, têm um discurso de receio e de fuga. De vez em quando, aparecem figuras excepcionais, como aconteceu com o bispo de Setúbal, D. Manuel Martins, que teve uma palavra a dizer no sítio onde estava. São discursos que até podem assustar as pessoas, mas uma Igreja que não assusta as pessoas continua a não cumprir o seu papel. Acho que o Papa Francisco está a ter esse papel, mas o Papa representa o mundo, fala para o mundo. Enquanto a nossa Igreja estiver centrada em Fátima, por Fátima, seja o que for aquilo que se pense de Fátima, e não tanto nas pessoas em geral, é uma Igreja que está a falhar.
Em tempos, as famílias mais ricas tinham o seu pobre. A socióloga Maria Filomena Mónica diz mesmo: “Cultivavam-se os pobrezinhos, regavam-se com bocadinhos de pão com conduto, com pequenas moedas e cultivava-se sobretudo a sua pobreza.” E hoje, como é?
Isso era uma atitude sobretudo dos burgueses, hoje o pobrezinho é diferente, hoje o pobrezinho é o sem-abrigo ou é aquele que está institucionalizado e quem pede é a instituição, ou então é aquilo a que os ingleses chamam de “drop out”, as pessoas que foram cuspidas da sociedade. Continuo a achar absolutamente inacreditável que não se revolva o problema dessas pessoas. Quando o Dr. Rui Rio entrou na Câmara Municipal do Porto disse que, num curto espaço de tempo, iria resolver a situação dos arrumadores. Nunca explicou porque é que nunca resolveu.
Sei que não é propriamente fã de Rui Rio.
Não sou. Acho que um político não se pode dar ao luxo de ser um homem inculto, em termos de humanidades. Mas temos políticos cultos.
Por exemplo?
Nesta altura? O Presidente da República.
Ponto final?
Ponto final.
Quando era criança, a sua família acolheu um menino francês em casa, refugiado.
Sim, ele era um de muitos meninos que chegavam através da Cáritas Portuguesa. Eram crianças, sobretudo austríacas, polacas e francesas, muito castigadas pela guerra. Ele esteve dois anos connosco, eu tornei-me bilingue, (risos) e ficámos amigos para toda a vida.
Continuamos com medo do outro? “É um medo terrível, diria mesmo que é um medo vergonhoso quando nós vivemos bem e não conseguimos partilhar com os outros os espaços que temos e as nossas disponibilidades.” Estou a citá-lo.
O medo do outro é um medo universal. É sobretudo um medo do diferente, em especial quando o outro é muito diferente de nós. É um misto de muitas coisas: de culpa, vergonha, medo. A culpa e o medo são os dois sentimentos mais destrutivos do nosso quotidiano. Quem vive com medo e com culpa está feito!
A literatura tem para si um papel político?
Não. Acredito que toda a escrita tem uma mensagem, mas não acredito que essa mensagem, só por si, seja suficientemente poderosa para alterar o mundo. Se assim fosse, o Tolstói, que era animado por esses propósitos, teria alterado o mundo e não alterou. A revolução soviética aconteceu depois porque as coisas continuavam na mesma, apesar de ele já ter escrito “Guerra e Paz” (1869), “Anna Karenina” (1877) e “A Ressurreição” (1899), obras de denúncia. Que apontavam caminhos, é certo.
Diz que hoje os leitores se confundem com compradores.
É isso, mas há muita gente nova a escrever com grande qualidade, só que esses autores não são visíveis porque aparecem dissolvidos num contexto em que qualquer mediocridade publica um livro. As livrarias estão atravancadas de entulho e não deixam ver essas pessoas. Tenho acompanhado muitas delas – é preciso também que as pessoas da minha geração façam um esforço nesse sentido e não julguem tudo pela mesma bitola. Há gente de grande qualidade.
Vende muitos livros?
Nunca vendi muitos livros, não tornei nenhum editor rico. Tenho um número mais ou menos estável de leitores, mas um autor com as minhas características, e que não esteja ligado à comunicação social, nunca irá vender muito. Se excluirmos casos isolados como José Saramago ou como foi Lobo Antunes, que já não vende como vendia, quem é que vende na área em que eles se colocam?
O romance “Astronomia” foi o vencedor do Prémio D. Diniz 2017, entre outras distinções. O Mário Cláudio diz que os prémios são pequenas ilusões canónicas.
Exactamente. Para já, um prémio não faz a felicidade de um autor, pode estimular e pode ser útil, se tiver uma expressão pecuniária razoável. Fora disso, não tem uma grande importância e até pode ser o beijo da morte de um autor. A grande maioria dos contemplados do Nobel, depois de receber o prémio, nunca mais escreveu nada que valesse a pena. É uma espécie de fatalismo.
Por Lúcia Crespo publicado in Jornal de Negócios e retrato de Graça Martins